"É impossível ficar indiferente ao enorme esforço dos médicos e enfermeiros ucranianos"

O médico e deputado do PSD Ricardo Baptista Leite regressou a Portugal após ter estado duas semanas como voluntário no Hospital Regional de Lviv, quando arrancou no nosso país a campanha de angariação de fundos para a aquisição de equipamento para aquela unidade de saúde.
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Como surgiu a oportunidade de ir em missão à Ucrânia?
Quando as forças da Federação Russa invadiram a Ucrânia disponibilizei-me junto da embaixadora em Portugal [Inna Ohnivets] para ir como médico voluntário. Mais tarde, a embaixadora pôs-me em contacto com a associação de ucranianos em Portugal, que formalizou junto do governo regional de Lviv o convite para vir como médico voluntário, mas também para dar voz a uma campanha de angariação de fundos da associação [ucraniaportugal.pt] para ajudar a completar a construção de uma maternidade no Hospital Regional de Lviv, e cuja obra ficou a meio, digamos assim, por força da guerra, com o desvio de fundos para o esforço de guerra.

O que é que presenciou?
Quando se vai para um país em conflito há uma determinada expectativa, teórica, mas depois há a realidade. De facto, foi muito emocionante ver certas realidades. Como, por exemplo, encontrar unidades de cuidados intensivos para recém-nascidos em abrigos subterrâneos, sem luz natural, com ventilação escassa. Profissionais que estão nestas condições desde março, há cinco meses a trabalhar em condições tão adversas porque, apesar de Lviv ser das cidades mais seguras, sempre que há um alarme não dá para deslocar bebés em incubadoras para os abrigos, ao contrário de outros serviços. Conhecer a realidade de se estar sempre à espera das sirenes, que tocaram várias vezes enquanto estive lá, sem saber se a cidade vai ser atingida, e a ansiedade que isso gera. E, por exemplo, na maternidade, deslocarem as grávidas para o subterrâneo, o que levou, só neste hospital, a que tivessem nascido sete bebés nestes bunkers desde o início da guerra. Outro fenómeno é o impacto, na região de Lviv, da deslocação de cidadãos ucranianos que se veem forçados a fugir do leste e a cidade acaba por estar assoberbada de procura dos serviços de saúde. Há muita procura de militares e civis amputados e feridos de guerra que precisam de apoio protésico e de medicina física de reabilitação, todo um conjunto de serviços para os quais não estavam preparados a esta dimensão. É toda uma realidade assegurada por profissionais de saúde que, depois de dois anos de pandemia, estão há cinco meses em contexto de guerra. Percebi que estão tecnicamente muito bem preparados, muitas vezes sem os equipamentos e as tecnologias a que estamos mais habituados, mas procuram superar isso pela necessidade de adaptação. Não baixam os braços apesar do cansaço, e os médicos e enfermeiros ainda fazem voluntariado fora do serviço do hospital, ao receberem os deslocados internos. É louvável e é impossível ficar indiferente a este enorme esforço.

Citaçãocitacao"O ministro da Saúde Viktor Liashko transmitiu-me a necessidade que o país tem de encontrar apoio específico para os mutilados de guerra."

Como foi a sua experiência enquanto médico voluntário? A língua foi uma barreira complicada?
[Risos] Sim. O meu trabalho acabou por ser muitas vezes de assistente aos meus colegas, porque o cuidar diretamente dos doentes era muito limitado precisamente pela questão linguística. De vez em quando surgia um doente com quem eu podia falar diretamente. De resto acompanhava os colegas, eles faziam a tradução e discutia os casos clínicos. E apoiava quando havia vários procedimentos a fazer ao mesmo tempo nos doentes. Acabou por ser um trabalho de apoio às equipas de saúde e tive a sorte de terem preparado uma rotação pelos diferentes serviços e nas mais diversas especialidades, o que me permitiu ter uma visão transversal das dificuldades e dos desafios dos sistemas de saúde em Lviv. E ainda tive a oportunidade de visitar outros hospitais, um militar e um citadino que recebe mais traumatizados de guerra. Também visitei uma maternidade em Kiev onde, no abrigo subterrâneo, nasceram mais de cem bebés entre março e abril enquanto estiveram totalmente recolhidos. Reuni-me com o ministro da saúde, Viktor Liashko, que me transmitiu o apreço pelo apoio humanitário de Portugal e a necessidade que o país tem de encontrar o apoio específico para os mutilados de guerra, que precisam de reabilitação física e o país não consegue dar resposta.

Em que medida poderá contribuir para uma resposta do nosso país a essa necessidade do sistema de saúde ucraniano?
Antes de me deslocar à Ucrânia eu falei com o ministro dos Negócios Estrangeiros [João Gomes Cravinho] e tive todo o apoio e a disponibilidade absoluta da embaixada de Portugal na Ucrânia, além de me ter dado autorização para transmitir às autoridades, quer ao governo regional, quer ao ministro da Saúde, quer aos deputados com os quais reuni, o apoio inequívoco de Portugal à Ucrânia e a condenação absoluta a esta invasão bárbara da Federação Russa. O que foi acordado com as autoridades ucranianas é que vou tentar estabelecer pontes com um conjunto de instituições portuguesas que dão respostas, em particular na área da saúde mental e da medicina física e reabilitação. São duas áreas onde há necessidades críticas e para as quais a Ucrânia precisa de apoio. Por via do MNE vou procurar facilitar esses contactos além dos contactos institucionais diretos.

Como está a correr a campanha de angariação de fundos?
Os portugueses têm-se chegado à frente, quase com duas centenas de donativos individuais. Ainda estamos muito aquém do objetivo final, mas tivemos uma boa notícia. Quando começámos a campanha o Hospital Regional de Lviv também começou a sua e a ONU, por via da UNOPS, acabou por dar o donativo necessário para a compra de um gerador fundamental, que fazia parte da nossa campanha. Há agora necessidade de continuar a angariar fundos para o sistema de oxigénio e para o sistema de ventilação da nova maternidade. Também manifestei, por via das minhas funções como docente na Universidade Católica, apoio ao governo e ao ministro da Saúde no esforço de candidatura a fundos europeus. Agora a Ucrânia, com o estatuto de candidata à UE, tem direito a fundos para investimentos críticos na área da saúde e, com base na nossa experiência, podemos dar alguma ajuda ao governo e, através dele, ao povo ucraniano que tanto sofre.

cesar.avo@dn.pt

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