EMEL. Os homens e as mulheres por trás das fardas mais odiadas de Lisboa
As bicicletas desaceleram, muitos abrandam ou param para ver, há quem erga o telemóvel para filmar ou fotografar. Não conseguimos ouvir os comentários, apenas vemos as cabeças a abanar em sinal de reprovação. A sensação que se tem é a de ser cúmplice num crime apenas por estar com eles. André Elias, agente da Empresa Municipal de Mobilidade e Estacionamento de Lisboa (EMEL) há dois anos, e José Figueiredo, há dez, estão a bloquear um carro estacionado num lugar de cargas e descargas na Avenida Duque de Ávila, em Lisboa.
Antes, André trabalhou numa loja de roupa. "Nunca pensei vir para a EMEL, mas o meu pai falou-me desta oportunidade, candidatei-me, gostei da formação de três ou quatro meses. Quando vim para a prática gostei ainda mais e penso que é um serviço que alguém tem de fazer. Claro que às vezes é complicado. Isto é um serviço público que a gente está a tentar prestar aos cidadãos. A quantidade de carros que entra em Lisboa seria muito maior se não houvesse uma empresa a fiscalizar o estacionamento. Mas por mais que a gente tenha bom senso e faça um bom trabalho ninguém nos reconhece. Não é bonito fazer isto. Indiretamente estamos a tirar dinheiro do bolso das pessoas. Mas não somos nós que pomos lá o carro. É um bocado inglório, mas pronto."
Voltamos a entrar na carrinha, uma dessas que os lisboetas quase temem quando veem aproximar-se da zona onde têm o carro estacionado, e seguimos para a Rua Pinheiro Chagas. Um homem esperava-os para desbloquearem o seu carro. Já lá tinham estado antes. Como o condutor não tinha dinheiro na conta para pagar a coima de 69 euros, combinaram voltar.
Lá estávamos. Ainda sem dinheiro, ao condutor é explicado que pode entregar a carta de condução e levantá-la na esquadra após pagar a multa. Até lá, uma guia permite-lhe conduzir. "Isto é válido? Quem me garante?", pergunta subindo o tom. "A ANSR [A Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária]", responde André Elias.
O tom volta a subir, com mais manifestações de desconfiança por parte do condutor. "Acha que eu ando aqui a brincar com a vida das pessoas", pergunta o fiscal. "Vocês estão a fazer o vosso trabalho mas também estão a prejudicar o trabalho dos outros. Há colegas vossos que andam na caça à multa", responde o homem. O carro é desbloqueado.
Há sempre carros para bloquear e desbloquear. Em 2017, segundo o relatório de contas da empresa, a EMEL efetuou 45 919 desbloqueamentos e emitiu um total de contraordenações de 307 829. Apesar disso, a maioria dos seus rendimentos, que no ano passado atingiram 35,5 milhões, vêm da exploração do estacionamento, com as contraordenações a representarem 13% e os bloqueios e reboques 12%.
"Isto é a EMEL", diz José Figueiredo, que antes de vir para a EMEL trabalhava na área da informática. Perguntamos-lhe pelas situações complicadas. Agressões verbais, diz, são diárias. Uma vez sofreu uma agressão física. "Um senhor foi bloqueado, chegou ao pé de mim e disse: "Tira isso, tira isso que eu não pago." E partiu para a violência. Quem está a assistir não quer chatice."
Noutra vez, juntos, pois que nesta função os fiscais andam sempre em equipas de dois elementos, foram ameaçados. "Empurraram-nos, chamaram-nos tudo e mais alguma coisa, ameaçaram-nos. "Tira-me já isto senão levas nos cornos." Tiraram-nos as chaves da carrinha."
As histórias multiplicam-se. Passamos por outro agente de fiscalização, apeado, que anda sozinho, como é costume naquela função. "Esse também já foi agredido, mas não vai querer falar." Contam que perto do Campus de Justiça, no Parque das Nações, dois colegas foram ameaçados com armas de fogo. Uma vez, um fiscal chegou mesmo a ser atingido na perna com uma bala de baixa pressão. A brincar, chamam-lhe Chumbinho. Outro colega foi agredido por ter bloqueado um carro que estava estacionado no lugar das cargas e descargas, embora tivesse pago.
"No tribunal ainda questionaram porque é que [o fiscal] bloqueou se a pessoa estava a pagar. Quando vejo um carro que está em infração e sei que vai estar ali até às seis da tarde, porque pagou, e ainda são três, se eu não consigo falar com a pessoa o que é que vou fazer? Esperar até às seis? Não faço o meu trabalho e quem quer carregar e descarregar nessa artéria tem de fazê-lo na faixa de rodagem", pergunta André Elias.
Paramos perto da Maternidade Alfredo da Costa. O carro de Fátima, apesar de ter o dístico de deficiente (isento de pagamento), foi bloqueado por estar estacionado no lugar das cargas e descargas. O seu neto Lourenço nascera há pouco, com 2,5 quilos. Fátima anda sempre a correr. O seu filho sofreu um acidente há alguns anos que o deixou amputado de braços e pernas e dependente dela. Daí o dístico. Do hospital correria para fazer voluntariado no Refood, que distribui comida aos sem-abrigo. "A gente quando anda a correr enfia o carro no primeiro buraco que vê", diz ao DN. Garante que vai reclamar. O mais provável, explicam-nos depois, é que seja reembolsada.
