Emigrantes matam saudades em terras de Memória
A fase gravada na pedra é uma homenagem a quem emigrou de Memória, uma freguesia do concelho de Leiria, capital de um dos distritos portugueses mais marcados pela emigração. Legenda do monumento ao emigrante, que os próprios custearam, faz parte do adro da igreja desde 21 de agosto de 1993, data que coincidiu com as festas da vila.
O monumento lembra todos os que partiram, com particular incidência nos anos 60 do século XX, quase exclusivamente para França. Emigrantes de 1.ª, 2.ª e 3. ª gerações que regressam todos os anos em agosto para visitar a família, deliciar-se com a comida, aproveitar o sol, carregar baterias para o ano, para tudo recomeçar no verão seguinte.
As casas ganham vida - algumas com os tetos inclinados a lembrar os edifícios da Europa do Norte por causa da neve - como o café, o minimercado e a bomba de combustível, os únicos estabelecimentos comerciais no centro de Memória, além de um café na aldeia do Toco. Estes triplicam ou mais o negócio, as noites vão até às tantas, muito longe do silêncio do resto do ano. Neste fim de semana são as festas da Nossa Senhora da Memória, que marcam, também, a debandada dos filhos da terra.
"O meu pai tinha cinco semanas de férias e chegávamos primeiro do que todos os outros. As casas estavam fechadas, as ruas desertas. Quatro a cinco dias, depois abria-se uma porta e as janelas aqui, outra ali, até ficarem todas as abertas. E, quando regressávamos a França, voltava a estar tudo fechado. Mais de 90 % das pessoas que aqui estão em agosto são emigrantes." Eis as contas de Maria Cristina Pereira, 55 anos, empregada de escritório.
Está à conversa com o marido, os sogros, a tia e uma vizinha, faz uma colcha em crochêpara o neto que vai nascer, aproveita os últimos dias de férias. Chegaram no início de agosto e só partem no início de setembro.
Com o termómetro a ultrapassar os 30 graus, há quem faça a sesta, uns vão à piscina de Matas, nas proximidades, outros procuram as praias, as mais próximas são as de Vieira de Leiria, Pedrógão e São Pedro de Moel.
Cristina e o marido, Emídio Marques, 55 anos, que trabalha numa fábrica de moldes, são os únicos que ainda trabalham numa roda de cinco pessoas, todos emigrados. Os filhos já regressaram à região de Paris, onde habitam, e também veranearam no Algarve. Se antigamente os emigrantes passavam todas as suas férias na vila, atualmente repartem-nas por outros destinos, não só em Portugal como no estrangeiro, sobretudo as gerações mais novas.
Preguiçam no terraço da casa de Alfredo Marques, 77 anos, e de Maria de Jesus, 75, os pais de Emídio, construída em 1963 e que já sofreu remodelações. Participam, ainda, no convívio a irmã de Alfredo, Maria Eulália Lopes, 75 anos, rececionista de supermercado francês e que regressou definitivamente há cinco anos, além de Gracinda Lopes, 82 anos, que se mantém em França.
Alberto Marques emigrou para França aos 19 anos, para a apanha do cogumelo, depois aprendeu o ofício de pedreiro e fixou-se numa grande empresa de construção. Casou-se com Maria de Jesus em 1963, mas ela só foi ao seu encontro dois anos depois, tinha o Emídio 2 anos e a filha "ia na barriga".
"Fui ter com ele a França e ele dizia sempre que regressava quando casassem os filhos, casaram os filhos, já casaram os netos e ele ainda lá está", brinca a mulher, Maria de Jesus. Ao que o marido responde: "São 58 anos fora, é uma vida. Tenho lá a família."
Assistem com ironia ao interesse dos franceses por Portugal, que até há uns anos só conheciam como a terra dos seus empregados. Justifica Emídio: "Dizem que é perto de casa, gostam da comida e é seguro." Acrescenta Cristina: "Tenho colegas que vêm cá todos os anos, quando antes nem mostravam interesse em conhecer. Iam a Grécia, Tunísia, Egito, Marrocos."
Ficam ainda mais uma semana, partem depois da Festa da Nossa Senhora da Memória, mas despacharam uma encomenda para França: azeite, chouriço, broa e latas de conserva, sobretudo de atum. "Há lá de tudo, mas levado de cá parece que sabe melhor", justifica o Emídio.
