Na parede branca, pintada de novo, pedaços de plasticina verde remendam um fino tubo de ventilação. Num canto do teto, junto à janela, uma caixa de cortiça revestida com papel de alumínio cobre um respiradouro. Na parte de baixo da porta, um tapete enrolado protege a sala de dois invasores que teimam em entrar: o ruído e o frio..É assim que Manuela de Sá, professora de canto, consegue dar as suas aulas, depois de um primeiro período "infernal". A nova vida da Escola de Música do Conservatório Nacional (EMCN) é feita destes remédios caseiros desde o início do ano letivo, quando mudou do Bairro Alto, no centro de Lisboa, para instalações provisórias na Secundária Marquês de Pombal, na Ajuda. Pavilhões que já foram de ensino profissional de mecânica e que, segundo a diretora, Lilian Kopke, foram "adaptados à pressa, em quatro meses", para receber o Conservatório enquanto decorrem as obras de reabilitação do antigo Convento dos Caetanos. Obras que ainda nem começaram, por atrasos na adjudicação do projeto, o que já levou os pais a criarem uma petição para resolver os problemas das instalações "onde é expectável que a EMCN permaneça pelo menos outros dois anos".."É como se estivéssemos num filme negro, daqueles de espiões, em que há uns canais por onde se ouve tudo o que se passa noutras salas." O "tudo" de que fala António Wagner Diniz, professor de Canto e antigo diretor do Conservatório, não são apenas conversas mas também o som de violinos, pianos, percussão, quando não de todos ao mesmo tempo. "Às vezes tenho de falar no mesmo tom em que os alunos cantam, para me fazer ouvir.".Sentado num banco junto à entrada para a sala de professores, um estranho cenário onde pianos se misturam com tornos mecânicos, Wagner Diniz faz uma pausa para beber um café ao sol de março. Mas não esquece que há bem pouco tempo ainda tinha de dar aulas de casaco vestido. "No inverno, tínhamos 10º C na sala, quando os alunos tentavam cantar saía-lhes vapor", recorda o professor, que há cerca de dez anos ficou conhecido por se opor à reforma do ensino artístico. "Além disso, é muito complicado afinar pianos com o frio", acrescenta Lilian Kopke, uma brasileira de São Paulo que além de ser diretora do Conservatório há dois anos também ali ensina esse instrumento há 30..Para os dois professores, tudo se resume a uma falta de preparação para receber cerca de 750 alunos e, em especial, para o ensino da música. Wagner Diniz ilustra: "todas as salas têm sistemas de ventilação, que além do ar trazem o ruído de outras aulas, e não estavam insonorizadas; nas casas de banho, as torneiras funcionam às vezes, outras vezes não funcionam; os alunos do Conservatório não têm balneário para trocar de roupa antes das aulas de Educação Física e têm de o fazer nas casas de banho; e até temos aqui a nossa quinta pedagógica", graceja, apontando para um amontoado selvagem de ervas que rivalizam com a altura de um homem e que serve de enquadramento a um campo de ténis abandonado e com o piso destruído..Essa é precisamente uma das reivindicações da associação de pais do Conservatório, que, na petição que até ao momento foi assinada por cerca de 600 pessoas, pede a repavimentação do pátio principal da Marquês de Pombal e que se preveja também a aplicação de um pavimento adequado para o campo desportivo e a colocação de bebedouros, "para benefício de ambas as escolas e para que este seja cada vez mais um espaço de convívio e de reunião entre as duas populações escolares"..Relíquias guardadas fora da escola.Quase a fazer 60 anos, a secundária de um cor-de-rosa agora completamente desmaiado denuncia os efeitos da passagem do tempo. Sensação de abandono que um portão escancarado e sem um auxiliar à porta reforça. Só o remoto som de instrumentos de sopro prova que estamos no sítio certo. A entrada na escola dá-se sem que alguém questione o adulto desconhecido sobre a sua identidade ou o seu destino. São dois alunos sentados na porta principal do edifício que indicam a direção do Conservatório, logo ali no final das escadas.."Essa é a outra grande questão: para ir levar o meu filho à sala tenho de passar no meio das outras, o que me leva a questionar se as questões de segurança em relação à entrada de pessoas na escola estão todas asseguradas, até porque há uma enorme falta de funcionários", conta o pai de um dos