"É mais gratificante para o poder político investir em hospitais do que nas cadeias", diz capelão

O capelão da cadeia de Paços de Ferreira diz que não se lembra de uma situação como a que se está a viver neste momento, de revolta e de agressividade. Ao DN, fala das queixas dos reclusos, da falta de interesse político no investimento nas prisões, nas condições físicas e na falta de pessoal.
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António Correia é padre há 33 anos. Esta há 29 na paróquia de Seroa e há quase 27 a prestar serviço no Estabelecimento Prisional de Paços de Ferreira. Diz que não pode falar com toda a certeza e profundidade das razões que estão na base do ambiente que ali se tem vivido nos últimos tempos, mas que não se lembra de uma situação assim - com festas de reclusos transmitidas nas redes sociais e com agressões a guardas.

António Correia diz que pode falar das queixas dos reclusos, do que mais sentem falta e do que, para ele, tem constituído uma preocupação constante: a falta de interesse político no investimento em condições físicas e em pessoal para haver o acompanhamento adequado a quem está naquela casa. E afirma: "Não são estas pessoas que vão usar o saber e o poder que têm para questionar as políticas prisionais quando estão cá fora, muitos não têm para onde ir e acabam por regressar ao ambiente que já conhecem. Mas o Estado deve pensar em soluções e no apoio que lhes dá."

Por isso, e tendo presente uma queixa recorrente dos reclusos, defende que é preciso saber prepará-los para a saída. "São precisas estruturas de apoio para aqueles que não têm ninguém. É preciso haver um espaço onde possam ficar, uma espécie de albergue que os receba por alguns meses, até conseguirem refazer as suas vidas. Esta estrutura não existe e o Estado deveria pensar nisso, até para não caírem no ambiente que já conhecem e mais tarde regressarem à prisão."

O padre António confessa que o tempo que ele próprio pode disponibilizar aos reclusos não é aquele que gostaria. A seu cargo está uma população de mais de 700 reclusos, só naquele estabelecimento, depois "tenho ainda os da cadeia de Vale do Sousa, que nasceu para ser uma extensão desta mas que se autonomizou. Ao todo, são cerca de mil homens."

Como capelão vai todos os sábados às cadeias de Paços de Ferreira e de Vale do Sousa e uma vez por semana a cada uma delas. Acompanha pessoas que estão no sistema prisional há 10, 20 ou 30 anos, "muitas porque regressaram". E diz que, por vezes, preferia não saber das suas histórias de vida, das suas amarguras, dos seus problemas e até mesmo dos crimes que cometeram, "é duro, porque não tenho uma solução para eles, não posso decidir nada, só posso ouvi-los e levar comigo tudo o que me contam".

Nos últimos tempos, António Correia não tem dúvida de que a falta de pessoal na cadeia é uma das queixas que mais tem ouvido dos reclusos que acompanha. "Há uma grande falta de guardas. É um dos problemas não só de Paços de Ferreira, mas do sistema também. Não é novidade para ninguém a falta de pessoal na administração pública."

"Há presos que estão fechados durante 23 horas em celas que dividem com mais um ou dois colegas"

Paços de Ferreira é uma das prisões que recebem condenados a penas longas e que há muito têm uma situação de sobrelotação. "Há muita gente junta na mesma ala, sobretudo naquela que é mais problemática. Nesta, dizem-me que há reclusos que dividem a cela com mais um ou dois colegas e, se não há guardas suficientes para os acompanhar nas atividades diárias nas oficinas - antes até desenvolviam bastante este tipo de trabalho diário em marcenaria, serralharia, etc. -, acabam por ficar fechados durante 23 horas. Só têm uma hora de recreio", explica ao DN, continuando: "Se estão confinados durante todo o dia a um espaço pequeno, não desenvolvendo um trabalho ou uma atividade que os faça pensar noutras coisas e que até lhes dê algum rendimento, é natural que tal suscite mais revolta e tensão."

