"Empatia com pais de uma criança que morre é pelo estar, não por opinar nas redes sociais"
Tinha seis anos e o seu nome não se sabe. Vivia em Lisboa e frequentava uma escola do primeiro ciclo da cidade. E na tarde de sábado entrou na urgência do Hospital de Santa Maria com uma paragem cardiorrespiratória. Foi reanimado, mas no dia a seguir não resistiu. O DN soube que na manhã desse sábado a criança terá começado com febre. O autoteste que fez deu positivo à covid-19. O resultado foi confirmado depois no teste realizado no hospital. Oito dias antes a criança, do sexo masculino, tinha recebido a primeira dose da vacina contra a doença. A data da sua morte é 16 de janeiro de 2022, mas sobre a causa do óbito ainda nada se sabe.
O hospital pediu uma autópsia para averiguar o que se passou e notificou a Direção-Geral da Saúde e o Infarmed para investigarem uma possível reação adversa à vacina. Mas a partir daqui não mais pararam as reações à morte desta criança e os comentários sobre o que terá acontecido, sobre o que terá provocado a paragem cardiorrespiratória e o que terá levado a este desfecho.
O processo no hospital e nas autoridades de saúde está em curso e o DN contactou o Centro Hospitalar Universitário Lisboa Norte (CHULN), que disse nada ter a acrescentar à nota que foi emitida na segunda-feira, onde dava conta de que pediu uma autópsia para averiguar o que se passou. Contactada a autoridade do medicamento (Infarmed), disse precisamente a mesma coisa: "Aguardamos mais informação sobre o caso." Do lado dos técnicos, o DN contactou vários pediatras, que não quiseram prestar declarações. "O processo está a seguir o seu curso natural. É preciso aguardar por mais informação para se saber o que se passou", disseram-nos.
Duarte Nuno Vieira, professor universitário de Ciências Forenses e ex-presidente do Instituto de Medicina Legal, explicou ao DN que o processo de autópsia vai ser igual a qualquer outro, mas tanto pode ser resolvido em duas a três semanas como pode levar dois meses até se descobrir o que aconteceu. Ou até, refere o especialista, "chegar ao fim desse tempo e os resultados serem inconclusivos, o que acontece em 5% a 10% das mortes que são autopsiadas".
Um especialista em vacinas, que também não aceitou fazer considerações sobre o caso, disse ao DN que a situação exige mais informação, embora, assegure, "neste momento toda a informação que temos disponível no mundo sobre as vacinas em idade pediátrica é que estas são seguras", especificando até que a questão levantada pelos médicos pediatras que rejeitavam a vacinação "não era pela segurança das vacinas, mas pela utilização das vacinas em crianças saudáveis". A Procuradoria-Geral da República já anunciou também ter aberto um inquérito para averiguar as causas do incidente.
Mas nas redes sociais alguns parecem já saber o que terá acontecido. Os comentários explodiram. Não sobre o desgosto de pais que perdem filhos, como fazer o luto ou como ajudar numa altura destas, mas sobre as vacinas e o que estas podem provocar. Comentários que surgiam de vários lados e sobretudo de quem está contra as vacinas. Questionada pelo DN sobre o impacto de tais comentários, a psiquiatra Ana Vasconcelos disse sem hesitação: "Nesta altura, a única coisa a fazer é mandar calar as redes sociais", porque, mesmo que se diga que se comenta o caso por solidariedade ou por empatia com os pais, "as redes sociais só têm de se calar. A pior coisa que há para alguém que entra num desgosto máximo, que é o de perder um filho, para o qual não há palavras para o expressar, as pessoas ficam loucas de dor, é haver situações, comentários, reações que lhes possam colocar um processo de culpabilização em cima ou dúvidas sobre se fizeram tudo o que deviam ou não".
Para a psiquiatra, alguns comentários não passam de "más-línguas, que não podem ser atiradas para quem está a iniciar um desgosto pela perda de uma criança". As pessoas escrevem e falam sem saberem como é a dor dos outros, refere. E quanto ao que se deve fazer numa altura destas, mesmo que seja para expressar solidariedade, a médica é perentória: "Num caso destes, a empatia com os pais deve ser no estar, pelo modo de se ser pai, avô, filho, amigo, e nunca pelo opinar, pela má-língua de dar opiniões sobre a situação ou sobre culpados."
O processo de averiguação sobre o que aconteceu pode levar algum tempo. Segundo explicou ao DN o ex-presidente do IML, "as autópsias seguem sempre um conjunto de procedimentos comuns, mas depois podem exigir procedimentos adicionais em função do que se suspeita. Tudo dependerá do que a autópsia mostrar. Se houver logo alguma evidência, será até muito mais simples, mas se vier mostrar que são necessários exames complementares ou histopatológicos ou até estudos de genética, isso irá demorar algum tempo até todo o processo estar concluído".