alunos. Lilian Kopke reconhece a falta de assistentes operacionais, mal de que por estes dias todas as escolas do país se queixam. E como muitas outras centenas de escolas, teve autorização para contratar seis auxiliares a tempo parcial. Quanto à entrada, conseguiu que, no caso dos alunos do Conservatório, passasse a ser feita por um portão lateral que dá acesso mais direto aos pavilhões e ao bloco onde ficou a escola de música..Ainda assim, fosse pelas dúvidas em relação à segurança ou pela falta de condições das salas, não houve confiança suficiente para trazer algumas das "joias da coroa" para a casa nova. Verdadeiras preciosidades dignas de museus, como dois pianos que custam, em conjunto, 135 mil euros e particularmente um piano Bechstein restaurado no qual Franz Liszt tocou, tiveram de procurar portos mais seguros. Lilian Kopke procurou "por toda a Ajuda e em Belém onde os pudesse deixar". O Bechstein, que tem um valor incalculável, ficou no Museu dos Coches.."Os gestores do possível".Miguel Leiria recebe-nos com um sorriso aberto. Interrompe a aula para mostrar uma das poucas relíquias do Conservatório que se mudou de facto para a Ajuda: um contrabaixo Thibouville-Lamy que pertenceu à família real portuguesa e que se pensa poder estar relacionado com Giovanni Bottesini, importante contrabaixista italiano do tempo de Verdi e que em 1881 fez um recital no São Carlos e foi agraciado com o grau de Cavaleiro da Ordem de Santiago pelo rei D. Luís..O contrabaixo ainda hoje continua a uso na escola... embora falte o dinheiro para lhe trocar as cordas. "Um jogo de cordas para este instrumento custa 150 a 200 euros, mas foi preciso resolver outros problemas. Todos os contrabaixos precisavam de cordas, um tinha de ser reparado porque tinha bicho da madeira, e o dinheiro não chega para tudo", lamenta o professor, que conclui: "Aqui todos temos de ser gestores do possível." É que o ministério cortou este ano em dez mil euros a verba para restauros e afinações, sublinha Lilian Kopke, "precisamente no ano em que nos mudámos para instalações que trouxeram mais problemas aos instrumentos e desafios de afinação"..Só para afinar os pianos, são sete mil euros. O afinador de harpas tem de vir de propósito da Holanda duas vezes por ano. "Já para não falar do caso do órgão, que foi dos que mais sofreram com a mudança e só há uma semana estabilizou." Colocado numa sala onde a única parede livre recebe sol direto, as madeiras e os tubos dilataram, o que obrigou à intervenção de um organeiro num instrumento que, novo, pode chegar a custar 200 mil euros. Agora, umas cortinas colocadas na janela principal e películas nos vidros de uma espécie de claraboia ao estilo industrial tentam controlar a luz da sala. "E este aparelho também foi fundamental para manter o equilíbrio do instrumento", realça o professor Rafael Reis, que fala do seu órgão como se de um ser vivo se tratasse, enquanto aponta para um dos muitos desumidificadores que estão espalhados um pouco por todas as salas. Foram, tal como os aquecedores, comprados já depois da mudança para tentar manter a temperatura e a humidade ideal nas salas. "O problema", diz Lilian Kopke, "é que o quadro elétrico não tem capacidade suficiente e dispara"..Esse é outro dos pedidos de pais e professores, a resolução da falta de potência do quadro elétrico, até porque depois do inverno se preveem novos problemas. Mas agora com a ventilação no verão. "Nós já tivemos essa experiência em setembro, quando fizemos as audições. Estava um calor abrasador nestas salas viradas para o sol, tivemos de nos refugiar nas salas do Cenjor.".Os elogios à ajuda do Centro de Formação para Jornalistas são muitos. Elogios que se estendem à direção e aos professores da Secundária Marquês de Pombal. Do Cenjor "receberam" duas salas emprestadas, onde conseguem pôr a orquestra que não tinha espaço nos pavilhões e que terão de devolver duas vezes por ano, para que ali se realizem cursos de fotografia. Da direção da escola tiveram toda a compreensão, "convidaram-nos para a festa de Natal e para tocar no aniversário da secundária, convite que retribuímos para o aniversário do Conservatório, que vai ter um apontamento de teatro dos alunos da Marquês de Pombal"..Classes sem luta.Bastava olhar para a mistura de automóveis de topo de gama com carros velhos e