São precisamente os produtos mais vendidos no minimercado Fábula Verde, também muitas garrafas de vinho do Porto, além de tudo o que se consome no dia-a-dia, só que neste mês em grandes quantidades.
"O negócio mais do que duplica em agosto, mas mesmo assim já foi melhor, as pessoas não ficam o mês todo, vão uns e vêm outros. Depois da festa vai tudo embora", lamenta-se João Paulo, 47 anos, que tem mais dois estabelecimentos do género no concelho de Leiria.
Memória pertence à União das Freguesias de Colmeias desde a agregação de 2013, voltando à estrutura anterior a 1985. Fica num alto da serra, onde se chega por uma estrada de curvas, com muitas casas mas que estão vazias durante o ano. Reza a lenda que a vila nasceu de uma ermida construída por um homem a quem uma águia roubou o bebé que este tinha levado para o campo enquanto cuidava das terras - naquele tempo não havia onde deixar as crianças. O homem terá corrido atrás da águia, que acabou por largar a criança no alto dos caminhos, onde ele ergueu a ermida e existe, agora, a igreja matriz.
O acesso à terra é demorado, mais facilitado quando se construiu a Estrada Nacional 350, que fez a ligação a Albergaria dos Doze e onde passa o caminho-de-ferro, mas também esta estação ferroviária já teve maior importância, A estrada divide os distritos de Santarém e de Leiria, de um lado a Memória e, do outro, Espite, igualmente com muita emigração.
Os Censos de 2011 indicam 807 habitantes na vila da Memória, a segunda freguesia mais pequena do concelho de Leiria e uma das mais pequenas do distrito. Em 1960 eram 1546, número que tem vindo sempre a reduzir.
"Não vive aqui ninguém. Há menos crianças agora em todo o lugar do que havia na minha rua quando era cachopo, e eram só duas casas, a da minha mãe, que tinha cinco filhos, e a da minha vizinha, que tinha sete", exemplifica Vítor Henriques, mais conhecido por "professor".
Tem 62 anos e é um dos poucos filhos da Memória que ficaram, tem emigrantes na família mas não tantos como a maioria dos locais. "O meu pai sofreu tanto que nunca quis levar para lá a mulher e os filhos."
O pai de Vítor emigrou para França no fim dos anos 50 do século passado já com um contrato de trabalho. Mas quem partiu depois dos anos 1960, o que coincidiu com o início da Guerra Colonial, em 1961, foi "a salto", fugiam do país.
O pai morreu tinha Vítor 16 anos e ele trabalhou enquanto estudou, primeiro o Magistério Primário e, depois, a licenciatura em História. Foi sempre professor do 1. º ciclo, também na escola da Memória, que fechou há meia dúzia de anos. Também já não existe o centro de saúde, que tinha sido inaugurado em 1982, como não há uma estação de correios e, para os assuntos administrativos, a junta de freguesia recebe apenas às terças e quintas, entre as 09.00 e as 10.30. Além de dois cafés e do minimercado, tem um cabeleireiro, uma farmácia, um lar e um centro de dia, o resto são terrenos agrícolas votados ao abandono.
Vítor Henriques lembra-se de ouvir falar numa fábrica de telha e de outra de resina, onde o pai até trabalhou, mas foi na primeira metade do século passado. "A única coisa que havia era a agricultura e os homens acabaram por emigrar. As mulheres daquela geração foram umas heroínas. Tratavam dos filhos e da economia doméstica, faziam tudo, lavravam as terras com os bois, faziam o vinho, apanhavam a azeitona."
A maioria das crianças que ensinou a ler não emigraram para o estrangeiro, mas também não se fixaram na Memória, foram para a cidade.
Em agosto, juntam-se todos, para grande alegria dos comerciantes. "Uns vão e outros vêm, agosto é o mês do movimento, nunca fechamos, temos de aproveitar o andamento. No inverno, fechamos a tasca antes da meia-noite e, ainda ontem [quarta-feira] fechámos às cinco da manhã, e o ambiente é muito diferente. É malta nova, que gosta de beber shots (CR7 e Myke Tyson, entre outros), cocktails (mojitos, caipirinhas e afins), de bitoques, hambúrgueres, bifanas e tostas de atum. Há também a sala de jogos. No resto do ano, bebem um café, umas águas, uma Macieira", explica Nelson Santos, 47 anos, filho de José Santos, dono do café-restaurante Jolinel e das bombas de combustível, que ficam à entrada da vila.