Há uma outra coisa de que o pároco de Seroa, Modelos e Codeços não tem dúvidas: "As condições da estrutura física ajudam muito no ambiente da prisão. Por exemplo, veja o caso da cadeia de Vale do Sousa, tem 12 anos, é mais pequena e tem outras condições. Muitos dos reclusos que estão em Paços, se calhar, gostariam de estar em prisões como a de Lamego, Viana e até de Guimarães. São regionais, mais pequenas, menos pessoas e o ambiente é outro. Mas nem todos o conseguem e quem sabe que foi parar a Paços, por exemplo à ala mais problemática, tenta mudar dali ou tenta adaptar-se. A cadeia tem duas alas, uma que me dizem que é mais problemática e outra mais pacífica. As próprias celas têm condições diferentes."

O padre António volta a falar do desinteresse político no, "há muito que se houve falar de novos estabelecimentos, mas onde estão? Onde estão as melhorias nas condições? Não há interesse político para resolver esta situação. É mais gratificante investir em hospitais do que nas prisões. Todos nós sabemos que só vai parar à prisão quem já teve uma vida complicada, quem vive bem não vai lá parar, só algumas exceções, mais mediáticas", argumenta. Mas também porque "à sociedade em geral não interessa o que se passa neste meio, a não ser que haja problemas que sejam notícia, e ainda porque nas cadeias estão os pobres, na sua esmagadora maioria."

Quanto aos que ali estão hoje naquela prisão, diz: "Não sei se são as condições ou a vida que já viverem que predispõem mais estas pessoas para a criminalidade, se a sua vida são consequência ou até a causa dos crimes que cometem, mas sei que o Estado deveria olhar mais para esta população e para o seu ingresso depois na sociedade."

O problema é que as cadeias normalmente só são notícia por maus motivos, "só se fala e os políticos só olham para aqui quando há motins", comenta.

"Tem sido um teste à autoridade"

Desde dezembro, assim que se soube que os guardas prisionais iriam fazer greve na altura do Natal - o que impediria visitas durante essa época - que a cadeia de Paços de Ferreira e outras, como o Estabelecimento Prisional de Lisboa, se tornaram notícia. Em Lisboa houve um motim e em Paços de Ferreira protestos, muitos. Mas desde essa altura que em Paços tem havido "um constante desafiar da autoridade. Vão fazendo testes para ver até onde se pode ir".

Há três semanas, um dos reclusos fez anos e deu uma festa na ala em que está preso. Transmitiu-a nas redes sociais através de imagens captadas por um telemóvel. Dois dias depois, a diretora da cadeia, Fernanda Maria Barbosa, foi ao Parlamento explicar aos deputados o que se tinha passado. Dizendo apenas que o caso estava em investigação. Quatro dias depois, na madrugada de 15 de fevereiro, é feita uma rusga em que são apreendidos 79 telemóveis, drogas e outros objetos proibidos.

Nesse mesmo dia, o Ministério da Justiça informava em comunicado que a diretora Maria Fernanda Barbosa se tinha demitido e que a sua decisão tinha sido aceite. Pouco depois era nomeada uma nova direção, a escolha da ministra e dos serviços prisionais recaiu em Isabel Rato, que admitiu: "É preciso arrumar a casa, depois de o poder ter caído na rua."

Nesta quinta-feira, 7 de março, Paços de Ferreira volta a estar nas notícias. Um recluso em isolamento agrediu um guarda e já tinha tentado agredir outro. O sindicato dos guardas prisionais tem vindo a alertar para situações idênticas há algum tempo. O número de guardas é reduzido para os reclusos no estabelecimento - as estatísticas dão conta de que a população ocupa 129% da sua capacidade. Muito mais do que deveria. Chega a estar um para 400 presos, denunciou o sindicato, porque tudo se complica quando há dias de folga, férias e baixas médicas.