desbotados no parque de estacionamento à frente da escola para o perceber: no espaço da secundária juntam-se dois universos completamente diferentes. Os cerca de 200 alunos da Marquês de Pombal, alguns já com 18/19 anos, convivem nos mesmos espaços com crianças e jovens de fora do bairro, alguns de 6/7 anos. Até agora, realce-se, sem registo de algum problema. "Pelo contrário, os almoços, por exemplo, são no mesmo refeitório, partilham os mesmos espaços e os campos de jogos, até em Educação Física, e tem corrido tudo bem", destaca Lilian Kopke, que garante que as críticas em relação às instalações não vêm de qualquer sobranceria. "Houve o cuidado de fazer obras para nos receber enquanto não podemos usar a nossa sede e a Parque Escolar, que diz que esta remodelação custou um milhão de euros, até tem respondido aos nossos pedidos. Mas ainda há muita coisa por resolver.".Dos cerca de 750 alunos do Conservatório de Música, a maioria está no regime supletivo, ou seja, tem ali apenas as disciplinas da formação vocacional. Para os que estão no regime integrado - com frequência de todas as componentes do currículo na EMCN -, ter aulas teóricas na cave do edifício principal da secundária pode ser uma experiência "exasperante". Pelo longo corredor circulam alunos com estojos de instrumentos às costas, entre cacifos que forram uma das paredes e que são interrompidos por portas que dão acesso às salas. Portas lado a lado, salas lado a lado. "Com o ruído a vir de uma para a outra." Lilian Kopke olha para um horário na parede: daí a 15 minutos começará uma aula teórica, enquanto logo ali ao lado jovens praticam num piano. "É muito complicado dar teóricas nestas condições.".Nos pavilhões, já depois do arranque das aulas, tiveram de ser colocadas portas duplas, estruturas no teto e nas paredes para absorver o som e a zona da percussão teve de ser retirada do meio de um corredor para o extremo de uma das alas. Carlos prepara a sua prova de canto com a professora Manuela de Sá. E também ele relata as dificuldades de tentar cantar ao som de uma bateria. "O primeiro período foi muito difícil, é muito complicado em termos de colocação de voz e principalmente em termos de concentração.".Obras planeadas para dois anos, mas....Numa sala contígua, Mariana treina no violoncelo com Luís Sá Pessoa. O professor queixa-se da "barulheira de percussão e canto" que lhe chega de outras salas. Já a jovem de óculos e cabelo encaracolado encolhe os ombros e sorri. "Não estou incomodada pela mudança. Eu sou da Charneca de Caparica, tenho lá aulas, e até me dá mais jeito vir para aqui do que para o Bairro Alto." Os alunos adaptam-se, reconhece a diretora, e uma coisa é certa, acrescenta Carlos, que já é aluno finalista: "Como estávamos também não era bom, a nossa escola precisava mesmo de obras, não tinha boas condições.".O Conservatório, à semelhança do que aconteceu com a escola secundária Alexandre Herculano, no Porto, e com a escola secundária artística António Arroio, em Lisboa, viu o primeiro concurso público internacional para realização de obras de reabilitação ficar deserto, por falta de interesse das empresas em assumir a obra nos custos inicialmente previstos. O segundo concurso foi lançado a 19 de outubro de 2018 pelo valor de 10,58 milhões de euros, mais de um milhão de euros acima dos 9,2 milhões inicialmente previstos, e mais adequado "às atuais condições de mercado", segundo justificou na altura o Ministério da Educação. O procedimento concursal estipula um prazo de 18 meses para a conclusão da obra..Mas os pais receiam derrapagens nos prazos, por se tratar de um edifício histórico, que implica muitos restauros, a que se somam questões importantes de acústica. O novo projeto prevê que a Escola do Conservatório Nacional cresça em altura e ganhe uma ala inteiramente nova, com mais salas, uma nova cantina e um novo estúdio de dança. Está também previsto a criação de um sistema de aquecimento e um sistema elétrico novo, o reforço da estrutura e a manutenção dos átrios, da biblioteca e do salão nobre..Lilian Kopke continua a acreditar que a estada na Ajuda vai durar apenas dois anos, como uma fé que se renova de cada vez que é verbalizada. Mas, pelo sim, pelo não, vai pedindo para que as salas sejam melhoradas, a erva seja cortada e o chão arranjado, para tornar a casa mais acolhedora.