Eisenstein, entre o riso e a tragédia americana
Numa sequência de textos que começa com a frase "O que vou contar-vos passou-se há muito tempo", Serguei Eisenstein (1898-1948) relata como se tornou realizador, vindo dos seus preciosos estudos de engenharia civil, matemática e hieróglifos japoneses, fala da origem e experiência de O Couraçado de Potemkine (1925), e pouco depois de alguma análise da sua própria obra e um ou outro conceito teórico, dedica um capítulo à reflexão sobre a comédia na URSS, no qual consta a dupla e divertida interrogação alheia: "Porque é que no seu país não se produzem comédias? É verdade que os soviéticos mataram o riso?"
O episódio caricato aconteceu em Paris, 1930, numa conferência na Sorbonne em que a projeção de A Linha Geral (1929) tinha sido proibida pela polícia meia hora antes do início da sessão. Sem filme, sobrou muito tempo para perguntas da audiência. Incluindo esta, imprevista, a que Eisenstein respondeu assim, depois de uma gargalhada: "O que lhe posso dizer é que todos na URSS se vão rir a bandeiras despregadas quando lá me referir à sua pergunta!" No dia seguinte lia-se na imprensa: "Não é com o punhal entre os dentes mas com o sorriso nos lábios que os bolchevistas metem medo." Naturalmente, Eisenstein teve que se apressar a ir embora da capital francesa, mas a questão do riso ficou-lhe a martelar na cabeça, como o provam uma boa dezena das páginas do livro Reflexões de um Cineasta que acaba de ser publicado com a tradução e prefácio do realizador José Fonseca e Costa (1933-2015).
Com efeito, este marxista e vanguardista soviético que é tão-só um dos mais importantes nomes da história do cinema, com a sua teoria da montagem e uma filmografia intimamente ligada ao contexto político da URSS (sem, no entanto, alguma vez ter tido filiação partidária), foi também uma mente prodígio que pensou a sétima arte nos seus diferentes aspetos. A comédia será um deles. E quando se fala de comédia, qual é a referência imediata de Eisenstein? Charles Chaplin. Tentando desenvolver um pensamento sobre a tradição russa do riso ele recorre ao modelo de Chaplin para fazer a comparação. Assim: se a especificidade deste ícone reside no "desequilíbrio do adulto que se porta como uma criança", o traço característico dos russos (presente na literatura de Tchékhov ou Gogol) será "a nota de denúncia social". Portanto, o riso trágico e militante. Questão resolvida.
Mas há mais sobre Chaplin. Eisenstein consagra-lhe os dois últimos capítulos ("Charlot, o garoto" e "O Grande Ditador"), sublinhando primeiro o génio do seu infantilismo, por oposição à fatalidade adulta - "A faculdade de ver como uma criança é inimitável, única, própria de Chaplin" - e depois o modo como, através da sátira sobre Hitler que é O Grande Ditador (1940), este se converteu em Chaplin-o-Tribuno, com o pleno uso da palavra já no cinema sonoro.
É curioso perceber que, por duas vezes, neste Reflexões de um Cineasta, Serguei Eisenstein refere a cena final do filme O Peregrino (1923), de Chaplin, em que ele segue pela fronteira com um pé nos Estados Unidos e o outro no México. Sem ser preciso fazer psicanálise, a recorrência desta imagem poderá estar relacionada - para além de toda a aplicação teórica - com a experiência americana do próprio Eisenstein, que passou por Hollywood sem ter conseguido realizar um único filme e decidiu seguir para o México, onde rodou o inacabado Que Viva México. Até agora, existem duas montagens do filme, uma pela biógrafa Marie Seton e outra por Grigori Alexandrov.
Dessa atribulada passagem por Hollywood o livro contém um capítulo que pode resumir tudo (com algum eco atual): Uma Tragédia Americana. É o título de um dos projetos que a Paramount lhe atribuiu, tendo o cineasta soviético estudado bastante uma aproximação à psicologia individual típica das produções hollywoodescas, para aplicar no argumento (o filme acabou realizado por Josef von Sternberg), mas traduz também um amontoado de frustrações. Outros projetos que morreram na praia, ou porque eram muito dispendiosos ou por embirrações dos produtores com o argumento, foi The Glass House, inspirado no sonho, não concretizado, do arquiteto Frank Lloyd Wright de construir uma torre de vidro, e Sutter"s Gold, a evocar a corrida ao ouro em 1849. Sem plataforma de entendimento, Eisenstein fez as malas e seguiu então para o México, certamente com a imagem do final de O Peregrino de Chaplin em mente....
Publicado pela primeira vez em Portugal em 1961, pela antiga editora Arcádia, Reflexões de um Cineasta é uma mistura de textos que dão a conhecer a visão pura de um "artista científico" à semelhança de um Leonardo da Vinci. Eisenstein relata memórias quase da mesma maneira com que expõe uma teoria. Há verve intelectual em tudo, até quando fala da sua colaboração com o compositor Serguei Prokofiev ou lamenta a morte do escritor Máximo Gorki. Valerá a pena levar à letra as palavras de Fonseca e Costa na introdução do livro: "Mais importante do que falar da importância da obra teórica de Eisenstein é ler os textos que a compõem".
Serguei Eisenstein
(tradução de José Fonseca e Costa)
Editora Bookbuilders