No camarim onde Elisabete Matos dá a entrevista ecoam os ensaios da primeira ópera que subirá ao palco do Teatro Nacional de São Carlos (TNSC) dentro de dez dias: La Forza del Destino. O capolavoro de Verdi, um dos compositores que a soprano já interpretou e que o "destino" fez que se cruzasse logo nos primeiros dias da sua nova ocupação enquanto diretora artística do teatro, que cumpre já um dos pontos do seu programa, o da itinerância de espetáculos feitos em São Carlos pelo resto do país - neste caso, o Porto..Para Elisabete Matos, esta primeira ópera da temporada lírica 2019-2020 deverá marcar de imediato parte da mudança que deseja para o teatro e, mesmo não fazendo parte de uma programação desenhada por si, considera que "esta é para levar a cabo" e que "será cumprido o que foi deixado pelo anterior diretor artístico". Quando se insiste e se lhe pergunta o quanto é do seu agrado a programação agendada, a soprano portuguesa explica que "tem coisas que estão bem" e contrapõe que "é mais elegante começar por falar do que será o meu trabalho e não julgar o que já está feito"..Quanto à interrupção da sua carreira por causa desta nova responsabilidade, Elisabete Matos garante que não se pode ficar sempre do lado de fora a contestar: "Este é um trabalho difícil e ao mesmo tempo um desafio. Acho que precisamos de pessoas com coragem para desempenhar o cargo, porque se estivermos sempre do outro lado a criticar e a dizer o que está mal, a contribuição para melhorar é pequena. No meu caso, tentarei ver as necessidades desta casa e ter em conta que é fundamental neste momento pensar que estamos num teatro nacional que tem corpos artísticos estáveis - coro, orquestra e todas as outras áreas - e cantores. A partir daí, devemos começar a pensar numa temporada de dentro para fora da casa, ou seja, dar oportunidade aos nossos profissionais para que se desenvolvam e façam o que os vai levar a atingir a maior qualidade." Evidentemente, sublinha, "queremos ter connosco cantores de craveira internacional e que haja uma interação entre músicos nacionais e internacionais"..Qual vai ser a sua primeira primeira decisão? Tomo posse hoje e também terei o contacto com toda a realidade..Sendo um teatro nacional, o São Carlos acaba por servir mais a Grande Lisboa do que o resto do país. Como vai atrair espectadores de outras partes do país? Estamos a trabalhar para sermos um teatro nacional, e uma das preocupações é a itinerância dos espetáculos de modo a poder levar a outros sítios o que se faz no São Carlos. Aliás, sou do norte e sei bem qual é essa realidade, portanto quero criar projetos que sejam viáveis e que possam percorrer o país..Temos público para isso? Decerto que há. Sabemos que existe um certo receio por parte de certo público, mas quando existe uma divulgação dos espetáculos percebe-se que as pessoas estão ávidas da boa música - evito chamar música erudita -, daí ser uma obrigação dar acesso ao que se faz em Lisboa. Evidentemente, não podemos estar fora uma temporada inteira, mas haverá a preocupação de criar espetáculos que sejam feitos no São Carlos e tenham a particularidade de poder viajar e cumprirem essa função de teatro nacional..Para fazer uma expansão dessas precisa de verbas. Como é que as vai obter? A base fundamental do teatro é o apoio da tutela, mas começaremos a trabalhar com o conselho de administração na procura de mecenas e de apoios privados para podermos fazer mais..Como vai ficar a sua carreira com esta interrupção? Não vou poder estar longe desta ocupação importantíssima, mas continuarei a minha carreira e vou estar em contacto com o público através dos meus concertos e obras..Uma parte da sua vida é em Espanha. O que muda? Estarei em Lisboa, onde tenho também residência, mas passo a ter a minha situação fiscal em Portugal, pois sendo diretora artística do Teatro Nacional é justo que passe a ter a base central por cá. Serei uma cidadã que trabalha em Portugal e deixa os seus impostos no país..Qual foi a sua reação a este convite? Não era uma ambição, afinal sou essencialmente artista e vou continuar a ser. Hoje estou aqui, amanhã não sei. O contrato é por três anos e nada há de eterno. Contudo, considero este trabalho importante porque as coisas estão num caminho que não é o ideal para este teatro e, como artista que