Elton John. O adeus à estrada de tijolo amarelo
Trata-se de uma suprema ironia, para quem cumpre digressões - gigantescas, algumas delas - há quase meio século e já subiu ao palco em todos os continentes: a atuação mais mediatizada do extenso percurso de Elton John, nascido a 25 de março de 1947, só deu direito a uma canção. Acresce que o cantor não era, não podia ser, o cabeça-de-cartaz do acontecimento: a 6 de setembro de 1997, Elton cantou Candle in the Wind1997, trocando parte do poema original e a dedicatória expressa, que passou de Marilyn Monroe para a princesa Diana. O cenário também não concordava com os cânones - a Abadia de Westminster, onde decorria o funeral da "princesa do povo", amiga próxima do músico. Cumprindo a promessa feita pelo compositor aos filhos de Diana, William e Harry, essa versão nunca voltou a ser repetida em público. O que poderá até ter contribuído para o facto de se ter tornado, segundo a Billboard e o Guinness World Records, o single mais vendido de sempre desde que a indústria começou a contabilizar a sério as cópias comercializadas dos discos (na década de 1950 do século passado). No caso, foram mais de 33 milhões os exemplares que voaram das lojas, num tempo em que o digital tinha um peso nulo ou perto disso.
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Por essa altura, já Elton John - cujo nome verdadeiro é Reginald Kenneth Dwight - levava mais de 25 anos de palco, depois de se ter estreado nos concertos em nome próprio em agosto de 1970, no Troubadour de Los Angeles. Talvez isso ajude a explicar que os Estados Unidos da América tenham ganho a dianteira na Farewell Yellow Brick Road - The Final Tour, iniciada na passada sexta-feira, dia 7, em Allentown, na Pensilvânia. Ciente do peso da despedida, lançada pouco tempo depois de outro "peso-pesado", Paul Simon, dizer adeus aos espetáculos, o criador de Daniel faz questão de "cumprimentar" todos os públicos que o foram apoiando durante uma carreira notável, prolongando este último capítulo "ao vivo e a cores" por mais de 300 concertos e, seguramente, por mais de um ano. Para se ter uma ideia da grandeza desta ronda final, bastará dizer que Elton John só chegará à Europa no próximo dia 2 de maio, estando ainda em aberto a possibilidade de ir acrescentando mais datas, mais cidades e mais cidades. Com Portugal ainda no campo das hipóteses, o que seria perfeitamente ajustado a quem desempenhou, há 47 anos, um papel fulcral na nossa descoberta dos grandes shows, na primeira edição internacional do festival de Vilar de Mouros.
Quem nunca assistiu a um espetáculo de Elton John e não tenha possibilidade de o aplaudir neste tempo de adeus dispõe, ainda assim, de muito material para consulta e para ensaiar uma avaliação... do que perdeu. E foi muito, como se constata a partir dos quatro álbuns que, oficialmente, gravou ao vivo. O primeiro, 17-11-70 (de 1971), indica a data de gravação e foi registado para uma emissão de rádio ao vivo, em Nova Iorque. Mostra bem a energia dos primeiros tempos e a fase em que o cantor ainda se socorria de hinos alheios, recorrendo a outros mestres, como Lennon & McCartney (Get Back) ou Jagger & Richards (Honky Tonk Women). Curiosamente, só numa reedição "revista e aumentada" de 2017 acabaria por surgir um dos maiores êxitos do percurso autoral de Elton: Your Song. Segue-se Here and There (de 1975), com gravações no Royal Albert Hall, em Londres, e no Madison Square Garden, em Nova Iorque. Este registo - que já apresenta alguns dos clássicos músicos no apoio à estrela, como o guitarrista Davey Johnstone, que se mantém até hoje, o baixista Dee Murray, o baterista Nigel Olsson e o carismático percussionista Ray Cooper - dispõe, na versão inicial, de um momento insólito: o dueto de Elton, em Love Song, com a cantora britânica Lesley Duncan, que haveria de ficar-se por uma "nota de rodapé" por causa do seu pavor de palco. Mais tarde, numa versão publicada em 1995, a lista de canções cresceria substancialmente e assinalaria a presença, em três temas, do ex-Beatle John Lennon, ilustre parceiro para três canções: Whatever Gets You thru the Night (do próprio Lennon), Lucy in the Sky with Diamonds e I Saw Her Standing There (dos Beatles). Há por aqui um retrato fiel da fase mais criativa, do ponto de vista musical, e mais espalhafatosa, com os óculos extravagantes e os casacos a brilhar, no que toca à imagem. Algo que se elevaria ainda com a passagem de Elton no filme Tommy (a "fixar" a ópera rock dos The Who e dirigida pelo controverso Ken Russell), onde, de cima de uns gigantescos sapatos, dá voz à canção Pinball Wizard.
