As ficções especializadas em extrair humor de anacronismos têm dois mecanismos ao seu dispor. Um é aquilo a que podemos chamar o método Astérix (visível em objectos tão diferentes como o Mason & Dixon, de Thomas Pynchon, ou a recente minissérie da Apple TV Dickinson): contrabandear as tecnologias, hábitos e referências culturais do presente para o passado remoto, de modo que um espião do Império Romano possa ter o aspecto de Sean Connery ou que George Washington possa fumar charros..O segundo método é o reverso do primeiro e só é viável com ícones firmemente estabelecidos, cujas peculiaridades possam ser transportadas para o nosso tempo. Embora nada nele seja intrinsecamente menos propício à boa comédia, a verdade é que o segundo método (e isto pode ser apenas uma questão de gosto pessoal) costuma frequentemente degenerar no tipo de farsa superficial em que a pergunta operativa - "E se o Sherlock Holmes tivesse um telemóvel?" - perde a graça ainda antes da execução..Segundo o Guinness, Sherlock Holmes é a segunda personagem literária mais vezes adaptada a televisão e cinema, e a sua mais notória e recente iteração - que fez de Benedict Cumberbatch uma estrela - enveredou por esse caminho: o sociopata funcional de Baker Street no presente, trocando os telegramas e as charretes por sms encriptados e apps da Uber. A dupla responsável pela série Sherlock, Stephen Moffat e Mark Gatiss, aplicou agora um truque semelhante a outra personagem literária com cachê de arquétipo universal (e que o mesmo Guinness garante ser a única com mais versões multimédia do que Sherlock). Transmitida no início do mês na BBC e agora disponível na Netflix, Drácula é uma minissérie de três episódios que comete a proeza de durar quatro horas e meia ao mesmo tempo que faz o espectador sentir o fardo do seu protagonista: o entediante terror de viver para sempre..Qualquer adaptação de uma propriedade reconhecível enfrenta um obstáculo criativo logo à partida: não é fácil surpreender quando o material é tão familiar. No caso de Drácula, o problema é reforçado pela dimensão da bagagem: quaisquer respostas contemporâneas são condicionadas por mais de 100 anos de imagens, tropos e variações que os leitores originais de 1897 não tinham. O que era uma criatura muito próxima da novidade absoluta para um vitoriano é hoje uma salganhada iconográfica, contaminada por memórias de Max Schreck, Bela Lugosi, Klaus Kinski e Gary Oldman - mas também Tom Cruise, Buffy, Twilight e o Conde de Contar da Rua Sésamo..Moffat e Gatiss tentam resolver este problema através da abordagem omnívora: um esforço de síntese que absorva todas as iterações e permita combinar resíduos da canastrice involuntária (na versão Lugosi) e da canastrice deliberada (na versão Hammer), preservando a monstruosidade do original - que no livro, recorde-se, era menos um sedutor de salão do que um idoso repugnante com um caso grave de mau hálito. A outra opção de risco é seguir o livro de estilo obrigatório da ficção televisiva actual e brincar às cronologias: o último episódio passa-se no presente, há um "instituto" dedicado a pesquisar vampirologia, e o Conde diverte-se imenso com câmaras portáteis e inscrições no Tinder..Embora formalmente semelhante a Sherlock, a série é muito menos rigorosa nas suas escolhas e menos clara nas suas ambições. A ideia de que uma história de vampiros nunca é realmente sobre vampiros faz parte integrante do glossário de teoremas críticos. O "vampiro" é sempre uma metáfora - para a pós-adolescência, para a alvorada feminista, para a corrupção sexual, para a imunodeficiência adquirida, até para o pânico sobre pureza racial. (O que é Drácula senão um emigrante exótico vindo do estrangeiro para corromper as mulheres ocidentais?).A sua vitalidade enquanto arquétipo reside na polivalência - não apenas alegórica, mas narrativa: é simultaneamente um romântico, um historiador, um assassino em série, um toxicómano, etc. O que não é, ou não deve ser, é precisamente a única coisa