É só inquietação, inquietação...

Deixar o Mundo para Trás, de Sam Esmail, é talvez o primeiro filme americano de estúdio a fazer a parábola irónica da neurose pós-pandemia. Tem Julia Roberts em apuros numa sociedade a colapsar sem explicações. Está na Netflix sem ter passado pelas salas.
Publicado a
Atualizado a

O fim do mundo bate à porta e traz muita coisa: trauma de flagelo climatérico, egoísmo de novo milénio, racismo e paranoia republicana. Sam Esmail, criador da série Mr. Robot, teve alguns meios para este seu filme de apocalipse do agora e quis meter tudo no mesmo saco. Nessa vontade gulosa de ir a todo o lado perde-se algumas vezes pelo caminho, mas este Leave the World Behind compensa quase sempre, seja pela atmosfera verdadeiramente perturbante, seja pela criação de um desconforto moral de uma nova América das aparências e falsos moralismos.

À sua maneira, é também um filme sobre as novas famílias desconjuntadas pelo capitalismo urbano e a queda de valores. Esmail pega numa família em crise de valores e espeta-lhes o desmoronar da sua segurança, ou seja, a espetacular queda da sua zona de conforto. O mecanismo passa por um jogo inteligente de convenções de perceções, um dispositivo concetual capaz de fazer da dúvida a protagonista e com engenhos sucessivos de argumento que podem ir de referências pop - a alusão ao revivalismo da sitcom Friends - ao romantismo do fascínio dos novos desígnios das fontes de poder económico - a cruzada pela informação.

O ponto de partida é uma escapada para férias de uma família nova-iorquina para uma casa de praia em Long Island. Primeiro, há uma espécie de apagão: a internet vai ao ar e os donos da casa que alugaram aparecem misteriosamente. São de outra etnia e parecem ter mais poder de compra. Depois, inquietantes fenómenos: concentração de veados ameaçadores, ruas desertas, queda do sinal televisivo e ruídos que quase destroem os tímpanos. Pensa-se em invasão aos EUA, ataque de hackers, nova guerra mundial, fenómeno climático ou o Dia do Juízo Final. Ainda assim, há uma teenager a querer ver o final de Friends e uma matriarca que confronta a sua misoginia. No fim do mundo talvez continuemos a ser humanos e a manter a falha.

Sam Esmail sabe jogar com perceções antecipadas do género tão em voga do filme do "pós-apocalipse" e sugere o maximalismo: imagens de pesadelo grandioso, aviões a cair, explosões na paisagem de Nova Iorque e navios petrolíferos a invadir uma praia, mas não se esquece do minimalismo do suspense do mero ranger de uma porta ou de um ruído na floresta. Deixar o Mundo para Trás é sempre mais eficaz nessa incongruência, capaz de abalos de adrenalina com piadas sobre carros automáticos de Elon Musk e reflexões ácidas sobre a honestidade daqueles que sabem da sua alergia pela raça humana. Nesse capítulo, é refrescante estarmos perante um thriller que não acredita na redenção das suas personagens. Um thriller que permite as maiores explosões dramáticas a uma atriz como Julia Roberts e um espaço de recriação consentida a um Ethan Hawke em autêntico modo de farsa.

Em geral, o que inquieta mesmo aqui é uma câmara capaz de fazer um close-up perfeito sobre a paranoia milenar de hoje. M. Night Shyamalan pode ficar com inveja: este é material que o realizador de O Sexto Sentido gostaria de tocar...

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt