Menos de um ano depois de ter sido mãe, Capicua tem um disco novo. O disco e o filho cresceram dentro dela ao mesmo tempo. Enquanto escolhia os beats, escrevia as rimas e gravava as canções, já havia um bebé a provocar-lhe enjoos e a dar-lhe pontapés na barriga. É, por isso, impossível falar de um sem falar de outro. "Não acho que nos tornemos mães quando nos põem a criança no colo, vamos todos os dias acordando mais mães do que no dia anterior e eu ainda estou nesse processo.".Nesse sentido, explica, este Madrepérola ainda não é o disco da mãe Capicua. "Este disco, mais do que marcado pela maternidade, foi marcado pela gravidez, pelo parto e pelo puerpério, que são coisas muito diferentes do que é o quotidiano da maternidade", sublinha. Está lá tudo e não é só por causa da imagem da pérola que cresce dentro da ostra. Ouvimos Madrepérola e esbarramos na barriga que cresceu com estrias e sentimos o sofrimento para que haja um nascimento ("como um ovo que estala por dentro", canta em Parto sem Dor), revemo-nos no destino da filha que se transforma em mãe, naquele amor maior que vai crescendo todos os dias e que nos dá uma força que vem sabe-se lá de onde: "Eu rasguei a dor e o medo como papel de embrulho", anuncia ela em Último Mergulho - a última músico do disco a ser escrita, "acrescentada", já depois do nascimento de Romeu..youtubeaVSynzieFEk."Ser mãe é algo que tem mudado a minha vida profundamente porque as prioridades deixaram de ser a minha vontade e o meu trabalho e passaram a ser tratar de um bebé. O eixo da realidade deixa de estar dentro de nós e passa a estar em algo externo, diz a rapper de 37 anos. "A minha vida mudou muito e vai mudar ainda mais porque a maternidade é um processo e há sempre desafios novos todos os dias.".E se é verdade que ainda não há muitas músicas sobre isso, há as crónicas, que Capicua escreve, quinzenalmente, na revista Visão: "Na gravidez contive-me para não escrever muito mas era inevitável. E depois percebi que essas eram as crónicas mais lidas e mais partilhadas. Então, fui perdendo o pudor de pegar nessas coisas de mulheres e trazê-las para o espaço público", explica. A quantidade de mensagens que recebeu serviu-lhe de incentivo. "Primeiro, há um efeito de identificação que une todas as mães do mundo. E depois também acho que se escreve pouco sobre a realidade daqueles primeiros tempos da maternidade, é algo que as pessoas vivem no seu foro íntimo. Até porque é um tema muito associado às mulheres e já se sabe que as mulheres não marcam muito a agenda nem a literatura que documenta o mundo (o que é algo que eu espero que esteja a mudar), portanto quando alguém fala da maternidade de uma forma bastante franca como eu tenho tentado fazer as pessoas identificam-se e percebem que afinal não viveram aquilo sozinhas, que é uma realidade que acontece a outras mulheres.".E por falar em mulheres, elas continuam a ser o centro do trabalho de Capicua - seja nos conselhos que dá às jovens rappers seja no incentivo a que juntemos os caquinhos da nossa vida e façamos um Gaudí. "Sempre fiz da minha música um megafone das minhas causas", confirma a rapper. "Faço arte da ferida, cuspo no Patriarcado", canta ela em Madrepérola, que foi a primeira canção do disco a ser divulgada e na qual evoca uma série de figuras que, cada uma à sua maneira, a inspiraram, como a pintora Frida Kahlo, a jovem ativista Malala, passando por Amália ou as tenistas Venus e Serena: "Vim dar lições a putos e a homens das cavernas sobre a vida com V grande e V no meio das pernas.".youtube23xdSqdRk88.A luta contra o Patriarcado continua a ser uma das bandeiras da rapper. "E vai continuar", prevê ela. "Eu gostava de que um dia deixasse de fazer sentido, que as mulheres ganhassem