"Em Portugal houve sempre pouco interesse em estudos científicos sobre a direita"
Quando Riccardo Marchi chegou a Portugal há 20 anos, encontrou-se "perante um vazio enorme na bibliografia portuguesa sobre a direita, designadamente na mais dada ao radicalismo, depois do pós-II Guerra Mundial". Considera que existem alguns trabalhos sobre essa área política durante o Estado Novo, mas não sobre a área da direita radical no fim do século passado e nas duas décadas seguintes. Daí que, diga, este seja um país que "se diferencia de outros europeus, aqueles em que desde os anos 1990 esta área política despertou muito interesse e num estudo que se mantém agora".
Quando se lhe pergunta porque na quase totalidade só entrevistou representantes da direita do sexo masculino, a resposta é rápida: "Não é por acaso que o que me interessa analisar de seguida é o papel da mulher na direita portuguesa. Cruzei-me nas minhas investigações com personagens muito interessantes, como Vera Lagoa ou Maria José Nogueira Pinto, e vejo que agora existe uma nova geração envolvida na vida política de direita. As figuras femininas sempre foram menosprezadas pela historiografia e análise política nacional, pode ser um tema complicado mas é muito interessante. Deparei com essa questão enquanto escrevia este livro e talvez as devesse ter entrevistado, mas quis-me concentrar naqueles que se tornaram os comentadores mais representativos na comunicação social."
Num seu livro anterior pretendeu legitimar André Ventura e o Chega. Qual o objetivo deste?
Esse livro de 2020 não pretendia legitimar o Chega, pois quem o faz são os eleitores quando se apresentou às eleições. No momento em que o os deputados do Chega são eleitos por via democrática, é legitimado como partido político - é a minha opinião, mesmo que nem todos os analistas concordem. O que quis fazer nesse livro foi dar voz a quem não a tinha naquele momento, ou seja, às pessoas que tinham fundado juntamente com André Ventura o partido e perceber quem eram os que tinham acreditado nesse projeto personalista de então.
Essa é também a missão do investigador?
Claro, pegar num tema pouco conhecido e tentar aprofundá-lo através da recolha de dados empíricos, bem como de entrevistas aos fundadores e recolher uma série de informações para se perceber se um novo partido se enquadrava na tipologia dos partidos da política, nomeadamente os partidos populistas da direita radical. A conclusão foi que sim, espero ter demonstrado, que naquela fase enquadrava-se nessa área.
Essa realidade não se alterou?
Não, o que mudou mais foi aquele projeto ter-se consolidado. Quando publiquei o livro nada dizia que se iria afirmar, havia um ponto de interrogação. Quando em dois anos passou de um para doze deputados e de 1,3% de votos para 7% era obra, aliás nem todos os partidos na história da democracia portuguesa conseguiram fazê-lo, principalmente na área da direita. Até acho estranho que nenhum outro investigador tenha feito um bom trabalho sobre este partido até ao momento.
A que se deverá essa ausência?
Possivelmente a dois fatores: primeiro, em Portugal sempre houve pouco interesse em fazer estudos científicos sobre a direita; segundo, nos investigadores mais novos há um receio de se ser rotulado como extremista ou branqueador da direita nos meios académicos.
É uma espécie de dicionário biográfico-político das "estrelas" da direita que ocupam o espaço do comentário. Concorda?
A génese deste livro é diferente do anterior e o que tenho vindo a ver desde então é que os comentadores tinham uma postura de rejeição do fenómeno do populismo de direita. Estamos a falar de um tempo em que já tinha surgido Bolsonaro e Trump, estava em ascensão a Marine Le Pen. A rejeição destes comentadores de direita, liberais e conservadores, interessou-me porque noutros países, quando surgem estes partidos, os analistas de direita tendem a dividir-se entre os que têm uma posição mais favorável ou então contrária, e em Portugal foi uma rejeição generalizada.
Pode-se dizer que os comentadores de direita são antipopulistas?