conhece os cantos à casa, que a frequentou muito e sabe quais são as suas particularidades, achei que era hora de dar um contributo desde o ponto de vista da artista para sanar as lacunas do modo que um artista pode ajudar e creio que poderemos todos juntos conseguir um ambiente de trabalho com esperança e ânimo para construir um futuro prometedor..Essa situação de paz não tem existido, como o cancelamento recente da ópera LaBohème provou... Foi à conta de desentendimentos que agora estão já num patamar mais calmo e num momento em que os acordos estão em cima da mesa. Foi feito um trabalho importante por parte da tutela e do conselho de administração e tudo está a caminhar. O que posso dizer é que neste momento existe um clima de grande serenidade e vontade de caminharmos juntos..Estão reunidas as condições por parte da tutela para cumprir os seus objetivos? Sim, pouco falta por limar..Devia ter-se chegado até esse ponto? Foi uma pena para o teatro porque causou transtornos económicos sérios, para os artistas que cá estiveram e para o público. É triste chegar à situação de termos de partir para uma reivindicação de força, mas vivemos num país democrático e as pessoas têm de lutar pelos seus direitos. Diria que o que aconteceu é como quando batemos no fundo e de repente não nos resta mais do que a possibilidade de nos reestruturarmos e conseguir criar algo muito mais forte - que é no que acredito neste momento..Quando começa a planear a próxima temporada. Que critérios vai ter? A minha intenção é ter progressivamente mais espetáculos de teatro, que haja uma grande interação com a Companhia Nacional de Bailado e que todos os corpos estáveis do teatro tenham a mesma presença. Tenho muitas ideias de coisas a fazer mas ainda é prematuro revelar, mesmo que possa adiantar que será pensado para um público plural e com a presença de todos os estilos e épocas, até porque temos em Portugal condições ao nível de cantores e estes precisam que lhes sejam dadas oportunidades. Temos de ter a música em todo o seu esplendor e vamos com certeza surpreender..Há tendências no estrangeiro que serão replicadas cá? O São Carlos tem de ter um cunho pessoal e individual e fazer o seu próprio caminho baseado naquilo que tem cá dentro e dar uma escolha ao público a todos os níveis. Não penso em seguir exemplos de um ou outro teatro, quanto a tendências, como tudo muda deve-se estar atento ao que o público pede para ouvir e sem esquecer a introdução de uma maneira própria de trabalhar..Pretende subir a palco do São Carlos durante os próximos três anos? Claro que sim. Estarei presente no Concerto de Ano Novo nesta temporada e poderei estar presente numa promoção por temporada..E no estrangeiro? Lá fora o meu trabalho continuará e tenho na minha agenda Wagner, Puccini, algum Verdi, sempre mais em concerto do que em ópera porque preciso de estar por cá a tempo inteiro. Quero estar ao pé de todos os colegas que trabalham no teatro e precisamos de nos conhecemos ainda melhor. A minha função será de levar avante a temporada deixada pelo antigo diretor artístico e começar a trabalhar nos projetos futuros na tentativa de apresentar uma temporada atempadamente e não em cima da hora..A sua carreira é grande e representou muitos papéis. Ainda há algum que a seduza? Sim, ainda há vários papéis que estão por fazer, como a Elektra de Strauss ou a Georgetta de Tabarro, papéis que são muito importantes no ponto em que estou na minha carreira. Tenho quase 80 títulos de ópera, fora o que fiz em concerto e recital, portanto tudo aquilo que vier vai ser recebido com muito entusiasmo e vontade como se fosse a primeira vez..A sua primeira vez foi a interpretar a personagem Frasquita da ópera Carmen... Exatamente, no Porto com o Círculo Portuense de Ópera. Ainda não me considerava uma profissional porque tinha terminado os meus estudos no Conservatório de Braga e estava de partida para Madrid, com uma bolsa da Fundação Gulbenkian para a Escola Superior de Canto. Esse desafio foi-me lançado e fi-lo com muito gosto ao lado de professores e colegas no princípio de carreira, entretanto passaram 30 anos e estive por todos os teatros do mundo e com um amor que continua intacto pela arte. Algo que como intérprete e como diretora terão vertentes diferenciadas, mas é a arte que está na base..Quando