Elegia de Natal
Nem o mais cruel Natal de guerra pôde alguma vez contrariar este impulso vital de nos juntarmos, de olharmos juntos a luz que rompe o escuro, a chama que afasta o frio, a troca dos presentes, a ceia partilhada. Fossem os presentes os mais toscos utensílios apanhados no campo de concentração, fosse a ceia o mais aguado dos caldos recuperados da fome, ainda assim as respirações juntas e os olhares trocados faziam que fosse, contra toda a miséria e contra todo o terror, noite de Natal. Contra todas as evidências, a alegria (Manuel Gusmão).
Conta-se que no mais aceso da Primeira Guerra Mundial os soldados inimigos decretaram entre si na frente de batalha uma "trégua de Natal" e celebraram com aqueles mesmos que no dia seguinte iriam trucidar pelos tiros e retalhar pelas baionetas. Essa história ainda hoje nos faz frio no coração.
Mas nunca como hoje tivemos um Natal em que fôssemos forçados a abdicar de estar com os outros.
Reduzir os nossos convívios é uma palavra de ordem que não se pretende aqui contestar na sua racionalidade instrumental, face a maiores ameaças. Mas não esqueçamos a profunda desumanidade deste comportamento. Quando o Natal se deve passar dentro de uma bolha, é a algo de essencial à nossa humanidade que estamos a renunciar, é ao nosso elementar sentido gregário.
Brecht lamenta num seu poema que, na impiedade da luta para construir um mundo mais fraterno, muitas vezes se tenha de renunciar à própria fraternidade. Na estranha luta que hoje travamos estamos a renunciar ao mais humano de nós próprios para salvar vidas. Por isso devemos, como no poema de Brecht, pedir às gerações futuras que pensem em nós com piedade.
Sabemos que para aqueles que não gostam do Natal esta contingência foi um brinde. Entre esses há os que, por diferentes razões, vivem esta época como um doloroso trauma e por isso devem ser respeitados. Mas há também os que assumem essa antipatia por razões idiossincráticas e esses merecem a tolerância que devem ter aqueles que, por diversas razões, querem viver de forma diferente. A esse propósito, vou contar uma história.
Em 1977 eu estava em funções diplomáticas em Angola. Nesse ano o entusiasmo revolucionário levou alguns a quererem abolir o Natal, festa reacionária, substituindo-o por um "Carnaval da vitória". Esse Carnaval fora de época, porém, interessou pouco a população, pelo que foi encontrado outro caminho para desviar as atenções. Foi decidido exibir na televisão de Angola durante a noite de Natal o primeiro episódio da imortal novela brasileira Gabriela. Assim Sónia Braga distrairia o povo de pregressas tradições...
Mas o que as autoridades não esperavam foi a viva, espontânea e ameaçadora reação da população ao saber que, pelas mesmas razões antinatalícias, tinham sido cortadas as importações de bacalhau!
As coisas aí tremeram e alguém teve de ceder...
E foi assim que eu passei a minha consoada de 1977 a jantar um excelente bacalhau com uma família amiga e a ver gostosamente Sónia Braga, enquanto os crentes, que eu não sou, se encaminhavam no meio da noite de guerra e insegurança que ali vivíamos para as suas missas do galo nas várias igrejas da cidade de Luanda. E por isso não houve Carnaval da vitória...
Escritor e diplomata