Logo a seguir, espera outro condutor com o carro bloqueado. O clima é bem mais tenso. O condutor pede o cartão de cidadão de André para o fotografar. "Isto vai para a SIC", ameaça. O agente de fiscalização diz-lhe o seu nome completo, mas não lhe permite que fotografe. O condutor diz que, na forma em que está, o sinal "é uma armadilha". Mas avisa: "Não leve isto pessoalmente." O fiscal vai respondendo. O condutor paga e seguimos novamente.
Já na carrinha, André Elias lança: "Julgam que nós somos uns zés-ninguém e que nos podem ameaçar. Tirei o meu curso, passei, e estou a cumprir as minhas funções. Claro que tenho de ouvir o desagrado das pessoas, mas a partir do momento em que passa para um nível pessoal, em que me pede o meu nome e me ameaça diretamente, tenho de me defender."
Passa pouco das oito da manhã quando Gonçalo Martins e Pedro Cardoso se aproximam, de moto, da Avenida 5 de Outubro, bastante congestionada. Depois de avançarem um pouco, identificam o problema. Há um camião que está a descarregar na faixa de rodagem. Os dois elementos da Brigada de Intervenção Rápida da EMEL, que existe há menos de um ano, falam com o condutor. O lugar das cargas e descargas está ocupado, explica-lhes este. Avançam. Nesse lugar está um outro condutor que ali estacionou e está no café ao lado. Pedem-lhe que tire o carro. O camião dá a volta e estaciona no lugar certo.
Esta recente equipa da EMEL, que trabalha em coordenação com a polícia municipal e a Carris, foi criada para intervir no estacionamento irregular, sobretudo segunda fila e faixas BUS, e ajudar à fluidez dos transportes públicos.
Seguimos para a Rua de São Paulo, onde habitualmente o elétrico tem dificuldades de circulação, mas antes paramos na Rua D. Pedro V, onde houve um acidente entre uma carrinha e uma moto. Os dois agentes ajudam a organizar o trânsito enquanto a polícia não chega. Continuamos Chiado abaixo, com algumas paragens para retirar carros da segunda fila. As pessoas queixam-se, dizendo que estão a trabalhar e não há onde estacionar.
Há muitos anos na empresa, os dois agentes dizem saber já enumerar de cor as desculpas mais frequentes dos condutores. Afinal, passaram por todas as áreas de fiscalização, de apeados aos bloqueadores/desbloqueadores, maioritariamente considerada a área mais tensa. Gonçalo Martins enumera as desculpas: "Não estou estacionado, estou parado; estou a descarregar; ponho todos os dias e vem logo hoje; precisei de ir ao banco; estamos a trabalhar e vêm vocês; não tinha moedas... Já me deixaram papelinhos [que diziam]: Senhor fiscal, desculpe mas como não tinha moedas não pude pagar. Não me multe, por favor."
Dizem que agora os elogios são cada vez mais frequentes também, e que até há quem classifique o seu trabalho como "espetacular". Contudo, as críticas mantêm um nível elevado. Há uma que Pedro Cardoso, também ele pai, não esquece. "Um senhor virou-se para o filho e disse: 'Vês porque é que tens de estudar? Para não fazeres isto.'"
Além dos comentários, há histórias que ficam com eles. Gonçalo Cardoso conta a de um rapaz a quem foi desbloquear o carro, ali mesmo na Rua de São Paulo. "Ele não tinha dinheiro. Disse que para não me bater partiu o para-brisas do carro. Começou a dar pontapés no meu carro. As pessoas juntaram-se e foram elas que lhe pagaram a multa e o desbloqueio. Situação: estava desempregado, estava a fazer um biscate, vivia numa casa alugada que não tinha recibos, não tinha nada, não tinha dístico. Estava desesperado. Aquele bloqueio e eu fomos o rastilho de um barril de pólvora."
Além da vantagem de trabalhar na rua, os dois dizem que é "recompensador" chegar ao final de uma rua, olhar para trás e ver que ajudaram a organizar o trânsito, como aconteceu na Rua D. Pedro V. "Acredito que o nosso serviço pode melhorar a cidade", remata Gonçalo Martins.
Alexandra Mariz entrou na EMEL em 2001, aos 18 anos. Trabalhou três anos nos parques de estacionamento e depois candidatou-se à fiscalização e fez o curso. Mas nem sempre este é o primeiro trabalho dos agentes de fiscalização. Ali existem e existiram professores, árbitros, enfermeiros, contabilistas, pessoas formadas em Direito, ou profissionais da área do fitness. Em início de carreira, o salário bruto de um agente de fiscalização é de 719 euros. A este, e ao contrário do que aconteceu antes de 2012, não acrescem comissões pelas contraordenações que têm a sua assinatura.
