Noite de domingo, um homem de 79 anos entrou na A1 no local errado ao que desejava, fez inversão de marcha para voltar ao caminho que queria e andou dez quilómetros em sentido contrário. As autoridades registaram cinco colisões entre viaturas que resultaram em seis feridos, dois deles crianças de 5 e 7 anos..Na semana anterior, um condutor entrou na CREL numa zona que não era a do seu destino, quando chega ao posto da portagem e se depara com o talão para pagar, decide fazer marcha-atrás e pede aos condutores em fila que se desviem para poder passar. A situação foi reportada às autoridades..Numa e noutra situação não houve vítimas mortais, mas há situações em que tal acontece. Em setembro deste ano, um homem de 27 anos perdeu a vida por colisão frontal com um camião, depois de ter andado na A3 mais de dez quilómetros em sentido contrário. Mas ao longo dos anos, e apesar de toda a sinalização, alertas e campanhas de sensibilização, estas situações continuam a repetir-se e a preocupar. Tudo porque ainda há condutores que não perceberam que conduzir numa autoestrada (AE) não é o mesmo que conduzir numa via urbana ou numa estrada nacional..Acontece quase todos os dias."Quando há um engano deve-se seguir em frente e sair na saída mais próxima, não é resolver o problema com inversão de marcha, como acontece na maioria destas situações", lembra o secretário-geral da associação que representa os concessionários das autoestradas, Rui Manteigas. .O dirigente desta associação, que reúne 24 concessionários de AE, diz mesmo que "as situações de que temos conhecimento poderiam ser distribuídas quase como que uma por dia". E, segundo ele, "há uma tipologia básica e que envolve os condutores com mais idade..Rui Manteigas justifica: "Há cada vez mais pessoas encartadas para além dos 70 e dos 80 anos. A realidade não é só portuguesa. É de qualquer sociedade em que a esperança média de vida também aumentou. A França tem vindo a discutir a questão da formação. Ou seja, prestar mais assistência e formação aos condutores com mais idade na altura em que têm de renovar a carta de condução.".É precisamente uma fórmula deste tipo que a APCAP - Associação Portuguesa das Sociedades Concessionárias de Autoestradas ou Pontes com Portagens defende: "Consideramos que deveria ser obrigatório sessões de formação para os condutores acima dos 70 anos para se adequar os seus conhecimentos, e este deveria ser um critério para a renovação da carta de condução.".O objetivo "não é defender medidas radicais nem tão-pouco proibir os condutores de exercerem os seus direitos e liberdades, mas há que fazer algo para se conseguir adequar cada vez mais a sua formação à realidade atual da circulação", comenta este dirigente..Casos não constam dos relatórios.Dados sobre casos de contramão nas autoestradas não se encontram nas pesquisas feitas na internet. Segundo nos explicou o presidente da Prevenção Rodoviária Portuguesa (PRP), "não constam dos relatórios oficiais, não estão discriminados. Há dados de acidentes, mortos, feridos, mas depois não há destas situações"..Mas uma recolha de dados realizada pela PRP revela que, de 2010 a 2016, cinco pessoas morreram na AE por colisões frontais, devido a condução em sentido contrário, um ferido grave e 17 ligeiros. As vítimas mortais, quatro homens e uma mulher, tinham 29, 47, 81, 84 e 63 anos. O ferido grave era do sexo masculino e tinha 35 anos. Os 17 feridos ligeiros são condutores, maioritariamente homens, e 11 tinham mais de 70 anos..No entanto, José Miguel Trigoso insiste que tais dados não podem ser usados como base científica e que se deveria trabalhar mais os dados registados pelas entidades competentes para se aprofundar as razões que estão na base da infração e que condutores as cometem.."Não há uma base científica que permita dizer que há um perfil-padrão que envolve condutores com mais idade, mas é uma situação mais frequente do que se pensa", especificou ao DN..O presidente da PRP defende que muitos outros dados da realidade rodoviária portuguesa deveriam ser tratados, e não o são. "O Estado identifica os condutores que registam acidentes com vítimas, mas não sabe quem os condutores que reúnem cinco ou mais acidentes e porque é que isto lhe acontece. Esta situação, e para se poder melhorar a prevenção e a circulação nas vias, deveria ser possível registar e tratar.".Até porque, de acordo com dados oficiais, Portugal continua a ser dos países com mais mortos na estrada por milhão de