"El Mundo" recusa identificar autor de artigos sobre incêndios em Portugal
"Sebastião Pereira, Lisboa". A assinatura surgiu pela primeira vez no El Mundo no dia 18, às 19.19, num artigo sobre o incêndio de Pedrógão. Durante quatro dias, o mesmo autor publicou vários textos sobre os incêndios, alguns muito críticos para o governo português; chegou mesmo a asseverar, no dia 21, que a carreira política de António Costa "pode acabar devido à desastrosa gestão da tragédia". Vários meios portugueses noticiaram estas "críticas" ao executivo português no El Mundo; alguns - caso do Expresso - identificaram Pereira como "correspondente em Portugal" do diário espanhol. Mas este não tem correspondente no país desde 2016 e não há qualquer jornalista português - com carteira profissional - com aquele nome. Ou espanhol, de resto: ao DN, depois de começar por dizer que na redação não sabiam quem era Sebastião Pereira, que não tinham o contacto dele e se trata de um colaborador ocasional, o El Mundo acabou por assumir, no início da noite de ontem, que se trata de um pseudónimo de um jornalista "formado no jornal", sem adiantar qualquer explicação sobre o motivo pelo qual as notícias são assinadas com pseudónimo.
"Naturalmente, Sebastião Pereira é um jornalista, foi formado nesta casa e trabalha atualmente em Portugal. O seu nome é um pseudónimo e no El Mundo não podemos revelar a sua identidade." Esta foi a resposta que, ao fim de um dia e meio de tentativas de esclarecimento sobre a identidade do autor das notícias, Sílvia Roman, a editora do Internacional do diário, enviou por escrito ao DN. Ao telefone, Roman manifestou a sua perplexidade e até irritação com o interesse demonstrado pelos portugueses - "Passei o dia a receber contactos de jornalistas daí por causa disto, não percebo porquê, podes dizer-me?" -, garantindo que "em Espanha é normalíssimo os jornalistas assinarem com pseudónimo". O mesmo respondeu ao Sindicato dos Jornalistas Portugueses, que a contactou com as mesmas questões, facto de que dá conta num comunicado exarado hoje. "O SJ questionou diretamente a publicação espanhola e Sílvia Roman (...), que afirmou: "Nada fizemos de errado, recorremos a um jornalista que utiliza pseudónimo e que conhecemos bem." Rejeitando dizer há quanto tempo conhecem o referido jornalista, Roman aproveitou o facto de estar a ser contactada pelo SJ para se dirigir aos jornalistas portugueses: "Parem de me atacar no Twitter! Parem de me enviar mails! Parem de tentar telefonar-me! Em 22 anos nesta secção nunca me aconteceu algo assim, nem no caso da Venezuela ou da Turquia!""
Contradições e mistério
Quanto às perguntas do DN sobre se a pessoa que assina Sebastião Pereira é portuguesa e tem carteira de jornalista, Sílvia Roman não lhes respondeu. Aliás demonstrou surpresa por ser fácil, em Portugal, saber se um determinado nome corresponde a uma pessoa habilitada a trabalhar como jornalista: se cá basta ir ao site da Comissão da Carteira de Jornalista e consultar a lista de nomes dos jornalistas com carteira (que inclui os correspondentes estrangeiros) autorizados a exercer a profissão, em Espanha não existe a obrigatoriedade de título profissional, pelo que, aparentemente, qualquer pessoa pode assinar notícias, usando ou não o nome verdadeiro.
A resposta de Sílvia Roman ao DN e SJ é porém pouco consistente com a dada aos autores da página do Facebook Os Truques da Imprensa Portuguesa, que também contactaram o El Mundo com o objetivo de perceber quem é Sebastião Pereira, sem terem conseguido chegar à fala com Sílvia Roman - o que também sucedeu com o jornalista do i Sebastião Bugalho, que publicou, no i de hoje, um texto sobre o mesmo assunto.
"Segundo o El Mundo, Sebastião Pereira é um freelancer a atuar em Lisboa, que, no sábado, se ofereceu directamente ao jornal para fazer a cobertura dos incêndios florestais de Pedrógão Grande, aproveitando para isso o facto de já estar pela zona", lê-se num post de Os Truques, publicado ontem ao fim da tarde. Já Bugalho relata que dos "serviços administrativos da redação" do El Mundo lhe disseram "É uma situação surreal. Não sabemos o que se passou. (...) Não tinha ouvido o nome dele até você ligar." E, mais à frente, nota que "no dia de ontem, quando o caso começou a ganhar mais exposição nas redes sociais e a ser convenientemente investigado, o El Mundo já não publicou nenhum artigo assinado por Sebastião Pereira."
