É este o "sonho literário da universalidade" do português

É João de Melo que o diz, representante daqueles que, em Cabo Verde, participam no VI Encontro de Escritores de Língua Portuguesa
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Passava a procissão do Santo Nome de Jesus, na Cidade Velha, Ribeira Grande Santiago. O primeiro andor seguia nos braços de um grupo que recitava Ave Maria em voz alta. Aqueles que transportavam o andor seguinte passavam numa mesma reza cantada.

"Santo Nome de Jesus? Nos Açores usa-se a expressão: Credo em cruz, Santo Nome de Jesus", diz o escritor João de Melo, de São Miguel, na mesma carrinha que transportava neste domingo Luís Cardoso, timorense, o brasileiro João Paulo Cuenca ou a são-tomense Goretti Pina.

Aquele grupo de homens e mulheres cujo ofício é escrever o mundo em português chegava então à Fortaleza São Filipe. A viagem decorria à margem do VI Encontro de Escritores de Língua Portuguesa, organizado pela União das Cidades Capitais de Língua Portuguesa (UCCLA) em parceria com a Câmara Municipal da cidade da Praia, onde este tem lugar até quinta-feira, terminando com uma visita ao antigo campo de concentração do Tarrafal.

A cidade que viu Darwin e o Padre António Vieira

Francisco, o guia, de camisa, blazer, e boina com o rosto de Che Guevara na cabeça, rodeado pelos portugueses Miguel Real e José Fanha, ou o moçambicano Luís Carlos Patraquim, lançava: "Sei que tenho muitos historiadores à volta, mas não tenho medo."

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Apresentava então aquela que foi a primeira cidade erguida por europeus - portugueses - na África subsaariana, em 1640. O hino da Cidade Velha (que também Ildo Lobo cantou) chama "portôn di nôs ilha" àquele lugar onde uma fortaleza foi construída durante a dinastia filipina, devido aos ataques de corsários (entre eles o inglês Francis Drake) e da pirataria naval. Em certos dias, vê-se dali a ilha do Fogo.

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Entretanto, em conversa referia-se a mestiçagem do Padre António Vieira, que pregou ali em 1652, quando rumava ao Brasil. Uma réplica do púlpito a que terá subido está agora na igreja da Nossa Senhora do Rosário, recentemente oferecida pela UCCLA.

Também um jovem Charles Darwin, que mais de vinte anos depois publicaria A Origem das Espécies (1859), terá passado pela Cidade Velha e deixado a sua marca num embondeiro, recordava o escritor português Nuno Rebocho. Darwin seguiria então a bordo do Beagle, que partiu de Inglaterra em 1831 para dar a volta ao mundo.

A escritora e a curandeira do Príncipe

Ainda à margem do encontro que, depois daqueles que ocorreram em Natal, Brasil, e Luanda, Angola, é dedicado ao tema da diáspora, insularidade e poesia, a escritora são-tomense a viver desde 2010 em Portugal, Goretti Pina, falava da sua ilha do Príncipe.

A quem não o conhecia, explicava o Auto de Floripes, longa peça tradicional de teatro são-tomense, que todos os anos, em agosto, toma lugar na rua levando locais, imigrantes e turistas a Santo António. A peça está, aliás, no centro de Na dia Son Leenço - O Encanto do Auto de Floripes, da escritora do Príncipe.

Ainda acerca da trama que se desenrola entre mouros e cristãos e em que perpassam Carlos Magno e os seus Doze Pares de França, a escritora falava da "avó Faustina". Uma curandeira da ilha que "via se uma mulher estava grávida" observando a dobra das suas pernas e que sabia garantir se a rapariga que representava Floripes era virgem, para que se cumprisse o preceito na representação.

A casa que foi um dos berço das independências

Na inauguração da mostra Casa dos Estudantes do Império. Farol de Liberdade no Centro Cultural Português, que passou em 2015 por Lisboa e Maputo, recordaram-se nomes da luta pela independência das ex-colónias portuguesas. Nomes como o de Agostinho Neto, Amílcar Cabral, Lúcio Lara, Joaquim Chissano, Pascoal Mocumbi, Pedro Pires ou Onésimo Silveira.

Todos eles estudantes que passaram pela casa que recebia, em Lisboa, Coimbra e Porto (por um curto espaço de tempo), jovens das ex-colónias que cursavam no ensino superior. Aberta em 1944 e fechada em 1965 pela PIDE, a casa foi um dos berços das lutas que viriam a conquistar a independência e o nascimento de nações como Cabo Verde.

O "Comandante Pedro Pires" - como é referido entre cabo-verdianos -, ex-Presidente, compareceu, aliás, esta segunda-feira na cerimónia oficial de abertura do VI Encontro de Escritores de Língua Portuguesa.

"Uma língua que pertence ao mundo"

João de Melo, representante dos escritores, dava então conta de que aqueles, sentados à sua frente e vindos dos vários pontos do mundo lusófono, traziam a Cabo Verde "o sonho literário da universalidade à nossa medida". Aqueles "pensadores e praticantes de uma ideia, de uma língua que pertence ao mundo e a quantos dela fazem e fizeram não um troféu de guerra, mas um sítio, um lugar-comum", dizia o autor de O Meu Mundo Não é Deste Reino.

O escritor cabo-verdiano Germano Almeida prestava, depois, homenagem ao seu conterrâneo e amigo Corsino Fortes, primeiro embaixador de Cabo Verde em Portugal. O autor de Do Monte Cara Vê-se o Mundo ou Eva recordou que, aos 15 anos, quando a morte do poeta José Lopes foi anunciada na rádio, ouviu o seu tio dizer: "Homens como José Lopes não morrem, apenas tombam!" Evocava assim o homem e o autor, que morreu em 2015, ao percorrer a sua obra, de Pão&Fonema a A Cabeça Calva de Deus.

É o mesmo Germano Almeida que acaba de lançar Regresso ao Paraíso e a quem, na rua, um transeunte se dirigiu dizendo: "Melhor escritor de Cabo Verde." Uma declaração apenas, quase sem olhar, não parando sequer a marcha, sem esperar qualquer reação.

A lusofonia escrita pelas suas diásporas

No primeiro painel do encontro, "A Literatura e a Diáspora", nesta segunda-feira, o chinês e o português Yao Jingming e Ricardo Pinto, ambos vindos de Macau, juntaram-se à escritora e ex-ministra cabo-verdiana Vera Duarte, a Miguel Real e Goretti Pina.

"A literatura que se faz aqui ou na diáspora tem a mesma legitimidade", afirmou Vera Duarte, referindo-se ao "país que nasceu de fora para dentro", formado por aqueles que vieram "da Europa e da África povoar o que seria o nosso Cabo Verde". Miguel Real, lembrando que Portugal não é um caso dissemelhante, lembrava então o exílio de Almeida Garrett e Alexandre Herculano, a vida de Camilo Pessanha em Macau, Saramago em Lanzarote ou a estada de décadas de Eça de Queirós no estrangeiro.

O encontro continua amanhã com os painéis "A Literatura e a Insularidade", que reúne à mesa os escritores Germano Almeida, João de Melo, Luís Cardoso, Luís Carlos Patraquim e João Paulo Cuenca. José Luís Peixoto, Zeca Medeiros, José Fanha e a angolana Ana Paula Tavares juntam-se ao cabo-verdiano Abrãao Vicente na quarta-feira em torno de "A Poesia e a Música".

Em Cabo Verde. O DN viaja a convite da UCCLA

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