o mesmo do que os homens, que deixassem de morrer mulheres vítimas de violência doméstica, que as mulheres pelo seu mérito estivessem também representadas nas chefias das empresas, enfim, uma série de coisas que ainda não existem." Estamos em 2020 e continua a haver dois pesos e duas medidas: "Às mulheres exige-se não só que sejam boas como ótimas profissionais, como ainda que sejam decorativas e não façam grandes alaridos, que sejam excelentes mães, boas donas de casa e ainda tenham tempo para ir ao ginásio e tirar o buço com laser. Portanto, sendo assim, eu vou continuar a falar disto."."O hip-hop que eu quero para o futuro não será conservador, nem machista, nem burro, apregoa em Passiflora, um dos temas mais fortes do álbum e no qual reflete sobre a sua experiência como rapper, revelando a exasperação perante a pressão constante da crítica e da indústria. "Se falo daquilo que me incomoda, tenho de falar disto", justifica. "O hip-hop é a minha tribo, a música é o meu ganha-pão. Poder viver daquilo que gosto de fazer é ótimo, mas também há um lado menos romântico." Por exemplo o facto de ter de se autopromover, de se expor para chamar a atenção para o seu trabalho. Ou então lidar com as reações negativas à sua música..youtubeHgxPvmZa9oI."O nosso trabalho é muito autoral, mistura-se muito connosco próprios, então parece um teste de popularidade permanente, como se as pessoas que não gostam do teu disco não gostassem de ti. As coisas confundem-se e é preciso ter muito estofo. Pões ali o teu sangue, a tua voz, as tuas vivências, os teus amores, os teus desencantos e, de repente, há um gajo que arrasa aquilo. E tens de ter uma grande resistência e autoconfiança", admite. Além disso, vivemos "num mundo em que os critérios de sucesso de uma carreira musical são muito quantitativos, tudo se mede em likes, em views em streams, em vendas. Se te tornas escrava disso pode ser muito frustrante", explica..Em Passiflora, Capicua garante: "Não me moldo nem ao soldo nem à bênção dos demais." E avisa-nos de que é melhor aproveitarmos porque este disco poderá ser o último. Como assim? Ela ri-se e desdramatiza: "Não sei se vai ser o último disco. Não é uma ameaça nem nada que se pareça, estou só dizer que o disco é um formato cada vez mais obsoleto. As pessoas não têm tempo nem paciência para ouvir discos, só ouvem playlists e querem ver vídeos no YouTube. E é um bocadinho ingrato perceber que todo o nosso investimento, suor, lágrimas, dinheiro, dedicação, acaba por ser incompatível com a voragem do mercado e das redes sociais e de todo esse circuito onde as pessoas consomem a música. E, nesse sentido, não sei se vão continuar a fazer-se discos e se eu, ou por profunda necessidade ou por romantismo ou por muita teimosia, vou continuar a fazer discos. Mas se for o último, é.".O que não significa, de todo, deixar de fazer música e, muito menos, deixar de escrever: "Ter o meu caderno e ir anotando coisas, depois construir a letra, pensar o refrão, pensar nos arranjos, estar com os músicos, gravar. Isso é o que me motiva mais. Criar algo que não existia e que é super autoral e pessoal só tu é que poderias fazê-lo daquela forma. Todo esse processo, que é longo e minucioso e às vezes é difícil, é o que me dá mais prazer, porque é como uma alquimia (não dá para explicar por palavras, é como explicares cores e cheiros e sabores): imaginar algo e através do teu trabalho torná-lo real. É incrível isso.".imagemDN\\2020\\01\ g-cbb48629-a906-41bb-85f6-46481574d192.jpg.O disco Madrepérola vai estar à venda a partir de sexta-feira, dia 24, e será apresentado em concertos no Teatro Circo, em Braga, a 14 de fevereiro; no Teatro Aveirense, em Aveiro, a 20 de março; e no Teatro Rivoli, no Porto, a 4 de abril.