que Moffat e Gatiss parecem ser capazes de construir: um homem esperto e sarcástico, cujo maior prazer é conversar com outras pessoas espertas e sarcásticas, de preferência um pouco menos espertas e sarcásticas do que ele..Os três episódios duram uma hora e meia cada não porque o enredo justifica essa duração, mas porque cada um deles inclui sequências em que todos os tropos do género a que pertence são submetidos a extenuantes sessões de diálogo socrático para imbecis. Cena após cena, personagens fazem as mesmas perguntas retóricas, repetem aquilo que acabaram de dizer, partilham teorias sobre o que acabou de acontecer e desafiam mutuamente a sua capacidade para acompanhar o aborrecido raciocínio que estão a arrastar. Intercalado com tudo isto, Drácula e o seu principal antagonista (o Van Helsing do livro, que aqui é uma freira) rematam 50% das suas intervenções com deixas que soam a apartes de um filme de Steven Seagal. Quase todo o diálogo é um embaraço, e faz-nos duvidar se os efeitos alcançados - caprichosos, risíveis, banais - são resultado de cálculo criativo ou de uma monstruosa falta de discernimento..Uma adaptação feita pela mesma BBC em 1977 (com Louis Jordan e Frank Finlay) conta a história em pouco mais de duas horas e inclui uma sequência inicial - a chegada de Harker à Transilvânia - em que nenhuma palavra é dita ao longo de quase dez minutos. A cena é mais eficaz do que qualquer momento na nova adaptação, em que ninguém fica calado mais de dez segundos. Sem perceber nem respeitar as inibições e as perversões do material de origem, este Drácula limita-se a perseguir incessantemente a relevância contemporânea através de uma loquacidade estéril. Um dos defeitos de construção do romance de Stoker (que o ritmo narrativo normalmente permite ignorar) é que muitos dos problemas que afligem as personagens poderiam ser resolvidos se elas conversassem umas com as outras. O maior mérito de Moffat e Gatiss é provarem que há coisas piores do que manter a boca calada..Escreve de acordo com a antiga ortografia.
As ficções especializadas em extrair humor de anacronismos têm dois mecanismos ao seu dispor. Um é aquilo a que podemos chamar o método Astérix (visível em objectos tão diferentes como o Mason & Dixon, de Thomas Pynchon, ou a recente minissérie da Apple TV Dickinson): contrabandear as tecnologias, hábitos e referências culturais do presente para o passado remoto, de modo que um espião do Império Romano possa ter o aspecto de Sean Connery ou que George Washington possa fumar charros..O segundo método é o reverso do primeiro e só é viável com ícones firmemente estabelecidos, cujas peculiaridades possam ser transportadas para o nosso tempo. Embora nada nele seja intrinsecamente menos propício à boa comédia, a verdade é que o segundo método (e isto pode ser apenas uma questão de gosto pessoal) costuma frequentemente degenerar no tipo de farsa superficial em que a pergunta operativa - "E se o Sherlock Holmes tivesse um telemóvel?" - perde a graça ainda antes da execução..Segundo o Guinness, Sherlock Holmes é a segunda personagem literária mais vezes adaptada a televisão e cinema, e a sua mais notória e recente iteração - que fez de Benedict Cumberbatch uma estrela - enveredou por esse caminho: o sociopata funcional de Baker Street no presente, trocando os telegramas e as charretes por sms encriptados e apps da Uber. A dupla responsável pela série Sherlock, Stephen Moffat e Mark Gatiss, aplicou agora um truque semelhante a outra personagem literária com cachê de arquétipo universal (e que o mesmo Guinness garante ser a única com mais versões multimédia do que Sherlock). Transmitida no início do mês na BBC e agora disponível na Netflix, Drácula é uma minissérie de três episódios que comete a proeza de durar quatro horas e meia ao mesmo tempo que faz o espectador sentir o fardo do seu protagonista: o entediante terror de viver para sempre..Qualquer adaptação de uma propriedade reconhecível enfrenta um obstáculo criativo