Basta ouvir aquele assobio. E de repente somos transportados para uma terra com sol e sem lei onde os bons, os maus e os vilões têm a pistola sempre pronta a disparar. Esse é o poder das grandes bandas sonoras. "São obras que vivem por si só mas que, para quem viu os filmes, trazem consigo todo um imaginário", explica o músico Pedro Janela. No caso de O Bom, o Mau e o Vilão (1966), o filme de Sergio Leone, é quase impossível imaginar como seria aquela história sem a música de Ennio Morricone. Mas quem quiser ter a experiência da música e imaginar o resto tem uma oportunidade única: é correr para apanhar os últimos bilhetes disponíveis para o concerto 60 Years of Music, nesta segunda-feira, na Altice Arena, em Lisboa, no qual o próprio Morricone conduz a orquestra e o coro que interpretam alguns dos seus temas mais conhecidos..Morricone, o compositor da banda sonora de filmes como Era Uma Vez na América (1984), também de Leone, Os Intocáveis (1987), de Brian de Palma, ou Sacanas sem Lei (2009), de Tarantino, é maior ídolo de Pedro Janela, um dos poucos compositores portugueses que trabalham regulamente em audiovisual e que tem no seu currículo as bandas sonoras de filmes como Al Berto (2017), de Vicente Alves do Ó, ou Soldado Milhões (2018), de Gonçalo Galvão Teles e Jorge Paixão da Costa.."Sou fã do trabalho dele. Gosto particularmente de Cinema Paraíso [de Giuseppe Tornatore, 1988] porque aqui a música é uma personagem do filme, tão importante como qualquer outra", explica. Isso é algo que nem sempre acontece. "Em muitos filmes, a música é quase como um papel de parede, está lá para cumprir uma função quase decorativa", queixa-se. Mas com Morricone isso nunca acontece..Quando dizemos que será uma oportunidade única referimo-nos ao facto de o compositor, de 90 anos, ter anunciado que esta é a sua digressão de despedida, que terminará em breve no seu país de origem, Itália, com seis concertos em Roma e uma última atuação no Festival de Verão de Lucca, na Toscana. A digressão mundial 60 Years of Music começou em 2016 e já passou por 35 países: até agora foram mais de 50 concertos para cerca de 650 mil espectadores, refere a promotora Everything is New..No total, são mais de 200 pessoas em palco, entre as quais a cantora portuguesa Dulce Pontes, que colabora com Morricone desde o seu álbum Focus (2003), no qual interpretava temas do cinema, como A Rose Among, do filme A Missão, mas também temas originais. "Não é todos os dias que o maestro Ennio Morricone nos dá de bandeja temas para cantar", comentou na altura a cantora portuguesa, tanto mais que o compositor italiano se inspirou na voz dela para compor alguns deles. De então para cá, Dulce Pontes tem participado em vários concertos das digressões do italiano.."Sinto-me privilegiado e excitado por celebrar 90 anos em tão boa forma física. É uma bênção poder continuar a dirigir os meus concertos em tantas maravilhosas cidades europeias e estou muito contente com a generosidade que o meu público continua a demonstrar", disse Ennio Morricone que, no mês passado, recebeu a Medalha de Ouro Pontífica, que lhe foi entregue pelo cardeal Gianfranco Ravasi em nome do Papa Francisco pelo seu "extraordinário trabalho artístico na esfera da música, linguagem universal da paz, da solidariedade e espiritualidade". Mais um prémio a juntar aos muitos galardões que recebeu ao longo da sua carreira, incluindo um Óscar para Melhor Banda Sonora Original por Os Oito Odiados (2015), de Quentin Tarantino, e um Óscar de carreira atribuído em 2007.."Gosto realmente de dirigir a minha música em concertos", disse Morricone numa entrevista ao The Independent em 2016, "porque estou convencido de que aquela música não é só para filmes, tem uma vida própria. Pode viver muito longe das imagens do filme." "Quando aceito fazer a música de um filme, tenho de gostar do realizador", explicou numa outra entrevista o autor