"Alfred Hitchcock morre de causas naturais", lê-se no título da revista Variety que noticiava o desaparecimento de uma das maiores lendas da sétima arte, a 29 de abril de 1980. O impecável humor negro desta expressão corresponde cem por cento ao espírito de qualquer filme dele, o britânico que vingou em Hollywood através de um cinema quase sempre obcecado com a morte não natural. Daí que entre as suas personagens haja muitos e ávidos leitores de policiais (como o próprio era), além de memoráveis sequências de conversas sobre assassínios....Este gosto por histórias de faca e alguidar - aliás, Hitchcock recusou-se a transpor para o grande ecrã obras-primas da literatura - parece ter origem numa certa memória de infância que contava muitas vezes. Quando tinha seis anos, o pai, católico praticante, disse-lhe que precisava de ser castigado, sem que ele soubesse a razão, e mandou-o para a esquadra mais próxima com um recado escrito. Quando lá chegou o polícia trancou-o numa cela durante cinco minutos e repreendeu-o: "É assim que se trata os meninos maus." .O menino mau cresceu e, munido de um particular sentido de perversidade, acabou por fazer filmes sobre culpados e inocentes. Atrás das câmaras teve o apoio permanente da esposa, Alma Reville, e dirigiu figuras notáveis de Hollywood, como Cary Grant e James Stewart, saltando à vista as atrizes louras com quem mais trabalhou: Joan Fontaine, Ingrid Bergman, Grace Kelly (que depois se tornou Princesa do Mónaco), e Tippi Hedren - com esta última a relação azedou na rodagem do segundo filme, Marnie (1964)..Na célebre entrevista que lhe fez, em 1962, o cineasta e crítico dos Cahiers du Cinéma, François Truffaut, Hitchcock fala assim sobre as atrizes e o sexo implícito nos seus filmes: "O que é que me leva a escolher atrizes louras e sofisticadas? Procuro sobretudo atrizes que pareçam senhoras, senhoras em toda a aceção do termo, mas capazes de se tornarem putas na cama. A pobre Marilyn Monroe, pelo contrário, tinha o sexo estampado na cara, como Brigitte Bardot." E continua, com requintada provocação: "Julgo que as mulheres inglesas, suecas, alemãs, escandinavas são mais interessantes que as latinas, francesas ou italianas. O sexo não deve exibir-se. Uma rapariga inglesa, com aquele ar de professora, é capaz de estar num táxi consigo, e para sua grande surpresa atirar-lhe as mãos à braguilha.".Entre o que se mostra e o que se esconde, com uma pitada de humor negro, no dia em que se assinalam os 40 anos da morte do "mestre do suspense", e nestes tempos de confinamento tão associado à ideia de aconchego doméstico, percorremos quatro filmes que ilustram o desconforto do lar segundo Hitchcock, com algumas das suas atrizes de eleição. A propósito da data, amanhã passa na RTP2 o documentário televisivo Alma Reville - Na Sombra de Hitchcock (23.15)..1941.Está tudo nos livros: Suspeita começa numa carruagem de comboio onde Lina (Joan Fontaine), tímida, vai sentada a ler um livro sobre psicologia infantil. Doravante, a literatura nunca abandona a essência deste filme. Nessa mesma cena de abertura ela conhece Johnnie Aysgarth (Cary Grant), o aldrabão charmoso por quem se apaixona, com quem acabará por se casar, e cujos defeitos justifica com indulgência dizendo tratar-se apenas do perfil de uma criança. "Pobre Johnnie"... Mas à medida que as mentiras e endividamentos dele se avolumam, a perceção de Lina/Fontaine sobre o marido vai ganhando contornos obscuros que oscilam entre a suspeita de ele ser capaz de matar - inclusive, a própria - e as frustrações constantes dessa suspeita. Todo este jogo de desconfiança se passa dentro de casa, onde vemos Fontaine invariavelmente à beira do colapso nervoso e onde circulam os romances policiais que Johnnie/Grant anda a ler. Não por acaso, uma das sequências mais hitchcockianas é a do jantar em casa da autora desses policiais, na qual se desenrola uma conversa à volta de venenos e do presumível ar de um assassino. A outra é a famosa subida de escadas de Grant com um copo de leite para a mulher, em que se destaca a brancura antinatural do copo na escuridão sinistra da imagem (para criar o efeito, Hitchcock pôs uma lâmpada dentro do copo!). Do princípio ao fim, o cineasta trabalha de modo refinado a ambiguidade do galã, entre a culpa e a inocência. Já Joan Fontaine venceu um Óscar pela brilhante interpretação de uma mulher atormentada pela dúvida..1943.Também Mentira é um filme em que o mal parece andar por casa. O suposto vilão da história não é a típica figura de sorriso pérfido, mas antes um homem elegante, Charlie (Joseph Cotten), que decide ir passar uns tempos a casa da irmã, em Santa Rosa, onde a