Como num filme de Jacques Tati ou o absurdo nestes dias deste ano de 2022: a imprensa acreditada neste festival é obrigada a mostrar teste diário, certificado com três tomas de vacina, pulseira a provar que o teste foi feito, bem como ainda a prova de identidade, isto depois de ter de ir a um site e carregar três vezes uma compra virtual de bilhetes. Não é fácil ser jornalista num festival que no meio de números assustadores de covid-19 montou em cada esquina da Postdamer Platz tendas de testes..Surrealismos à parte, a primeira sessão da Berlinale Speciale causou uma pequena apoteose. O filme chama-se Incroyable mais Vrai, de Quentin Dupieux, músico francês que se tornou o rei do cinema chalupa no seu país. Depois de 100% Camurça e desse hilariante Mandíbulas, faz outro filme inqualificável, o caso de uma estranha, estranhíssima casa onde um alçapão para a cave faz com que se avance 12 horas, ao mesmo tempo que depois disso a pessoa torna-se três dias mais jovem. Uma máquina do tempo num subúrbio francês que causa uma crise conjugal num casal que já estava na crise de meia-idade. Ao mesmo tempo, um dos amigos desse casal depara-se com os problemas de adaptação ao seu novo pénis eletrónico, um implante que lhe permite controlar melhor a sua vida sexual..Dupieux está a filmar os síndromas de Peter Pan de uma geração sem levar nada disso a sério, mas fala também das ideias cristalizadas do ideal de beleza da mulher. A sua mise-en-scéne está mais depurada e com ideias narrativas refrescadas. Por muito que Incroyable mais Vrai se pareça com o dispositivo de um filme de Spike Jonze, em especial com Queres ser John Malkovich?, há um humor que parece já ter o seu carimbo. Um humor seco, sem afetações e com um poder de observação social diabólico. A acrescentar a isso há atores que compreendem bem o jogo "sério" deste humor provocador, em especial Anais Demoustier, Benoît Magimel e Léa Drucker, a dada altura com um rosto alterado digitalmente para se parecer uma jovem, efeito visual para colocar a um canto as transformações digitais de De Niro e companhia em O Irlandês, de Martin Scorsese..Se nesta altura está na berra cinema que explora os limites e as transformações do corpo, Incroyable mais Vrai posiciona-se como uma outra espécie de "body horror" (e a palavra "horror" só numa das derradeiras cenas faz sentido...), necessariamente mais filosófico e suave. Na sua essência, é uma pequena loucura de aventuras de máquina do tempo, apesar de propor uma reflexão sobre os efeitos da passagem do tempo. E é nesse lado cósmico que Dupieux se dá melhor, sobretudo quando conflui as consequências da crise de masculinidade do homem francês de meia-idade. Acima de tudo, uma enorme diversão..Anteontem, a abertura também chegou de França e teve marca de François Ozon, de novo a entrar nos terrenos do universo Rainer Werner Fassbinder, 22 anos após Gotas de Água sobre Pedras Escaldantes, baseado na peça do alemão. Agora, baseia-se mais livremente numa outra peça que já foi cinema, As Lágrimas Amargas de Petra von Kant. Em Peter von Kant, o protagonista é mesmo um outro Fassbinder, cineasta de excessos, homem que se torna escravo da sua vaidade mas sobretudo do seu desejo, neste caso por um jovem ator que descobre e torna famoso..As melhores notícias que saem deste filme fechado num apartamento de Colónia nos anos 1970 é a recusa de ser teatro filmado, mesmo quando nunca se renega uma sensação dura de palco. Entre a farsa e o respeito máximo ao fator icónico de Fassbinder, Ozon opta por uma tese simples: mostrar que a perversão e crueldade são pertença do mais humano que pode existir. Daí descobre-se um fortíssimo desejo de tragédia. Seja como for, é um daqueles objetos que só poderá fazer sentido a quem tem saudades do cineasta alemão. Na verdadeira aceção da palavra, todo a sua estilização artificial impõe-se como uma verdadeira loja de guloseimas da iconografia de Fassbinder e do seu teatro..Peter von Kant poderá não ser logo um favorito ao Urso de Ouro, mas o seu protagonista, Denis Ménochet (conhecido de Custódia Partilhada) é enorme a dar pele a um realizador amargurado pelo seu desejo ilógico. Ménochet transforma-se numa projeção assombrada do "excesso" e da loucura autodestrutiva de Fassbinder. Quase que se pode dizer que todos os atores que vierem a seguir têm de superar esta interpretação insuperável... Já agora, ainda no plano dos atores do filme, importa não esquecer o trabalho cirúrgico de Isabelle Adjani e de Hanna Schygulla. A francesa a interpretar uma diva esquecida e a crónica lenda de Fassbinder como mãe do atormentado realizador. À última da hora, Adjani, qual diva, acabou por não aparecer na estreia berlinense. Poderemos sempre pensar que ainda está a vestir a personagem....dnot@dn.pt