Edgar Pêra põe Roterdão em transe
Há segredos que não se escondem. No Festival de Roterdão, na apresentação da sessão em antestreia mundial (estreou antes num festival do Brasil e noutro em Portugal, mas como esses são os países produtores, não conta) de Camynhos Magnétikos, de Edgar Pêra, o diretor do festival Bero Beyer, confessava que o ADN do festival em matéria de retrospetivas passa por dar a conhecer cineastas singulares que o público ainda não conhece bem. Revelava que Pêra merece uma retrospetiva, neste caso uma "retrofuturespetiva". Uma imersão na obra de um autor que desde os anos 80 tem sido um explorador incansável de novas linguagens de cinema. Além do mais, Pêra é um cineasta repetente em Roterdão, um segredo nada bem escondido.
Pela dimensão da retrospetiva e o impacto que a mesma tem neste festival caça-filmes de culto importa registar que se trata do primeiro grande momento internacional do cinema português em 2019. E é também a maior consagração de Pêra fora de portas, ele que também trouxe em estreia internacional O Homem Pykante , belíssimo documentário que nos escancara em forma de transe a mente genial de Alberto Pimenta e uma primeira versão (ainda em fase de montagem) do seu próximo filme, Kinorama 3D- Cinema Fora de Órbita, documentário que prolonga a investigação cinemática iniciada em O Espetador Espantado.
O realizador lisboeta teve ainda uma receção apoteótica de Lovecraftland, um evento performativo com música de Legendary Tigerman e atuações ao vivo de Dominique Pignon e Iris Cayate. Trata-se de uma espécie de cine-concerto que no MOTELx de 2018 tinha tido já uma primeira versão. Esta experiência sensorial em torno do universo H.P. Craft foi um dos grandes acontecimentos do arranque do festival.
Para Pêra, estar num festival de classe A com uma imensa retrospetiva não é atestado de institucionalização, conforme contou ao DN: "aqui em Roterdão ainda se fala mais de cinema do que negócio, coisa rara nestes dias. É um festival que me faz sentir em casa, faz todo o sentido ter sido Roterdão a fazer esta retrospetiva que me faz olhar para o futuro. Olhar para o meu trabalho do passado é uma forma de perceber quais os filmes que me faltam fazer e como seguir um caminho sem me repetir. Num certo sentido, é uma retrospetiva que vem na altura certa".
Muitas das sessões dos filmes desta retrospetiva tiveram casa cheia e sessões de perguntas e respostas bastante concorridas, permitindo ao realizador estar em contacto com um público sem medo do cinema mais exploratório, mesmo quando as suas imagens colocam precisamente em causa a "segurança" do espetador. "Se sou um cineasta à frente do espetador? Não sei, mas é preciso ter em conta que existe o espetador do passado, os cinéfilos, o do presente, que representam o gosto dominante, e o do futuro. Em Roterdão encontramos pessoas que têm uma certa liberdade na forma de olhar para o cinema e que olham para o passado do cinema como forma de descobrir novas linguagens, como por exemplo o programador Olaf Moller".
Antes de entrar para mais sessão seguida de debate, Edgar Pêra confessa que a experiência do cinema direto de Lovecraftland lhe deu um imenso gozo: "cada sessão tem um aspeto não reproduzível. Só quem esteve ontem no Lanterenvester sabe o que ali se passou. Apesar de ser cinema, tem um carácter mais operático com música ao vivo, atores em palco e manipulação de imagem". A retrospetiva Edgar Pêra Retrofuturespeketive vai estar disponível para o público internacional do espetador até dia 2, consagrando um cineasta com um das vozes mais disruptivas do audiovisual português.
Como é costume, o primeiro dos grandes festivais do ano aposta também muito em cinema português. Um dos destaques da secção Bright Future foi Tragam-me a Cabeça de Carmen M., do brasileiro Felipe Bragança e da portuguesa Catarina Wallenstein. O filme dividiu opiniões e em 61 minutos toma o pulso ao Brasil de hoje através de uma história em torno de uma atriz portuguesa que está prestes a ser Carmen Miranda em cinema.
Na mesma secção, destaque para A Volta ao Mundo quando Tinhas 30 Anos, de Aya Koretzky, uma prova do crescimento de uma cineasta que está a encontrar uma respiração de cinema muito sensual e também para Alva, de Ico Costa, "slow-cinema" que propõe um olhar do real a partir de uma ideia de repensar o crime à portuguesa.
Para além do cinema português, Roterdão vibrou ainda com Une Jeunesse Dorée, de Eva Ionesco, cineasta que filma em regime autobiográfico. Depois de Eu Não Sou a Tua Princesa, Ionesco encena um conto de desvio sexual numa Paris de sexo e drogas do final anos 1970. Há um desamparo calculado que resulta bem e uma Isabelle Huppert sulfurosa. Será uma pena se não encontrar distribuidor em Portugal.
O Festival de Rotedão termina dia 3. https://iffr.com/