sobrinha o espera mesmo antes de saber que vinha. Um efeito de "telepatia". Além desta, há outra coincidência: a sobrinha (Teresa Wright) chama-se tal e qual como o tio, Charlie. Ela tem-lhe uma devoção imensa e não lhe passa pela cabeça que ele possa ser um assassino de viúvas ricas. Isto até ao dia em que as evidências fazem pairar uma densa sombra de dúvida (o título original, Shadow of a Doubt, é mais preciso) e uma série de elementos se conjugam na misteriosa construção narrativa. Entre eles, fotografias, um anel, páginas de jornais, escadas, fumo - do comboio e do carro - e A Valsa da Viúva Alegre, trauteada inconscientemente ou ilustrada com uma imagem de um baile. São detalhes que merecem a atenção do espectador numa fita repleta de referências pessoais de Hitchcock, que na altura da rodagem tinha comprado a sua primeira casa na América e deixou passar alguma nostalgia biográfica nas entrelinhas do cenário familiar aparentemente idílico. Por exemplo: a mãe da jovem Charlie chama-se Emma, como a mãe de Hitchcock; o tio Charlie teve um acidente de bicicleta na infância, tal como o realizador; uma das crianças da casa, Ann, passa o tempo agarrada a um livro, Ivanhoe, que o próprio Hitchcock adorara em criança; e uma das personagens secundárias, Herbie, que todas as noites visita o pai de Charlie para dois dedos de conversa, tem uma tara por assassínios, à semelhança do mestre. Terá dito que este era o seu filme predileto, embora isso variasse conforme a entrevista....1954.Se a palavra "assassínio" é um fantasma omnipresente em Suspeita e Mentira, em Chamada para a Morte busca-se a concretização do crime perfeito. Tony Wendice (Ray Milland) é um ex-tenista profissional casado com a bela Margot (Grace Kelly), que mantém um caso amoroso com Mark Halliday (Robert Cummings). Ao descobrir, Tony decide matar a mulher, por vingança e para lhe ficar com a fortuna, mas não tenciona fazê-lo pelas próprias mãos. Por isso chantageia uma quarta personagem, Charles Swann, então obrigada a avançar com o plano de homicídio; esse que culmina na exemplar sequência do criminoso assassinado com uma tesoura espetada nas costas... Esta foi a primeira das brilhantes colaborações da futura Princesa do Mónaco com Hitchcock (fariam mais dois filmes, A Janela Indiscreta e Ladrão de Casaca, todos títulos que a eternizaram como atriz), e um magnífico exemplo de ação confinada num espaço. Adaptado de uma peça de Frederick Knott, que fora um enorme sucesso na Broadway, Chamada para a Morte vive dessa rigorosa condição teatral. Para Hitchcock, a grande sugestão cinematográfica consistia, precisamente, em quase não se sair do apartamento dos Wendice, como já tinha acontecido, de forma mais extrema, em A Corda (1948), e depois em A Janela Indiscreta (1954). Assim, neste filme contam-se pelos dedos de uma mão as vezes em que a câmara não está no interior da casa. De resto, ao realizador agradava bastante a ideia do espaço físico limitado - a certa altura da carreira teve mesmo intenções de vir a rodar um filme inteiro numa cabina telefónica..1963.Ao contrário das três obras anteriores nesta lista, em Os Pássaros o mal não está, a princípio, dentro de casa mas à porta. Esses pássaros do título são uma ameaça repentina e inexplicável que tem lugar na baía de Bodega, Califórnia. No momento em que Melanie Daniels (Tippi Hedren) chega de barco, é atacada por uma gaivota, e a partir daí toda a localidade vai sofrer ataques absurdos... É antológica a sequência em que os pássaros se agrupam perto de uma escola para se lançarem sobre as crianças em fuga, mas também aquela dentro de casa em que a protagonista fica encurralada num quarto sob a mais intensa ofensiva das aves, mostrada em cortes rápidos e brutais. Este filme contém a ilustração pura e abstrata do grande tema hitchcockiano: a culpa. Porque é que os pássaros atacam? Aqui não há maneira de se arranjar culpados, mesmo que haja quem aponte o dedo a Melanie/Hedren ou quem diga que é o fim do mundo. Simplesmente não há uma explicação para o que acontece em The Birds, a produção mais complexa de Alfred Hitchcock, que se rodeou de uma equipa de efeitos especiais para elaborar na tela a colossal mistura de pássaros verdadeiros, com outros empalhados, moldes animados e pássaros mecânicos. Inspirado por um conto de Daphne du Maurier, da narrativa só ficou mesmo o esqueleto da ideia, como contou o cineasta na ilustre entrevista que lhe fez François Truffaut: "Leio a história só uma vez. Quando a ideia de base me convém, adoto-a, esqueço completamente o livro e faço cinema. Era incapaz de lhe contar Os Pássaros de Daphne du Maurier. Só li o livro uma vez, a correr."