Sim, sem dúvida. Já tinha essa noção há dois anos e quis compreender o motivo por que são tão unanimemente antipopulistas. Esse foi o objetivo do livro e descobri que há duas gerações de comentadores: uma que entrou na política no final dos anos 1980 e encontra a maturidade política com a revista Atlântico em 2005; uma segunda geração, mais nova, que se enquadra na blogosfera e foi ganhando uma posição relevante na comunicação social. O percurso político e de formação dessas duas gerações interessou-me, fundamentalmente para entender porque são tão avessos ao populismo. É, portanto, sobre uma direita muito específica e uma bolha dos comentadores de uma certa direita.
Por que razão o populismo não atrai os liberais-conservadores portugueses?
Quando comecei a investigação acreditava que deveriam ser tão radicalmente antipopulistas que não queriam abrir a porta e criar uma perigosa conotação pessoal, na verdade descobri que ambas as gerações tinham uma cultura política apurada, que vem de um estudo e de uma observação que não lhes permite reconhecerem-se nessa estratégia do populismo de direita. Não é aquela a forma com que gostam que a direita se apresente na política! Têm uma divergência clara na forma, mesmo que conteúdo, pelo que li escrito por eles, encontre muitos pontos em comum com posições do Chega.
Aponta a blogosfera como o grande professor desta geração e o espaço para uma nova direita. Porquê?
Porque foi um fenómeno extremamente importante ao pôr em comunicação pessoas que até aí estavam afastadas e deu a ideia em muitos deles de fazer parte de um mundo político e cultural comum e mais largo. Isso também se encontra nos fundadores do Iniciativa Liberal, que resulta em muito dos debates na blogosfera. A chegada da Internet foi bastante importante para o encontro do pensamento de jovens de direita e contribuiu para apurarem a sua identidade e criarem projetos individuais e conjuntos de carreira.
Porque escolhe para título a expressão "Bolha"?
Estamos sempre a falar de uma micro realidade muito urbana, muito intelectual e muito ligada ao meio académico. Ou seja, é uma bolha dentro da realidade social e política portuguesa.
O que fomentou o populismo de direita em Portugal?
Havia a noção de que em Portugal havia uma demanda política populista de direita, o que inexistia era uma oferta política e nenhum empreendedor político queria cavalgar essa onda. Aconteceram algumas tentativas muito pontuais, mas não passaram de momentos conjunturais que ou fracassaram ou foram abandonados. André Ventura percebeu em 2019 que havia uma janela de oportunidade e utilizou-a. Resultava em muito da crise da direita, pois os partidos tradicionais dessa área insistiam numa convergência ao centro e nunca assumiam as agendas dessa direita europeia. A direita portuguesa tem por característica evitar os temas melindrosos que podem causar polémica, em contraste com outras direitas europeias: as políticas migratórias, a presença islâmica na Europa, os movimentos antirracistas, por exemplo. Em Espanha, Itália ou França não é assim.
A extrema-direita, como o Chega, tem um futuro garantido no parlamento?
Não defino o Chega como de extrema-direita, antes como um partido de direita radical - há uma diferença de conceitos. Estes são os que querem mudanças profundas no sistema político, respeitando as regras do jogo democrático, entrando nas instituições e sendo partidos constitucionais; os outros querem abater a democracia com métodos violentos. Nos últimos vinte anos, tem-se visto, os partidos de direita radical vêm crescendo a um ritmo acelerado e Portugal não podia escapar. É um partido comparável ao VOX em Espanha, ao de Le Pen em França, aos da Áustria ou de Itália, partidos integrados nas democracias ocidentais.
A Bolha - Uma Direita antipopulista
Riccardo Marchi
Edições 70
238 páginas
As lições do passado segundo a geografia de Carlos Vale Ferraz
Depois de ter redigido uma história da Guerra Colonial, em coautoria com Aniceto Afonso, Carlos Vaz Marques assumiu o caminho da ficção em narrativas que tem vindo a publicar. Entre elas está Nó Cego, um relato que recupera a história de outra forma, a da "África portuguesa" e a da vivência no continente, uma espécie de dicionário para as gerações que não a viveram e um contraponto para os que a conheceram. Publica agora um novo romance, O Gémeo de Ompanda, que recupera essa inspiração passada em terras africanas e continentais, em que a diversidade separa os personagens, bem como a necessidade de fazer opções vitais para a sua sobrevivência, num mundo violentado pela guerra civil em Angola.