Veio depois Live in Australia (de 1987), a partir de um concerto em Sydney, em que o cantor soma à sua banda a presença fulcral da Melbourne Symphony Orchestra. A escolha das cantigas faz escala em diferentes momentos do caminho de Sir Elton, nalguns casos consideravelmente transformados pelos novos arranjos orquestrais, assinados - em maioria - por James Newton Howard, que viria a tornar-se um dos mais prolíficos compositores de bandas sonoras no eldorado de Holywood. Estes concertos "lá em baixo" marcaram a despedida das roupas ofuscantes e já referidas e anteciparam uma ocasião muito delicada para o cantor: uma operação às cordas vocais que haveria de o levar a ficar longe dos estúdios e, por maioria de razão, dos palcos, durante um ano e meio. Por fim, num tom retrospetivo ainda mais delineado pelos maiores sucessos, surgiu Elton John One Night Only - The Greatest Hits (de 2000), outra vez com o protagonista entregue à magia muito própria do Madison Square Garden. Além da inclusão de Can You Feel the Love Tonight?, uma rara colaboração de Elton com o letrista Tim Rice, para o filme O Rei Leão, que tinha rendido ao compositor e intérprete o único Óscar na sua caminhada, acentua o tom retrospetivo que o título indica. Além disso, mostra uma série de convidados especiais para alguns irrepetíveis duetos com Elton John: Kiki Dee (em Don't Go Breaking My Heart, presença que já vinha da versão de estúdio), Ronan Keating (em Your Song), Bryan Adams (em Sad Songs), Anastacia (em Saturday Night's Alright for Fighting), Mary J. Blige (em I Guess That's Why They Call it the Blues) e Billy Joel (em Goodbye Yellow Brick Road, esta só na edição em DVD). Fica bem patente, pela assiduidade e pela qualidade, a importância, na obra de Elton, do letrista Bernie Taupin - estão a festejar agora os 50 anos de trabalho em conjunto, com alguns interregnos pelo meio, colecionam canções de reconhecimento imediato e, no início da colaboração, "despachavam" uma canção em hora e meia, 60 minutos para a letra mais 30 para a melodia.
Se o passado pode constituir-se como um motivo para reclamarmos mais um regresso aos palcos nacionais, será fácil reconhecer que há várias histórias que ligam Elton a Portugal. Este homem, que vendeu mais de 300 milhões de discos, que conseguiu colocar 50 canções no top 40 norte-americano, que colocou seis álbuns consecutivos no lugar cimeiro da lista de vendas da Billboard (de Honky Chateau a Rock of the Westies), que se casou antes de se assumir "confortavelmente gay", passando pela bissexualidade, que foi dono e presidente de um clube de futebol (o Watford, atualmente na Premier League), que anunciou deixar os palcos para não perder a pré-adolescência dos filhos, Zachary e Elijah, tem uma velha ligação connosco - desde que atuou na primeira edição internacional do festival de Vilar de Mouros, a 8 de agosto de 1971. Nesse "Woodstock português" (à escala: eram cerca de 30 mil pessoas a furar o cerco das polícias), Elton fechou a segunda noite do programa, subindo ao palco depois do Quarteto 1111, do Pop Five Music Incorporated, de Psico e Sindicato, entre outras bandas. Na véspera, a cereja no bolo coubera a Manfred Mann.
Para a componente do insólito, ficou a memória de... uma ausência. Em 2000, deveria tocar e cantar no Casino Estoril. Mas não chegou à sala nem à vista dos espectadores, sendo adiantada uma explicação oficial: a de que o artista se recusara a cumprir a função por causa do fumo acumulado. Nos bastidores, circulou outra justificação, que envolvia um massagista mais expedito ou mais disponível, digamos assim, e que causara uma violenta discussão telefónica entre Elton e o seu companheiro (desde 1993), David Furnish, que ficara em Inglaterra. Contas feitas, não convirá menosprezar aquela que terá sido, do ponto de vista musical, a melhor escala de Elton em território nacional, o espetáculo de 1992 no Estádio de Alvalade, a todos os títulos memorável, com recurso quase ilimitado às canções que o tempo foi preservando, mesmo em prejuízo das (então) mais recentes. Em 2016, viriam mais duas presenças: uma a norte, no festival Marés Vivas, outra a Sul, no Pavilhão Atlântico. Agora, queremos mais um, para nos despedirmos pessoalmente do homem que há tantos anos nos acompanha, nos embala, nos diverte e nos faz cantarolar com ele. Por favor, haja alguém que se chegue à frente.