das músicas de A Missão (1986), de Roland Joffe, que lhe valeu uma das suas seis nomeações para os Óscares. "Mas a história também é importante porque as duas coisas têm de estar ligadas para o projeto resultar.".Esta moda de "ouvir os filmes".O concerto de Ennio Morricone é apenas mais um dos vários concertos com músicas de filmes que têm vindo a Portugal. No sábado passado, no Coliseu de Lisboa, aconteceu o concerto A Melhor Música do Cinema - Especial John Williams, em que a Film Symphony Orchestra interpretou temas da banda sonora de filmes como Harry Potter e a Pedra Filosofal, Star Wars, Indiana Jones, Jurassic Park, Tubarões, Super Homem, ET e outros clássicos. Um dos compositores mais conceituados de Hollywood e autor da conhecidíssima música da saga Guerra das Estrelas (o primeiro filme é de 1977), John Williams é, como se vê, um colaborador habitual do realizador Steven Spielberg e é também muito premiado: ganhou 24 prémios Grammy e tem 51 nomeações para os Óscares (é a segunda pessoa mais nomeada, a seguir a Walt Disney) - tendo ganho cinco vezes..E, depois do sucesso do concerto em abril, o espetáculo The World of Hans Zimmer irá regressar à Altice Arena, em Lisboa, a 8 de dezembro. Embora Zimmer não esteja no concerto, é ele o diretor musical e curador da digressão em que são interpretados temas de filmes como O Rei Leão, Gladiador, Piratas das Caraíbas, O Código Da Vinci, O Cavaleiro das Trevas, Inception ou Interstellar. O compositor alemão tem trabalhado com realizadores como Ridley Scott, Terrence Mallick, Ron Howard, Michael Bay e Christopher Nolan, tendo ganho um Óscar por o Rei Leão (1994) mas tendo sido já várias vezes nomeado.."Um filme é como uma ópera, é a obra de arte total. Existe uma contaminação entre a arte e a imagem em movimento, as suas artes completam-se", diz Pedro Janela. No entanto, "sendo uma obra instrumental", pode perfeitamente viver para além do filme. Na sua opinião estes concertos têm um apelo acrescido porque são a possibilidade de ouvir uma orquestra ao vivo e, ao mesmo tempo, recordar o imaginário dos filmes..João Moreira dos Santos, autor de diversas obras sobre jazz e produtor de concertos e festivais, incluindo o Allgarve Jazz (2008-2009), também considera que o mais interessante nestes espetáculos é, precisamente, "a possibilidade de mergulhar no universo, naquele ambiente mágico dos filmes que me marcaram e que ficaram para a vida. Viver, no fundo, uma nova experiência, associada a uma obra que já se viu múltiplas vezes, mas que no formato de concerto nos convida a fazer uma nova leitura e oferece novas emoções". "A música tem tudo que ver com emoções, tal como o cinema, pelo que a ligação entre ambas as artes é não só natural, como amplia o fascínio que cada uma já gera por si mesma", afirma..Tudo isto contribui para o sucesso destes eventos. E "também há um fenómeno de massas", admite Pedro Janela. "São espetáculos pensados para um grande público e que têm grandes meios de promoção."."Pessoalmente, como estou ligado à música, interessam-me muito as orquestras em si, o compositor e o filme. Se falhar um destes três vetores, dificilmente um espetáculo deste género me atrai", diz João Moreira dos Santos. "Não me espanta que estes espetáculos sejam um sucesso de audiências..Desde logo, porque vivemos numa sociedade visual, cada vez mais baseada no paradigma da imagem em movimento, seja através de filmes, jogos ou outras animações. Depois, porque o cinema continua a fascinar e, portanto, cria público para ouvir as bandas sonoras, que ficam como um outro legado artístico. Finalmente, creio que o público está muito disponível para espetáculos musicais com uma forte componente multimédia, o que não é comum em certos géneros musicais. Como produtor, penso que temos bastante a aprender com estes exemplos, embora continue a achar que a música vale por si e não pode nem deve ser subalternizada."