O título do romance continua com e as suas duas almas, uma chamada para a duplicidade do ser humano e para essa situação na realidade geográfica e cultural, que o autor pretende vincar nesta narrativa. Como diz na introdução: "Apesar das diferenças entre povos e indivíduos que desenvolveram as suas relações em meios físicos e humanos tão distintos como Portugal, Nova Iorque, Luanda, Benguela e a zona desértica do Namibe, em Angola, quis salientar o que lhes é comum." Para o conseguir, esbate a noção de tempo e altera a cronologia - um dos poderes da ficção - de modo a encaixar o amplo espaço do século passado em personagens inventadas e, ao mesmo tempo, o retrato do conhecimento do autor sobre acontecimentos que viveu em primeira mão. Confessa que pretendeu descodificar essa cumplicidade entre os personagens, e que o fez na qualidade de "testemunha narradora". A ler.
O Gémeo de Ompanda
Carlos Vale Ferraz
Porto Editora
189 páginas
A Cuba que parte descrita por Emerio Medina
Pouco conhecido pelos leitores portugueses, o escritor cubano Emerio Medina surge agora traduzido num registo menos conhecido na obra do autor, o do romance em vez do conto. Essa dimensão maior da narrativa permite, no entanto, descobrir um outro pulso para o alinhamento das páginas em que conta a crise humana vivida pelo fecho de uma fábrica de açúcar e de como milhares de trabalhadores e as redondezas da cidade são abaladas pelo seu fim. O romance publicado em 2015 foi considerado "excecional, desolador, triste e humano", alguns dos epítetos com que foi recebida, no entanto o maior espanto poderá nascer do pouco acesso que existe em relação a uma literatura que tem ficado presa na Ilha em vez de partilhada, apesar de alguns dos seus nomes serem capazes de voar para o resto do mundo.
Em vez dos fantasmas impossíveis de se tornarem palpáveis, neste caso existe um trio de personagens, Manuel, Luisito e Martín, que dão corpo às suas histórias. A escrita de Medina torna-os visíveis, mesmo que os faça - como o título prenuncia - de ferro. Em pano de fundo está uma traição, tema que historicamente sempre transformou histórias simples em eternas, e que neste caso cria um nevoeiro de entendimento sobre até que ponto serão reais. Entre a nostalgia e a esperança, há uma luta pelo futuro e é nesse cenário que se pode tentar ler nas entrelinhas o que provoca viver numa sociedade tão em mudança como é a cubana atualmente, um viveiro de contradições que aqui é exposto com clareza.
Os Fantasmas de Ferro
Emerio Medina
Editora Guerra & Paz
231 páginas
Radiografar uma Barcelona contemporânea por Miqui Otero
O romance começa com a frase: "Quando acabar tudo isto, vais chorar." Não será assim tão dramático, mas é uma boa entrada para um livro que tem surpreendido os leitores e recolhido uma agradável reação. O segredo está na densidade da escrita, muitas vezes disfarçada pelos factos da vida e subjugada por uma narrativa consistente, que tem sido interpretada como um registo psicológico, entre outras qualificações literárias atribuídas. O romance intitula-se Simón e é de autoria de Miqui Otero, um barcelonês que publicou o seu primeiro romance em 2010, aos trinta anos, e a partir desse livro foi sendo reconhecido pelas obras que se seguiram, chegando a ser elevado a um dos melhores a descrever o espírito de Barcelona em Rayos.
Sendo o primeiro a ser traduzido para a língua portuguesa, que se seguem a múltiplas versões noutras línguas, vem com o carimbo de um prémio literário e de ser finalista de outro, bem como de ter sido eleito por críticos com destaque e dado prazer de leitura a milhares de leitores. Para tal, em muito contribui o tom do romance, bem como uma série de experiências a que o protagonista se vai prestando, saindo de umas derrotado, de outras desiludido e em algumas vencedor. Apesar de ter sido comparado a várias vozes firmadas da literatura espanhola, pode-se dizer que se emancipou de todas elas e tem a sua própria. Além de que é uma perfeita testemunha da contemporaneidade, que relata com um à-vontade que gera curiosidade sobre uma cidade mais radiografada em romances históricos do que noutros géneros.
Simón
Miqui Otero
Editora D. Quixote
463 páginas