habitante. De acordo com o mais recente relatório da Comissão Europeia, registamos um ratio de mais de 60 mortos por milhão de habitantes..Em 2018, Portugal registava 675 mortos, contabilizando já os óbitos ao fim de 30 dias. "Estamos muito acima da média, depois de nós já há muito poucos países com mais de 60 mortes por milhão de habitante", refere José Miguel Trigoso, defendendo: "Muito se tem feito para reduzir as mortes nas estradas, mas tal não está a acontecer. A sinistralidade não tem diminuído, tem aumentado, é um facto, e temos muito que melhorar em alguns pontos de vista, quer das infraestruturas que se disponibiliza para a circulação, quer no comportamento e até na formação para o controlo dos comportamentos.".sinistralidade portugal Infogram.Mas quanto à questão de se conduzir em contramão na AE, José Miguel Trigoso salienta que ao longo dos tempos a PRP tem apresentado propostas concretas para que a renovação da carta envolvesse uma avaliação médica mais rigorosa. Ou seja, que fosse feita em juntas médicas, e não nos centros acreditados para tal. "Se há um centro que começa a recusar muitos condutores, os outros deixam de lá ir. Passam para outro sítio. Isto não deveria ser assim." .Acrescentando: "O objetivo não é proibir pessoas com mais idade de conduzir, não é inibir estas pessoas. Aliás, isso seria uma violência em termos de qualidade de vida, a pessoa poder-se-ia sentir com menos autonomia e até estar em condições para continuar a exercer este direito", mas "este direito só deve ser permitido a quem está mesmo em condições para o fazer e não pôr em risco a sua segurança e a dos outros". Por isso, defende, "deveria haver mais reflexão e discussão sobre o assunto, apesar de há muito tempo se discutir este tema". .A questão é que as soluções nem sempre são as mais consensuais. Há quem defenda que se há uma idade para se começar a conduzir, também deveria haver uma para se deixar de o fazer. Mas cada caso é um caso. Nem todas as pessoas envelhecem da mesma forma, embora haja estudos que evidenciem que a partir dos 40 anos tudo é diferente a nível de reflexo, de perceção do ambiente rodoviário e na tomada de decisões imediatas. O presidente da PRP refere um estudo que revela que cada condutor toma em média de 12 decisões por minuto..Em caso de infração, no que toca a conduzir em sentido contrário ao definido pelo Código da Estrada, há uma moldura penal, podendo ir de perda de pontos na carta de condução à cassação da carta e a outras situações mais graves no caso de envolver vítimas. Mas a punição é a solução? É preciso também que os condutores percebam que tiveram um comportamento errado, que interiorizem isso, e que melhorem a sua condução, defendem. Para isso, "é preciso mais formação", dizem entidades do setor. .A Associação Portuguesa de Escolas de Condução diz mesmo que tudo começa pelo facto de a formação aprovada para as escolas darem estar ultrapassada. Por exemplo, "no caso dos exames há dois percursos definidos, um teórico e um prático, mas que já estão desadequados da realidade atual". Alcino Cruz, presidente da associação, defende ser preciso olhar para a formação que está a ser dada e como esta pode ser melhorada. "Já apresentámos várias propostas para se mudar e melhorar a situação", reforça. Quanto à renovação da carta, defende até que deveriam ser tidos em conta critérios médicos, psicológicos e de formação, porque quando "uma pessoa tira a carta é-lhe dada uma formação, mas o ambiente rodoviário vai mudando e é preciso adequar os conhecimentos"..De acordo com a legislação atual, a renovação da carta de condução impõe exames médicos e psicológicos, sendo certo que a avaliação recai sobre a visão, a audição, a locomoção, as doenças cardiovasculares, neurológicas e mentais e a diabetes. A Ordem dos Médicos há muito que alerta os médicos de família para que se recusem a passar atestados para a renovação da carta de condução. O bastonário Miguel Guimarães, em 2017, pediu mesmo a todos que se recusassem a fazê-lo, já que tal competência é dos centros de avaliação médica..O tema é sensível. As soluções não são consensuais. O certo é que a partir de certa idade os reflexos não são mais os mesmos. Tudo depende de como cada um aceita o seu limite, até para não pôr em risco todos os outros que também circulam na estrada..O DN pediu dados à GNR e à Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária sobre casos de condução em contramão nas autoestradas, mas não recebeu resposta.