Duarte Nuno Vieira refere que se trata de uma autópsia clínica e que habitualmente há um período de 60 dias úteis para dar tempo a que todos os exames necessários sejam realizados, mas lembra também que pode dar-se o caso de se chegar ao fim e de os resultados serem inconclusivos. "Em todo o mundo, 5% a 10% das autópsias são inconclusivas, porque há causas de morte que não são visíveis nas autópsias", frisa, acrescentando: "Temos de ter esta noção. A autópsia é um passo fundamental para se procurar esclarecer o que ocorreu, mas com a certeza de que poderá não proporcionar um esclarecimento definitivo, embora na esmagadora maioria dos casos permita tirar conclusões. Sem autópsia é que ficaríamos totalmente na penumbra. Portanto, esta é fundamental para se procurar esclarecer o que terá acontecido."
Questionado o CHULN sobre prazos, foi-nos dito não haver informação sobre quando haverá resultados. A Ordem dos Médicos, na manhã de ontem, enviou um comunicado a referir que, em primeiro lugar, expressa "solidariedade à família num momento tão difícil", mas em relação à causa de morte apelou à população que "mantenha a serenidade que uma situação destas exige", reiterando ser "necessário aguardar pelas conclusões da equipa forense, nomeadamente pelos resultados da autópsia médico-legal e potenciais exames toxicológicos. A Ordem dos Médicos continuará a acompanhar a situação e apela a uma rápida atuação de todas as autoridades competentes para esclarecimento cabal dos factos".
O DN ouviu ainda um imunologista especialista em vacinas sobre a possibilidade de a causa poder ser mesmo uma reação adversa, que recordou os relatórios de farmacovigilância internacionais sobre a segurança das vacinas, referindo que "a informação disponível sobre as vacinas continua a dizer-nos que as vacinas são seguras. Nos EUA, há mais de 8,7 milhões de crianças vacinadas e as reações adversas são raríssimas e o que sabemos é que as reações em causa não se têm manifestado à primeira dose, mas à segunda, e em crianças mais velhas do que esta". Contudo, concorda ser necessário saber-se mais sobre o que se passou.
Em relação a Portugal, o último relatório de farmacovigilância sobre a vacinação contra a covid-19, datado de 7 de janeiro e que é publicado mensalmente, revela que até 31 de dezembro tinham sido vacinadas 95.797 crianças e notificadas seis reações adversas, quatro graves e duas não graves. "Na faixa etária dos 5-11 anos, os seis casos notificados incluem arrepios, dor no local de vacinação, mal-estar geral, pirexia, petéquias e um caso de miocardite, sendo que este último ocorreu em criança de 10 anos com evolução clínica de cura."
O relatório refere ainda que "a miocardite e a pericardite são doenças inflamatórias de etiologia variada, normalmente associadas, sobretudo nesta faixa etária, a infeções virais, o que dificulta o estabelecimento de uma relação causal com a vacina".
No entanto, e de acordo com os boletins diários de vacinação da DGS, até segunda-feira tinham sido vacinadas 300.908 crianças dos 5 aos 11 anos. Em relação à doença, e ainda de acordo com a informação disponível nos boletins da DGS, desde o início da pandemia foi registado um total de 145.773 infetados de covid-19 na faixa etária dos 0 aos 9 anos (74.362 rapazes e 71.411 raparigas). E há a registar três óbitos, dois do sexo masculino e um do feminino. Em quase dois anos de pandemia, o país soma 1.950.620 de infetados e 19.380 óbitos.
O caso desta criança deixou alguns pais receosos e outros com dúvidas sobre o que fazer em relação aos filhos. Se ainda os devem vacinar ou se devem interromper o processo de vacinação, adiando a segunda dose ou não a dando de todo. O especialista em vacinas reitera que "o processo não deve ser interrompido".
Um dos pediatras contactados pelo DN defendeu o mesmo. "O processo não deve ser interrompido. O que se sabe das reações adversas à vacinação em crianças é que estas são raras, não se conhece nenhum caso no mundo de reação à primeira dose. As reações notificadas foram à segunda dose e em crianças mais velhas", explicou a pediatra. O DN sabe, no entanto, que ontem mesmo alguns pediatras pediram aos pais para aguardarem mais informação antes de avançarem para a segunda dose.
Quer se queira quer não, este caso pode ter impacto na vacinação das crianças. Por isso contactámos a Sociedade Portuguesa de Pediatria (SPP), que em dezembro deu parecer positivo à vacinação, para saber o que se poderia dizer ou aconselhar aos pais numa situação destas, mas não obtivemos resposta.