"Se ele é português em princípio não pode escrever notícias, mesmo para um jornal espanhol, sem ter carteira. Se é espanhol, pode estar no país por uns dias sem se registar na Comissão da Carteira, algo que só é obrigatório se for correspondente; um enviado especial temporário não precisa." Jacinto Godinho, jornalista, membro eleito (pelos jornalistas portugueses) para a Comissão da Carteira de Jornalista, esclarece as circunstâncias legais. Mas quanto ao uso de pseudónimo assume uma perplexidade contrária à de Sílvia Roman: "É sempre uma situação indigna, assinar notícias sob pseudónimo. Temos uma carteira profissional exatamente para sermos identificados; os cidadãos têm direito de saber quem são os jornalistas que assinam, até para, se for caso disso, pedirem responsabilidades." Mas o professor do curso de Ciências da Comunicação da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa vai mais longe: "Não consigo imaginar razões para assinar artigos jornalísticos sob pseudónimo; se houver uma situação em que a pessoa esteja em risco por qualquer motivo o recurso deve ser uma assinatura geral do próprio órgão que assume o trabalho. E não percebo por que motivo o El Mundo há de aceitar que alguém assine estas notícias sob pseudónimo. A não ser que seja alguém com contrato com um órgão de comunicação social português que não podendo, por motivos contratuais, trabalhar para o El Mundo resolveu fazer assim, para não se saber quem é."
Legislativas em outubro?
Será isso? Um jornalista português que estivesse a cobrir os incêndios para outro meio e tenha resolvido trabalhar também para o El Mundo? Certo é que nas notícias assinadas por Sebastião Pereira não existe qualquer descrição ou citação direta que indicie reportagem no terreno ou contactos efetuados diretamente pelo autor. Citam-se entrevistas dadas à agência de notícias espanhola EFE, estudos, e fazem-se asserções, como a citada sobre António Costa, coadjuvando-as com a informação de que Portugal está "a menos de quatro meses de legislativas" (passados dois dias, e apesar de o DN ter apontado esse erro ao El Mundo, a referência às legislativas continua online); algum jornalista português confundiria as legislativas com as autárquicas ou, caso o erro fosse da edição do jornal, deixaria de o apontar e pedir para o corrigirem? Outra afirmação bizarra, sem referência a fonte, é de que "grande parte dos bosques nacionais foram privatizados a seguir à Revolução dos Cravos" (no artigo "Por que arde Portugal em cada Verão?", publicado a 19). E no texto que mais eco teve em Portugal, publicado a 21, reporta-se "uma enxurrada de críticas à gestão do desastre por parte do Governo do primeiro-ministro António Costa, e em particular da ministra da Administração Interna", sem referir a origem de tais críticas ou dar qualquer exemplo, sendo certo que "enxurrada" é uma expressão que dificilmente descreve o número de críticas ao governo na altura em que o artigo saiu.
Na Comissão da Carteira Profissional de Jornalistas não deu entrada, até agora, qualquer queixa relativa às notícias assinadas por Sebastião Pereira, mas a CPCJ deverá analisar os textos nos próximos dias. Já o SJ diz ter contactado "também os sindicatos espanhóis, informando-os sobre o caso e pedindo cooperação para o esclarecer."
Em Espanha, que não tem uma lei que reja a atividade dos jornalistas, o controlo deontológico é efetuado através de uma instância de autorregulação sem poderes sancionatórios, a Comisión de Arbitraje, Quejas y Deontologia del Periodismo, que tem a função de zelar pelo respeito pelo Código Deontológico da Federação das Associações dos Jornalistas de Espanha e que é constituída por jornalistas, juristas, académicos e "outras personalidades relevantes da vida social". O grupo editorial a que pertence o El Mundo subscreveu este Código Deontológico e admite a arbitragem que lhe está associada.
Nada no Código Deontológico em causa refere a utilização de pseudónimo, mas no seu número 2 assegura que "o primeiro compromisso ético do jornalista é o respeito pela verdade" e no número 5 dos "princípios de atuação" estatui-se: "O jornalista estabelecerá sempre uma clara e inequívoca distinção entre os factos que narra e o que possam ser opiniões, interpretações ou conjeturas, ainda que no exercício da sua atividade profissional não esteja obrigado a ser neutral."