E se falássemos (do) francês?
Basta pensar que o mais recente Nobel da Literatura foi atribuído a Annie Ernaux para se perceber o prestígio e a capacidade da língua francesa de produzir grandes nomes e grandes obras. Aliás, desde que Sully Prudhomme recebeu o Nobel em 1901 são já 15 os escritores franceses premiados, mais do que qualquer outra nacionalidade. Os americanos, por exemplo, foram 12 até agora a receber o Nobel da Literatura, tantos como os britânicos (no total, os Nobel de língua inglesa dominam). E apenas houve um vencedor português, José Saramago, em 1998 - que, aliás, permanece também o único premiado de um país de língua oficial portuguesa, apesar de, durante décadas, o brasileiro Jorge Amado ter sido dado como provável escolha da Academia Sueca.
O francês está longe, porém, de ser idioma exclusivo dos franceses. A história levou esta língua a todos os continentes, sobretudo às antigas colónias francesas, onde o seu uso (oficial ou não) é prática corrente, mesmo que nem sempre pela maioria da população. Nomeadamente em África, há países onde o francês, língua das elites ocidentalizadas, coexiste com línguas nacionais muito implantadas regionalmente ou que servem até como língua franca. Toda esta diversidade vai estar visível nas mais de 80 delegações que amanhã e domingo se reúnem em Djerba, na Tunísia, para a XVIII Cimeira da Francofonia. São 57 Estados-membros, mais 27 países observadores e ainda sete parceiros.
Língua de cultura que na Europa substituiu o latim como idioma da diplomacia, o francês, a partir de finais do século XX, viu-se relegado para segundo plano pelo inglês como língua franca não só do Velho Continente mas mundial. Exagera-se ao associar tal a uma certa decadência de França, digamos que tem mais que ver com a pujança económica dos Estados Unidos e com a capacidade de este país anglo-saxónico, juntamente com o Reino Unido, ter uma produção cultural de pujante apelo popular que vai muito além-fronteiras.
Mesmo considerando hoje o inglês imbatível como língua número um em termos de atração global, o francês, que reivindica 321 milhões de falantes, está também ameaçado como uma segunda língua de estudo pelo sucesso crescente do espanhol, em especial nos Estados Unidos. O chinês igualmente procura ganhar estudantes em vários países, graças à proliferação de Institutos Confúcio, mas nesse caso a dificuldade da aprendizagem, tanto oral (por causa dos quatro tons) como escrita (o drama dos carateres), desanima muitos candidatos à aprendizagem.
Estive há dias em Djerba, no sul dessa Tunísia que foi um protetorado francês até 1956. A língua oficial é o árabe, mas nos media, na educação ou na comunicação mais erudita, mesmo entre tunisinos, o francês está omnipresente. Em regra, se um tunisino conhecer alguma língua estrangeira será o francês, mesmo que básico. E, apesar de se tratar de uma ilha turística, em Djerba o inglês pode não ser ainda suficiente fora dos hotéis ou de alguns restaurantes mais virados para a clientela estrangeira.
Mas se a componente utilitária do francês se mantém, sobretudo quando se viaja no Magrebe, na África Ocidental ou no Líbano, a grande vantagem de conhecer a língua é o acesso privilegiado não só ao país França em si (e já agora a parte da Bélgica e da Suíça e ao Luxemburgo) como a uma cultura de grande vitalidade, com uma visão do mundo alternativa à anglo-saxónica via livros e jornais franceses (como acontece também a quem sabe espanhol, italiano, alemão, árabe, russo, chinês, japonês...).
É pena que em Portugal, perante o inevitável sucesso do inglês como segunda língua (chamada útil para a vida profissional), não se esteja a preservar nas gerações mais novas o conhecimento do francês, como terceira língua (ou mesmo segunda). Cabe aqui à França, através das suas instituições, fazer mais por essa promoção da língua dita de Voltaire mas que também é a de Ernaux. E que prazer é poder ler um Nobel sem tradução.
Diretor adjunto do Diário de Notícias