Em Veneza há (muitos) atores em estado de graça 

É nas interpretações, masculinas e femininas, que Veneza 2022 parece marcar mais pontos. Penélope Cruz, Cate Blanchett, Hong Chau, Brendan Fraser e Virginie Efira são do melhor que se viu. Mas o mais mediático filme foi ontem <em>Não te Preocupes, Querida</em>, de Olivia Wilde, com Harry Styles, o músico que é mesmo ator de respeito...
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Quase todos os festivais elevam a figura do cineasta ao patamar de deus supremo. Tudo é em função do realizador. É o habitual massajar do ego do autor. Aqui, na Sala Grande do Casino, recinto com cadeiras de luxo e arquitetura muito bem conservada, sai pelo microfone sempre uma voz feminina a anunciar o nome do filme e do realizador num inglês macarrónico. Podem estar atores como Brad Pitt, Meryl Streep ou... Harry Styles que os seus nomes ficam sempre para o fim. Em Cannes, por exemplo, nem para o fim - atores? Servem apenas para alegrar o tapete vermelho. Pois bem, este ano no Lido, os grandes talentos não têm sido os criadores mas sim os atores. São eles que abocanham grande parte dos filmes, seja feita honra a quem dá a cara, a quem, na verdade, provoca todo este reboliço em Veneza.

Têm sido muitas as interpretações soberbas na seleção oficial. São variados os atores que aparecem em filmes, muitos deles longe da glória, e que os salvam. Mesmo num filme banal como Espíritos de Inesherin, de Martin McDonagh, Colin Farrell e Brendan Gleeson são um caso à parte. Atores irlandeses a falar com o sotaque certo e a imolar uma melancolia muito insular. Não salvam a coisa, mas são um par de imensa qualidade, tal como Adam Driver e Greta Gerwig, o melhor de um filme falhadíssimo como White Noise.

Mas por estes dias ainda todos estão a recuperar do caso Penelópe Cruz em L'Immensità, dramalhão de Emanuele Crialese que puxa pela atriz espanhola, aqui uma mãe de família a querer fugir de um casamento horrível e com uma relação especial com uma das filhas, neste caso um rapaz preso a um corpo de menina. É de novo Cruz a tornar-se a Sophia Loren dos grandes tempos, uma carga de mulher sensual e de mãe total. Um papel maior do que a vida, mas para figurar no palmarés como melhor atriz o júri liderado por Julianne Moore tem ainda que ter em conta a belga Virginie Efira, neste momento um dos talentos fundamentais no cinema francês. O que ela atinge em Les Enfants des Autres, de Rebecca Zlotovski é da ordem do nunca visto: uma interpretação toda ela luminosa para dar vida a uma mulher a entrar nos 40 que sonha ainda ser mãe e se afeiçoa pela filha de 5 anos do namorado. Uma composição que é o fogo total de um dos melhores filmes vistos este ano no festival.

Para além de tudo isso, dois favoritos aos prémios de interpretação também marcaram o Lido: Brendan Fraser em The Whale, de Darren Aronovsky, e Cate Blanchett, em Tár. O ator que deixou de ter um corpo atraente para a industria de Hollywood é um portento de humanismo na pele de um professor a querer morrer de obesidade. Fraser é melhor do que o próprio filme, às vezes preso aos processos do drama de "inspiração". Elogio também para os secundários, em especial Hong Chau, que pode voltar a ser nomeada como atriz de elenco na temporada dos prémios, e para Samantha Morton, alguém que estava algo esquecida e que aqui, em apenas numa cena, tem uma explosão dramática do outro mundo. Quanto a Cate Blanchett dá sempre a ideia que também "rouba" o filme, não obstante o grau de controlo e hermetismo de Todd Field. Esta sua maestrina é toda verdade. E verdade para a atriz australiana significa dar tudo, desaparecer.

Ontem, fora de competição, também tivemos um filme de uma major americana que aposta tudo nos atores: Não te Preocupes, Querida, de Olivia Wilde. Pode ser também outro dos filmes que sai daqui de Veneza com impulso para os Óscares e Florence Pugh tem legimitidade para sonhar com nomeação. A atriz britânica interpreta uma espécie de Stepford Wife num bairro isolado e de luxo num deserto americano nos anos 1950. Uma mulher-troféu para um engenheiro que está num projeto secreto. Pugh é notável numa personagem cuja vibração emana uma sexualidade inaudita para filme de grande estúdio. Um trabalho de atriz de um rigor de detalhe quase inovador. Esta não é a mesma atriz de Black Widow, está muito mais próxima daquilo que fez em Midsommar.

Não te Preocupes, Querida a nível de interpretações tem ainda dois casos: o da própria Olivia Wilde, dirige-se com uma força quase épica, autêntico prodígio e, claro, Harry Styles, o músico que afinal é ator. Tem cinegenia, garra e boa química com Florence Pugh, apenas era de evitar um enjoativo momento musical em que a sua personagem, o marido perfeito, dança. Talvez tenha sido "sugestão" da Warner. Não é por ele que o filme não voa mais alto. Apesar de eficaz, Don"t Worry Darling nunca será um The Truman Show, apenas "mais um" The Stepford Wives, filme de Frank Oz de 2004 que ninguém se vai lembrar...

Olivia Wilde, atrás da câmara, sabe dirigir e tem um sentido estético com uma volumetria forte e um cuidado cromático evidente, vacilando somente nas imposições das tão já cansativas reviravoltas. Aliás, todo o filme é um "twist".

dnot@dn.pt

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