Em comum têm a idade, 25 anos, o facto de serem os primeiros médicos nas respetivas famílias e dos melhores internos do país. Trocado por miúdos: o Dr. Diogo, a Dra. Cláudia e o Dr. Filipe entraram na especialidade médica com notas altíssimas, o que lhes permitiu escolher em primeiro lugar, a nível nacional, não só a especialidade como o hospital onde queriam fazer essa formação. E quando se diz notas altíssimas é porque são mesmo muito altas: Diogo, futuro oftalmologista, está no topo da escala e foi o único 100% do tão temido teste Harrison, o último realizado antes da nova prova de seriação. Cláudia ficou em 8.º lugar com 98% e Filipe em 66.º com 96%..Os três escolheram fazer o internato médico no Hospital de Santa Maria, em Lisboa. O maior hospital do país, de última linha e com praticamente todas as valências, que todos eles consideram que lhes permitirá ter a melhor formação. "É uma grande escola e proporciona-nos oportunidades de formação enormes", justifica Cláudia Silva Brazão..O gosto pelas ciências é comum a estes jovens médicos que começaram o internato no início de janeiro e que olham para a profissão como uma forma de ajudar as pessoas nas diferentes especialidades que foram a sua escolha: oftalmologia (Diogo), dermatologia (Cláudia) e urologia (Filipe)..Divergem na opção das especialidades - ou não teriam sido os primeiros a escolher - mas convergem no objetivo último: dar aos doentes o melhor tratamento. E também estão de acordo em que não têm de pagar a sua formação como especialistas através de um pacto de permanência no Serviço Nacional de Saúde (SNS) - como a ministra da Saúde Marta Temido já admitiu -, porque a fazem à custa de muitas horas de trabalho. Para a qual, aliás, até consideram que não são excecionalmente bem pagos, dada a responsabilidade da profissão: ganham cerca de 1100 euros limpos mensais..Um cromo da biologia.Filipe Abadesso Lopes, licenciado em Medicina pela Universidade de Coimbra, conta que desde muito pequeno revelou interesse pelas áreas das ciências da vida, como a biologia e a físico-química. "Ainda hoje sou absolutamente cromo da biologia. A partir do 10.º ano juntou-se o interesse pela área humanitária da medicina. Foi aí que começou a revelar-se a parte de me importar se as pessoas estão bem ou não, de ajudar o outro.".Na Associação de Estudantes da Escola Secundária de Pombal desenvolveu projetos de voluntariado e percebeu que ajudar os outros era o que fazia sentido para a sua vida..A essa veia solidária juntou-se uma aura romanceada, por exemplo, dos Médicos sem Fronteiras ou da Ajuda Médica Internacional (AMI). "Durante o curso, vamos tendo noção de que a medicina nem sempre é essa visão romanceada", diz, agora que já fez seis anos do curso de Medicina e um ano como médico no internato geral antes de começar a empreitada da especialidade em urologia que o levará a ficar seis anos em Santa Maria - começa pela cirurgia geral, porque terá de operar muito ao longo da sua carreira. Muito menos o exercício da medicina se revela igual ao que se vê nas séries como Anatomia de Grey ou Dr. House e que, diz, também induzem os doentes em erros e ilusões.."Ainda tenho muita vontade de fazer voluntariado, mas não só lá fora, há muita gente a precisar de ser ajudada cá dentro. Penso nisso quando há catástrofes humanitárias. Lembro-me do que aconteceu no ano passado na Beira, em Moçambique (a destruição provocada pelo ciclone Idai), tinha muita vontade de ir para lá. Mas não fui porque tinha de interromper o ano comum, atrasar um ano, e os apoios nem sempre são os melhores. E essa é uma decisão que tem de ser tomada na hora e, não havendo preparação prévia, é difícil. No futuro, quem sabe?".Diogo Bernardo Matos, que admite que o facto de os pais serem enfermeiros lhe poderá ter despertado o gosto pela área da saúde, olha para a medicina como um todo. "Tem de ser vista como uma forma de darmos condições ao doente e todas as especialidades são extremamente importantes."