estava de partida para Madrid tinha a certeza de que esta iria ser a sua vida? Era a minha vontade de vida, mas nunca se tem certezas no mundo da arte. Sabemos que há uma vocação, uma vontade, que somos empenhados, mas é preciso reunirem-se muitas circunstâncias e a sorte de estar no momento e no lugar certos para dar os passos convenientes no momento correto em vez de aceitar papéis que, por serem prematuros, possam pôr em risco a reputação enquanto cantores ou músicos. É isso que faz que as carreiras possam ser longevas em vez de, como acontece com bastante facilidade, rapidamente acabarem. Sabemos que vivemos num mundo de discografia e do imediato, que os agentes e os teatros precisam de novos nomes, e muitas das vezes as propostas feitas aos artistas não respeitam o facto de estarem ou não preparados. Espero dar neste teatro a possibilidade a todos os que cumpram o que é necessário, mas num repertório em que possam dar o seu melhor e crescer..Era muito jovem quando começou. 18 anos... Mas sou muito organizada e crítica comigo própria e isso ajudou-me. Posso ter perdido algumas oportunidades por me ter lançado em voo livre, mas mesmo assim sempre achei que devia esperar pelos momentos certos. Além de que tive a sorte de estar ainda com os grandes do canto lírico e de ter tido a possibilidade de estrear quase todos os meus papéis ao lado de um grande artista. Lembro-me da Éva Marton, do Plácido Domigo, de José Carreras, de tantíssimos. Eu era nova e tinha de estar ao nível e evitar defraudar, sendo necessário uma exigência e uma autocrítica muito grandes, e o facto é que passaram 30 anos de uma boa carreira. Há uma coisa que é fundamental no cantar: ou se canta bem ou se canta mal..Neste teatro, em 1917, estiveram os Ballets Russes e o repertório apresentado foi o mais fácil. O nosso público é menos exigente? É um público sensível e não um público mais ou menos exigente. O que acontece é que quando nos habituamos a ter como bitola um determinado nível, as pessoas entram num conformismo. É necessário incrementar o nível, porque não somos menos ou mais do que os públicos de Covent Garden ou do Metropolitan de Nova Iorque. Precisamos de inovar para que a parte do público menos conhecedor faça a sua formação e tenha oportunidade de ver as coisas de grande nível. É um público a que não se dá gato por lebre..Pretende, então, alargar o público?.A nossa grande batalha será a de cativar novos públicos e trabalhar para os mais jovens. O aspeto educativo vai ser fundamental, porque temos de dar a possibilidade a uma criança de poder dedicar-se à música e ter a oportunidade de ir ver ao São Carlos uma ópera que foi montada para eles uma vez por ano. Também criar a itinerância de pequenos grupos às escolas e de ter a presença no teatro de outros tipos de música, que façam sentido dentro das nossas portas, porque é chamando um público plural que conseguiremos esse público também para a ópera. Tanto devemos pensar num público elitista como noutros públicos..Atuou várias vezes com Plácido Domingo, cantor que está sob grande pressão devido a alegadas acusações de assédio sexual. Qual é a sua opinião? A minha primeira opinião é que gosto muito pouco de me imiscuir nos aspetos da vida privada das pessoas. O que posso dizer é que só falo por mim e foi sempre um cavalheiro comigo, uma pessoa muito generosa, que me tratou e ajudou com o máximo de respeito. Outra coisa que posso dizer é que vivemos num mundo supostamente democrático, onde existe a presunção de inocência, e os juízos públicos que não sejam feitos num local idóneo trazem sempre situações mais negativas do que positivas. Penso que é, foi e continuará a ser nas nossas memórias um grande artista e espero, de coração e com o carinho que tenho como colega e pessoa que num momento determinado gostou do meu trabalho e me convidou para várias coisas, que tudo isto venha a resolver-se e que se esclareça toda esta situação. Não posso dizer mais do que isto porque cada caso é um caso e há coisas em que me custa acreditar, mas não vou julgar a outra parte que se lamenta de uma situação que possa ter sido menos correta. Duvido, a pessoa que eu conheço não é assim, mas, insisto, os julgamentos não se devem fazer em praça pública, apenas nos locais de direito e com provas e com presunção de inocência.