O número de mulheres está a crescer e, diz Alexandra, hoje responsável por uma equipa de fiscalização, o seu trabalho é reconhecido sobretudo na área mais dura, de bloquear e desbloquear veículos. "Se formos mulheres o discurso da pessoa para connosco é completamente diferente do que se fossem dois homens. Não sei se é pelo facto de a mulher estar preparada para fazer mais do que uma função ao mesmo tempo - somos a mãe, a dona de casa, a mulher que trabalha, que leva dinheiro para casa - isso trouxe à mulher algum estofo. As mulheres aqui aguentam melhor toda a carga pesada que a função acarreta", considera Alexandra.
Em 2017, os homens representavam 65% no universo de 600 trabalhadores da EMEL, dos quais 214 são agentes de fiscalização de estacionamento, 29 são agentes de fiscalização e 14 são operadores de reboques e bloqueadores.
Saímos da sede da EMEL onde, na hora de almoço, alguns funcionários conversam em grupos, e dirigimo-nos à Avenida 5 de outubro. Quando questionamos Alexandra Mariz acerca das questões mais difíceis da função, responde: "É um calo que se vai ganhando com o tempo e depois acho que é aquele sentido que nós ganhamos de que estamos a fazer o bem pela cidade. É isso que nos incutem na formação também. Temos essa missão de arrumar a cidade e acho que é ela que nos faz desempenhar o nosso papel da melhor forma. Quando peço a alguém para retirar o carro da segunda fila ou para estacionar melhor, tenho sempre esse sentido da missão."
Atualmente Alexandra Mariz acompanha os agentes quando algum condutor pede uma explicação de um superior. Também faz supervisão do trabalho dos agentes. Diz que as agressões verbais são frequentes mas as físicas são esporádicas. O agente que precisar tem na empresa um gabinete de apoio psicológico ao qual pode recorrer. Quanto à preparação para eventuais ataques, explica que foram dadas algumas noções básicas de segurança, embora não tenham constituído aquilo que habitualmente é considerado um curso de autodefesa.
São mais do que muitos os carros estacionados em segunda fila. A agente demora-se perto de alguns e os respetivos condutores acabam por aparecer. Muitos deles estavam a almoçar mesmo ao lado.
"Boa tarde, senhor condutor. Não pode deixar aqui o carro", lança. "Muitos estacionam em segunda fila porque querem ir beber o cafezinho e tem de ser ali. Por exemplo, na Avenida da Igreja o autocarro tem de andar em contramão [por causa das segundas filas]." Quanto à forma como as pessoas reagem, afirma ser dupla. "O facto de as pessoas não gostarem de nós é algo com que nós já convivemos, assim como precisarmos de água diariamente. Depois há aquelas pessoas que dizem que não gostam da EMEL mas, quando têm um carro estacionado em frente à garagem, assim que veem o fiscal da EMEL é a ele que pedem ajuda. O que é caricato..."
Alexandra e Pedro Araújo, o seu marido, conheciam-se da escola, mas foi na empresa que se reencontraram. Ele entrou com 19 anos. Já passou por todas as funções. Atualmente, é um dos agentes responsáveis por fiscalizar o estacionamento nos bairros exclusivos para residentes. Com uma carrinha scanner, passa a pente fino as matrículas de todas as viaturas estacionadas nas zonas do bairro de Alvalade onde só os residentes podem estacionar. Mais atrás, vem, numa moto, outro agente de fiscalização que intervém nos carros sinalizados por Pedro Araújo.
Conta que neste serviço recebe mais elogios e que os residentes lhe agradecem o trabalho que faz. Quanto ao trabalho geral da EMEL, diz: "Estamos aqui para tentar libertar o máximo de carros da cidade de Lisboa. Ao longo do tempo fui vendo isso. Com o que a cidade era há 20 anos, não se nota a diferença? E bem."
Uma das histórias que guarda, da altura em que trabalhava nos bloqueadores/desbloqueadores, é a de uma mulher a quem foi desbloquear o carro na Avenida António Augusto Aguiar. "Tinha tido um acidente na semana anterior, tinha partido o carro todo e andava com um carro de aluguer. Só tinha dinheiro mesmo para o carro, para o dia-a-dia, e precisava mesmo do carro para levar as crianças à escola. Todo o dinheiro que tinha era contado. A senhora estava a chorar como eu nunca tinha visto ninguém. Tive de lhe cobrar, custou-me. É normal: nós não somos máquinas. Mas não havia nada a fazer: estava autuado, estava bloqueado. Essas situações vão ficando.
Acerca do seu trabalho diz que é sobretudo isso, "um trabalho. Tento cumprir o melhor possível no horário laboral, quando estou fora daqui é diferente. Temos de arranjar um escape para não estarmos sempre a pensar nisto. Eu saindo daqui vou para o ginásio, no fim de semana vou para fora".
Quanto aos comentários que ao longo dos anos foi ouvindo, diz que não o afetam. "Sei que não está a falar diretamente para mim. Está a falar para a farda. Se calhar se estivesse do outro lado pensava da mesma maneira."