."Não tem de se querer ser médico desde pequenino. É importante que haja diversidade de experiências prévias. Um caminho único não tem de ir dar sempre ao mesmo sítio. Acho que deve haver múltiplos caminhos a concorrer para isso, para que possamos ter equipas multidisciplinares, equipas que tenham backgrounds diferentes, ou seja, que eu tenha soft skills diferentes do meu colega e que nos possamos complementar não só na escolha até chegar à faculdade, mas também para que o currículo não seja demasiado detalhado para criar máquinas todas iguais umas às outras. Somos pessoas e vamos tratar pessoas, e é importante essa diversificação.".Cláudia justifica a escolha da medicina pelo facto de as ciências terem sido sempre a sua disciplina preferida, especialmente a parte do corpo humano. Foram seis anos a estudar Medicina. Diogo e Filipe chegaram a ser colegas de curso em Coimbra e Cláudia veio da Madeira para se formar em Lisboa - por isso conhece bem os cantos à casa onde vai passar os próximos cinco anos a especializar-se em dermatologia. Foram, obviamente, excelentes alunos com notas de final de curso elevadas. Fizeram o ano comum, cada um em seu hospital: a Dra. Cláudia no Amadora-Sintra, o Dr. Diogo nos Hospitais Centrais de Lisboa e o Dr. Filipe em Viseu. Agora acusam o peso da responsabilidade de uma especialização, mas respondem que são médicos encartados, com supervisão, é certo..A Dra. Cláudia tem uma cara bonita, parece ainda mais jovem do que os seus 25 anos. Não nega que há doentes que olham para ela como sendo uma miúda, sobretudo as pessoas mais idosas. Mas descansa os utentes do Santa Maria: "Há pessoas que podem sentir que estão a ser vistas por uma pessoa nova, que pode não saber tudo, e admito que isso possa criar alguma insegurança, mas o que fazemos é trabalhar em equipa. Sempre que temos dúvidas, conversamos com os nossos colegas, discutimos os casos e garantimos que os cuidados prestados são os melhores possíveis. Mas às vezes sinto que não me levam a sério, tenho esta cara de criança.".Oftalmologia oferece bom mercado.A idade não lhes permite ter experiência, mas técnica e sabedoria não lhes falta. E empenho. Querem distinguir-se e fazer o melhor pelos seus doentes. As notas que tiveram no Harrison, o exame para a especialidade, falam por si. São aplicados, durante 12 meses estudaram 12 horas diárias, com uma disciplina férrea para conseguirem alcançar o objetivo que tinham traçado e poderem escolher a especialidade que queriam. Só Filipe encurtou esse horário de estudo para seis horas. "Prefiro a qualidade à quantidade, estava mesmo focado.".O Hospital de Santa Maria acolhe atualmente 600 internos - neste ano entraram 85 para a formação geral e 105 para o internato da especialidade, diz o diretor do internato médico. José António Lopes explica que, na última década, houve uma inversão na escolha das especialidades - se antes as mais procuradas eram dermatologia, cardiologia, gastro, nefrologia e cirurgia plástica, destas, nefrologia tem vindo a decrescer e houve inversamente uma subida da oftalmologia.."As especialidades mais procuradas a nível nacional, que ocupam logo os primeiros lugares, são a dermatologia, a oftalmologia e a cirurgia plástica - atrevo-me a dizer que entre os cem primeiros as vagas fecham", refere..A procura da oftalmologia, considera, deve-se à abertura de mercado. "Há a cambiante de só se trabalhar na privada ou no público - quem não se importa de trabalhar só no público pode escolher especialidades como medicina interna ou pneumologia, que não têm grande oferta no privado. Há pessoas que se preocupam com a modernização tecnológica da especialidade e nisso entra a oftalmologia, em permanente expansão. Depois há especialidades que são as ditas verticais, ou seja, em que o médico especialista faz desde o diagnóstico até ao tratamento, que é o exemplo da urologia.".Diogo Bernardo Matos escolheu oftalmologia porque, sublinha, sente uma enorme realização com os procedimentos. "Conseguimos fazer uma diferença muito grande com atos isolados. Com um tratamento único tratamos um problema que limita muito a vida de um doente. Através de uma cirurgia, por exemplo, podemos repor uma grande qualidade de vida. E a medicina, como um todo, tem de ser vista como forma de darmos condições ao doente, por isso todas as especialidades são extremamente importantes.".Se os olhos são, no dito popular, as janelas da alma, não foi esse motivo que o levou a escolher a especialidade. "Não foi esse romantismo, os olhos são um órgão vital na medida em que uma grande componente da nossa capacidade social advém da interação com os outros e que é possível através da visão. Uma pessoa que não vê tem grandes dificuldades em relacionar-se com o mundo e com os outros", afirma Diogo, que no dia a seguir a esta conversa ia participar numa cirurgia inovadora da retina..O diretor dos internatos médicos fala no mercado que a oftalmologia oferece. E Diogo não nega que, apesar de agora estar focado no internato, se não forem criadas condições atrativas será forçado a ter alguma prática privada. "Se os salários não nos permitem viver confortavelmente, acabamos por ter de trabalhar mais horas para viver um pouco