Duas mulheres na Angola de Pepetela
O novo romance do escritor angolano Pepetela é um regresso de fôlego num tempo em que qualquer tema do país que ajudou a tornar independente como guerrilheiro e ideólogo do MPLA é quase sempre polémico. Este não falha, nem cai ao lado, é certeiro ao pretender executar um retrato de uma sociedade em que as desigualdades sociais atuais são apresentadas através de duas personagens femininas: Himba e Sofia. A primeira: órfã da guerra civil, que perde a família durante a fuga do Planalto Central onde o combate está aceso. A segunda: quer mudar de vida e torna-se gerente de um restaurante, fazendo de tudo para subir na vida.
O cruzamento das vidas de Himba e de Sofia poderia ser obra para qualquer outro autor que não o Prémio Camões de 1997 e, assim, tornar-se um relato que não incomodava o leitor de qualquer lugar deste mundo. Mas como Se o Passado não Tivesse Asas foi escrito por Pepetela, e é muitas vezes de uma grande crueza e capaz de provocar dor como só ele sabe fazer através da sua escrita poética, transforma-se num romance que exige algum distanciamento ao leitor para não esvaziar a narrativa ficcional a troco de uma comparação com a realidade.
Até porque esta narrativa começa bem: "A menina se deslumbrava com a beleza da paisagem." Só que no parágrafo seguinte o autor explica que estamos em 1995 e que o "lindo Planalto" de Himba transformara-se e o vulgar era acontecerem "ataques e ocupações acompanhadas de mortes, violações, raptos, saques". Quanto a Sofia, surge no cenário do ano de 2012 e é enquadrada no momento em que tem uma proposta da patroa, que não quer perder a funcionária, para tornar-se sócia, com "vinte por cento dos lucros". Não daria para ficar rica, diz para si mesma, mas "para quem tinha vivido em esgotos" era bastante.
A partir daí, logo no terceiro capítulo, a realidade sobrepõe-se à ficção e o que se lê neste novo romance de Pepetela mostra que os acontecimentos do dia-a-dia em Angola não passam ao lado nem são ignorados. Quanto mais não seja, porque reconstituem a história recente do seu país, onde os livros de História são pouco vulgares e a formação da identidade demasiado ligada às décadas mais próximas.
Interessante neste romance é também o facto de as duas protagonistas serem mulheres, situação que não costuma ser habitual na sua escrita, mesmo que o feminino esteja sempre presente. O que poderá significar tanto uma tentativa de escapar a um olhar mais crítico como à exigência de observar diferente. A acrescentar, o facto de ambas serem jovens, situação que lhe terá exigido uma reinterpretação etária da sociedade em que a ação se passa.
O lançamento deste novo romance é uma boa justificação para reler obras fundamentais de Pepetela, situação que permite sentir o pulso do escritor na sua relação com o passado angolano. As reedições de Mayombe (1980), A Gloriosa Família (1997)e A Geração da Utopia (1992) são um bom ponto de partida. Ou romances como O Terrorista de Berkeley, Califórnia ou O Planalto e a Estepe, para se ter a visão do autor sobre o mundo.