Nelson é segurança de profissão, mas dá uma ajuda neste mês, em que contratam seis funcionários, quando chega um no resto do ano. E faturam seis vezes mais.
Em agosto na Memória ouvem-se conversas em francês, dão quatro beijos por cumprimento, todos se conhecem, dos mais novos aos mais velhos. Um grupo de sete jovens, sentados à entrada do café, descreve um dia de férias perfeito. "Durante o dia andamos por aí, podemos ir à praia ou à piscina, passámos pelo café do senhor João, depois vamos jogar futsal ou bilhar, jantamos, voltamos ao café e, lá pelas duas da manhã, vamos ao Palace Kiay [a grande discoteca da região]".
As férias em Portugal são sagradas, para estar não só com os pais mas com os avós, os tios, com toda a família, comer e divertirem-se. Descontraídos e brincalhões, apresentam-se: Diogo Silva, 28 anos, canalizador, o único que nasceu na vila (emigrou aos 15 anos), e a companheira, Lindsay Armand, 29 anos, assistente de produção, da ilha francesa de Reunião; o casal William Ferreira, 26 anos, mecânico, e Anais Maista, 26 anos, contabilista, francesa; o casal Armando Martins, 31 anos, canalizador, e Alexies Torronnato, 30 anos, vendedora, italiana, e Jeremy Gameiro, 29 anos, condutor de pesados, que traz a camisola número 5 da seleção, a de Raphäel Guerreiro, cuja família também emigrou para França.
"É uma tradição vir a Portugal, em Paris também nos encontramos e frequentamos as mesmas discotecas [Lua Vista e Vilamoura], mas aqui há sol, o que não temos em França, tempo. Não ficamos sempre na Memória, estivemos no Algarve, em Portimão e Albufeira, e é sempre festa", diz o Armando. A companheira há sete anos que vem a Portugal e adora, sobretudo da tosta de atum, que tem muita saída no café Jolinel.
A partir de amanhã é a debandada para França, até porque o ano letivo começa no início de setembro. Quem já não faz essa viagem é Conceição Henrique, 86 anos, que regressou definitivamente à Memória, mas para o lar. "Esteve toda a vida em França, mas agora não pode ficar sozinha e nós trabalhamos, veio para aqui por estarem cá as duas irmãs", explica a filha, Odete Pereira, 57 anos, que trabalha como ama e já nasceu num hospital francês. E saudades, Conceição? "Gostava de lá voltar, mas já sou velha." Tem quatro filhos, oito netos e oito bisnetos, todos em França.
O marido de Odete, António Pereira, 60 anos, ladrilhador, tinha 24 anos quando emigrou. Têm dois filhos, três netos e outro a caminho. Vêm duas vezes por ano a Portugal desde que a mãe da Odete regressou e não pensam fixar-se no país de origem para já. Se isso acontecer, já não será na freguesia, mas mais perto da capital de distrito, Leiria. Além de que têm uma casa em Manta Rota, Algarve, que toda a família partilha.
"Temos a maior parte da família em França, mas não há como as nossas comidas, o clima, e parece que aqui não há stress, lá é tudo a correr", comenta a Odete. Brinca o marido: "Isso é verdade, vai-se aqui a uma loja que devia abrir às 09.00 e às 09.15 ainda está fechada; ao fim do dia fecha mais cedo. Quando me reformar, venho para cá, compro um negócio e ponho uma tabuleta: 'Volto já' ou 'Não me demoro'.
Memória está a dias de voltar à pasmaceira habitual. Mas o professor observa a propósito de tantas partidas. "Apesar de sermos esta terra desertificada, temos duas associações juvenis: o Clube Recreativo e Cultural 'Os Águias', de hóquei em patins, e o Clube Nacional de Escuteiros da Memória." Um orgulho, mesmo que grande parte dos seus elementos não sejam da terra.