Construída há 60 anos para cerca de 400 reclusos, Paços de Ferreira tem agora cerca de 700 homens, a maioria condenados a penas muito longas pelos crimes que cometeram. Por isso, é considerada uma prisão de alta segurança e de complexidade elevada.

"Saídas precárias são cada vez menos concedidas"

O capelão António Correia diz não se arrepender de ter aceitado esta missão. "É gratificante quando percebemos que o acompanhamento a nível religioso os ajuda nas suas vidas", mas confessa que ainda são poucos os que procuram esse apoio espiritual. "Tenho pessoas que acompanho há muitos anos. Ao todo, devem ser uns 50", mas também confessa ser uma insatisfação perceber dia a dia ou ano a ano que nada ou muito pouco pode decidir para ajudar quem ali está. "Há situações que levo à direção da cadeia, mas fico sempre com a preocupação de não lhes poder dar uma solução para os seus problemas." Para o padre de Seroa, o contacto com os reclusos também o "libertou do maniqueísmo de dividir as pessoas entre boas e más. Cada um é ele e a sua circunstância."

O capelão fala das saídas precárias, uma medida que cada vez menos é concedida pelos pelos juízes, ou da liberdade condicional, também cada vez menos aceite. "Muitos deles dizem-me que já estão a cumprir o 1/4 da pena ou os 2/4 e nunca lhes permitiram uma saída a casa, e isso está na lei. Esta medida é a que mais desejam. Há que olhar para isto também", acrescentando saber que "uma das situações que pesam, muitas vezes, na decisão do juiz é o facto de alguns não terem onde ficar, porque deixaram de ter famílias ou porque os laços se romperam pelo crime que cometeram, mas há que pensar numa estrutura que os possa acolher e até integrar nestas saídas."

Este regime aberto poderia ajudar a preparar melhor os reclusos para o que vão encontrar quando saírem da prisão. "Este regime é menos usado agora, pelo menos naquela prisão. Disso me dão conta os reclusos. Antes ainda víamos reclusos a trabalhar para a autarquia nos espaços públicos, agora isso também não acontece."

O mesmo se passa em relação à concessão da liberdade condicional. "Há presos que se queixam disso, de não lhes ser dada a liberdade condicional quando têm bom comportamento. Aos 5/6 da pena têm mesmo de sair e depois não estão preparados. Esta transição não existe e eles ficam entregues a si próprios, muitos acabam debaixo da ponte, ou de um viaduto, e ao ambiente em que estavam inseridos e alguns acabam por regressar à cadeia."

E volta a sublinhar: "É preciso uma estrutura para esta transição, nem que seja uma espécie de albergue, que os acolha não de forma definitiva, mas durante uns meses, para que possam tentar resolver a sua vida." O capelão de Paços de Ferreira espera que desta forma possa alertar as autoridades para estas questões porque, "Portugal é dos países da Europa com mais presos efetivos. Teremos mais leis penalizadoras, se calhar. Mas é de se olhar para este regime."

António Correia acredita que ficaria "mais barato ao Estado (e a todos nós) se houvesse uma estrutura de transição, ficaria mais barato pagar esses meses de alojamento, para eles conseguirem resolver a sua vida, do que eles voltarem ao sistema prisional."

Já no final da conversa, diz que não pode deixar de lado uma das queixas que todos mencionam: "A alimentação. O orçamento não é muito para as refeições e não há como as empresas fornecerem uma refeição que pode custar três euros ou mais por dois euros e meio ou menos. Esta até tem sido uma das questões mais referenciadas por quem defende os direitos humanos nas prisões. E há que pensar como se pode resolver isto."

O que se tem passado na cadeia de Paços de Ferreira pode ter que ver também com uma mudança de orientação relativamente ao trabalhos que os reclusos poderiam fazer no exterior e no interior, tendo em conta a opinião dos reclusos, "mas agora a direção já mudou e vamos aguardar o que pode mudar e o que pode melhorar."

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