melhor.".Exercer lá fora ou cá dentro?.Trabalhar no estrangeiro é uma possibilidade, mas Diogo diz que preferia viver e tratar doentes em Portugal. Aliás, todas as hipóteses estão em aberto. E Santa Maria é uma perspetiva de futuro..Filipe Abadesso Lopes é que não exclui nada. "É assim que gosto de viver e não vou estar a fechar portas só porque sim. Neste momento estou focado na minha formação, quero ser o melhor urologista que possa ser, mas todas as opções são válidas, quer num hospital central ou periférico. Trabalhar no privado também é válido porque oferece condições que o SNS não consegue, e trabalhar no estrangeiro é uma porta que não quero fechar.".Fez Erasmus duas vezes - no 4.º ano esteve um ano em Bona, Alemanha, e no 6.º dois meses em Budapeste, na Hungria. Tomou contacto com realidades distintas. "O estágio na Alemanha permitiu-me ver como é uma medicina de ponta, com investimento, em que as pessoas têm dinheiro para investir. Quando querem uma ressonância magnética pedem e é feita no dia seguinte. Aqui é mais complicado. Os médicos têm de ponderar muitas vezes o custo do exame e da cirurgia que querem fazer. Lá é como viver um pouco no paraíso. Era o mundo que eu gostava que fosse em Portugal, nem que fosse com algum delay. E era assim que eu gostava de exercer medicina.". Pacto de permanência? Não, obrigado.O Dr. Filipe escolheu urologia porque é uma especialidade cirúrgica e sempre teve muito interesse pelo bloco operatório, além de que apresenta uma patologia muito variada. Olha para a sua geração como jovens bem preparados do ponto de vista teórico-científico, que vêm trazer muito trabalho ao Serviço Nacional de Saúde. "Diria que não haverá semana nenhuma neste ano em que eu não vá fazer 80 horas semanais.".Por isso, Filipe Abadesso Lopes não quer ouvir falar num pacto de permanência que vincule os médicos durante um certo tempo ao SNS para pagar a sua especialização. "Se eu disser que faço o dobro das horas do que diz o meu contrato, penso que respondi à questão. Sem os internos, que são um terço dos médicos, o SNS cai que nem um castelo de cartas. Custa ouvir dizer que os médicos internos devem alguma coisa ao SNS pela sua formação.".Também o Dr. Diogo não vê essa possibilidade com bons olhos: "Fazer um pacto de permanência sem qualquer tipo de incentivo é só permitir que administrativamente se possa dizer que esta pessoa tem de ficar agrilhoada a um determinado local porque sim." E argumenta com o trabalho que faz diariamente. "Havendo dívida sobre alguém, seria do sistema para connosco nas muitas horas extra que fazemos e não são pagas.".Cláudia Silva Brazão afirma que está focada na sua formação em dermatologia e ainda está longe de decidir o que será o seu futuro quando for especialista. Mas uma coisa tem como certa: o SNS "é fundamental" e, apesar do desinvestimento, mesmo assim é bom. "Devemos tê-lo com bons profissionais. Por isso, o mais importante é serem criadas boas condições de trabalho para que os médicos fiquem de livre vontade sem haver necessidade de criar essa obrigação.".O que a leva a defender que a criação de um eventual pacto de permanência tem de ser discutido por quem tem conhecimento de causa suficiente, quer seja das condições do SNS quer seja das condições e estatuto dos médicos."O internato são anos em que já estamos a trabalhar - faço consultas, admito doentes e dou-lhes alta, vejo doentes em contexto de urgência -, estou a trabalhar efetivamente, não estou exclusivamente em formação", diz Cláudia Brazão..A futura dermatologista tem pela frente cinco anos de internato - com um tronco comum médico-cirúrgico, em que fará seis meses de medicina interna e seis meses de cirurgia geral. Uma especialidade que a atraiu precisamente por esta linha comum. "Mas não consegui ser puramente cirúrgica porque gosto muito de ir à procura do diagnóstico do doente, do ambiente de consulta e enfermaria. A dermatologia tem muita doença sistémica. Nomeadamente, no Santa Maria vemos doenças autoimunes, infecciosas, oncológicas, desde as mais simples até às mais graves. Temos desafios de diagnósticos e é dessa dermatologia que eu gosto.".Já se disse que a Dra. Cláudia está concentrada na especialidade, mas há perguntas para as quais já tem a resposta pronta. Como por exemplo quando é questionada sobre a possibilidade de ir trabalhar para o estrangeiro ou de regressar à sua terra, a ilha da Madeira. "Não! Gosto demasiado disto. Estou afiliada à faculdade, dou aulas de introdução à clínica e gosto muito do Santa Maria e da Faculdade de Medicina de Lisboa e, por agora, vejo-me a ficar por cá."