O Parlamento discute hoje uma petição que propõe um referendo sobre o enriquecimento ilícito e a delação premiada. A proposta, que chegou à Assembleia da República com 4080 assinaturas (o que obriga à discussão em plenário), não será acompanhada por nenhum partido - e as petições não abrem um processo legislativo, o que só acontece quando uma bancada parlamentar avança com a proposta. Mas o tema está para ficar: a comissão parlamentar eventual sobre transparência, que deverá terminar os trabalhos até final de março, tem em mãos três propostas que defendem a penalização do enriquecimento injustificado. Uma figura legal que não existe no ordenamento jurídico português, mas que já leva uma longa história na Assembleia da República..Nas últimas quatro legislaturas - ou seja, nos últimos 13 anos - foram apresentados na Assembleia da República 18 projetos de lei visando a criminalização do enriquecimento ilícito ou injustificado (o nome foi variando). O destino da esmagadora maioria foi o chumbo, alguns caducaram sem ir a votos, e por duas vezes as propostas em cima da mesa foram aprovadas - mas não passaram o crivo do Tribunal Constitucional, que declarou as duas iniciativas contrárias à Constituição..João Cravinho, a voz dissonante do PS.Recuando até à décima legislatura - a primeira de José Sócrates -, a primeira voz a levantar-se em defesa da criminalização do enriquecimento injustificado veio do PS. Em 2006, o deputado João Cravinho apresenta um pacote de propostas anticorrupção, entre as quais se incluem a criação do crime de enriquecimento ilícito, visando os titulares de cargos públicos. A ideia, muito contestada entre os socialistas - que são historicamente contra esta figura legal, defendendo que é inconstitucional por contender com a presunção de inocência e pressupor a inversão do ónus da prova -, nunca chega a tomar a forma de um projeto de lei..Em 2007, o PSD apresenta um projeto de lei, prevendo a criminalização do enriquecimento ilícito obtido no exercício de funções públicas. Propunham então os sociais-democratas que "o funcionário que, durante o período do exercício de funções públicas ou nos três anos seguintes, adquirir um património ou um modo de vida que sejam manifestamente desproporcionais ao seu rendimento e que não resultem de outro meio de aquisição lícito, com perigo de aquele património ou modo de vida provir de vantagens obtidas pela prática de crimes cometidos no exercício de funções públicas, é punido com pena de prisão até cinco anos"..Em abril de 2007 o projeto foi rejeitado com o voto contra do PS (que tinha então maioria absoluta), a abstenção do CDS e o voto favorável de PSD, PCP, BE e PEV..Dois anos depois, em 2009, já com a legislatura a aproximar-se do final, o PSD volta à carga, reapresentado o projeto, mas com uma nova alínea, que visa aclarar que não há uma inversão do ónus da prova - "a prova da desproporção manifesta que não resulte de outro meio de aquisição lícito incumbe por inteiro ao Ministério Público"..Na mesma ocasião, aproveitando o agendamento dos sociais-democratas, o PCP avança também com uma proposta. A bancada comunista afirmava então que, "apesar do intenso debate que se promoveu sobre os meios de prevenir e punir o fenómeno da corrupção, a legislação que a Assembleia da República aprovou sobre essa matéria ficou muitíssimo aquém do que era esperado, desejável e necessário". A bancada comunista propõe que "os cidadãos abrangidos pela obrigação de declaração de rendimentos e património, por si ou por interposta pessoa, que estejam na posse de património e rendimentos anormalmente superiores aos indicados nas declarações anteriormente prestadas e não justifiquem, concretamente, como e quando vieram à sua posse ou não demonstrem satisfatoriamente a sua origem lícita são punidos com pena de prisão até três anos e multa até 360 dias"..A iniciativa do PCP foi chumbada com o voto contra do PS, a abstenção do PSD e do CDS, e o voto a favor de PCP, BE e PEV. Idêntico destino teve a do PSD, que foi chumbada pelo PS, com o voto a favor das restantes bancadas..Meses depois, em junho, foi a vez de o Bloco de Esquerda avançar com um projeto de lei de "combate ao enriquecimento injustificado". Foi chumbado com o voto contra do PS e das bancadas da direita e voto favorável das bancadas da esquerda. Outro projeto de lei dos bloquistas, que criava "o tipo criminal de enriquecimento ilícito", acabou por caducar com o fim da legislatura sem ir a votos..Nova legislatura, nova rodada, o mesmo destino.Em 2009, com o início da nova legislatura (correspondente ao segundo governo de José Sócrates), o PCP não perdeu tempo a reapresentar o projeto de lei sobre o enriquecimento ilícito. Poucos dias depois, o Bloco de Esquerda faz a mesma coisa e, no início do mês de dezembro, também o PSD põe novamente a sua proposta em cima da mesa. As três iniciativas vão a votos no mês de dezembro e, numa altura em que os socialistas já não tinham maioria absoluta, o voto contra do CDS, aliado ao do PS, faz chumbar as iniciativas de comunistas e bloquistas..Já o projeto do PSD parecia lançado para uma história diferente: o CDS abstém-se na votação, pelo que a aprovação dos sociais-democratas, do PCP, do BE e do PEV bate o voto contra da bancada socialista. Pela primeira vez, a criação do crime de enriquecimento ilícito é aprovada (na generalidade) na Assembleia da República. Mas não chegará a avançar..No início de 2011, PCP e BE insistem e voltam a dar entrada dos mesmos projetos no Parlamento. Mas, poucos meses depois, a queda do governo de José Sócrates ditará o fim da legislatura: os projetos de comunistas e bloquistas ficam novamente pelo caminho sem ir a votos. O do PSD, que apesar da aprovação na generalidade não tinha avançado, também caduca sem completar o processo legislativo..Duas aprovações, dois chumbos do Tribunal Constitucional.Com Pedro Passos Coelho como primeiro-ministro, a XII legislatura começa a 20 de junho de 2011 e BE e PCP mantêm a tradição - a iniciativa dos bloquistas sobre o enriquecimento ilícito dá entrada logo a 1 de julho, a do PCP entra dez dias depois. Em setembro é a vez de o PSD avançar, num projeto conjunto com o CDS. Em fevereiro de 2012, o texto final aprovado pela comissão parlamentar de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias é aprovado com o voto favorável de todas as bancadas, com exceção do PS, que vota contra.."Sempre que se verifique um incremento significativo do património, ou das despesas realizadas por um funcionário, que não possam razoavelmente por ele ser justificados, em manifesta desproporção relativamente aos seus rendimentos legítimos, com perigo manifesto daquele património provir de vantagens obtidas de forma ilegítima no exercício de funções, é punível com pena de prisão até cinco anos", estipulava o diploma..Chegado o diploma a Belém, o então Presidente da República, Cavaco Silva, pediu a fiscalização preventiva ao Tribunal Constitucional. E foi o fim da linha: os juízes do Palácio Ratton pronunciaram-se, de forma unânime, pela inconstitucionalidade de dois artigos, considerando que o documento violava o princípio da presunção de inocência e da determinabilidade do tipo legal ("tem de decorrer de uma incriminação qual é a conduta que é claramente proibida", explicaria o presidente do TC)..PSD e CDS insistiram. Com algumas alterações, a proposta é novamente aprovada em maio de 2015, apenas com os votos das bancadas da direita - toda a oposição votou contra, alegando que se mantinham as inconstitucionalidades apontadas pelo TC. O tempo viria dar-lhes razão. Cavaco Silva volta a mandar o diploma para o Constitucional e, a 27 de julho de 2015, a decisão repete-se: inconstitucional..Com as eleições à porta, o PSD prometeu voltar à carga na legislatura seguinte, que viria a ser a da geringonça. Bloco de Esquerda e PCP voltaram a apresentar projetos, em 2016, que estão desde então na comissão da Transparência. O deputado comunista António Filipe desafiou, no final da semana passada, os restantes partidos a avançar já com esta matéria, o que foi recusado por PS e PSD. Não havendo ainda um desenho final da proposta, tudo aponta para a consagração de uma penalização fiscal, em vez de criminal. Isso mesmo deixou antever António Filipe, ao sublinhar que "o PCP considera que a não justificação deve ser tratada em sede criminal", mas admitindo viabilizar a proposta do PS, que quer penalizar em sede fiscal o enriquecimento injustificado, prevendo uma tributação agravada para rendimentos sem justificação. "Não sendo essa a nossa solução, quer-nos parecer que pode ser um avanço", disse então o parlamentar do PCP..O prazo para o Parlamento terminar os trabalhos da comissão acaba em março de 2019.