logo à partida: não é fácil surpreender quando o material é tão familiar. No caso de Drácula, o problema é reforçado pela dimensão da bagagem: quaisquer respostas contemporâneas são condicionadas por mais de 100 anos de imagens, tropos e variações que os leitores originais de 1897 não tinham. O que era uma criatura muito próxima da novidade absoluta para um vitoriano é hoje uma salganhada iconográfica, contaminada por memórias de Max Schreck, Bela Lugosi, Klaus Kinski e Gary Oldman - mas também Tom Cruise, Buffy, Twilight e o Conde de Contar da Rua Sésamo..Moffat e Gatiss tentam resolver este problema através da abordagem omnívora: um esforço de síntese que absorva todas as iterações e permita combinar resíduos da canastrice involuntária (na versão Lugosi) e da canastrice deliberada (na versão Hammer), preservando a monstruosidade do original - que no livro, recorde-se, era menos um sedutor de salão do que um idoso repugnante com um caso grave de mau hálito. A outra opção de risco é seguir o livro de estilo obrigatório da ficção televisiva actual e brincar às cronologias: o último episódio passa-se no presente, há um "instituto" dedicado a pesquisar vampirologia, e o Conde diverte-se imenso com câmaras portáteis e inscrições no Tinder..Embora formalmente semelhante a Sherlock, a série é muito menos rigorosa nas suas escolhas e menos clara nas suas ambições. A ideia de que uma história de vampiros nunca é realmente sobre vampiros faz parte integrante do glossário de teoremas críticos. O "vampiro" é sempre uma metáfora - para a pós-adolescência, para a alvorada feminista, para a corrupção sexual, para a imunodeficiência adquirida, até para o pânico sobre pureza racial. (O que é Drácula senão um emigrante exótico vindo do estrangeiro para corromper as mulheres ocidentais?).A sua vitalidade enquanto arquétipo reside na polivalência - não apenas alegórica, mas narrativa: é simultaneamente um romântico, um historiador, um assassino em série, um toxicómano, etc. O que não é, ou não deve ser, é precisamente a única coisa que Moffat e Gatiss parecem ser capazes de construir: um homem esperto e sarcástico, cujo maior prazer é conversar com outras pessoas espertas e sarcásticas, de preferência um pouco menos espertas e sarcásticas do que ele..Os três episódios duram uma hora e meia cada não porque o enredo justifica essa duração, mas porque cada um deles inclui sequências em que todos os tropos do género a que pertence são submetidos a extenuantes sessões de diálogo socrático para imbecis. Cena após cena, personagens fazem as mesmas perguntas retóricas, repetem aquilo que acabaram de dizer, partilham teorias sobre o que acabou de acontecer e desafiam mutuamente a sua capacidade para acompanhar o aborrecido raciocínio que estão a arrastar. Intercalado com tudo isto, Drácula e o seu principal antagonista (o Van Helsing do livro, que aqui é uma freira) rematam 50% das suas intervenções com deixas que soam a apartes de um filme de Steven Seagal. Quase todo o diálogo é um embaraço, e faz-nos duvidar se os efeitos alcançados - caprichosos, risíveis, banais - são resultado de cálculo criativo ou de uma monstruosa falta de discernimento..Uma adaptação feita pela mesma BBC em 1977 (com Louis Jordan e Frank Finlay) conta a história em pouco mais de duas horas e inclui uma sequência inicial - a chegada de Harker à Transilvânia - em que nenhuma palavra é dita ao longo de quase dez minutos. A cena é mais eficaz do que qualquer momento na nova adaptação, em que ninguém fica calado mais de dez segundos. Sem perceber nem respeitar as inibições e as perversões do material de origem, este Drácula limita-se a perseguir incessantemente a relevância contemporânea através de uma loquacidade estéril. Um dos defeitos de construção do romance de Stoker (que o ritmo narrativo normalmente permite ignorar) é que muitos dos problemas que afligem as personagens poderiam ser resolvidos se elas conversassem umas com as outras. O maior mérito de Moffat e Gatiss é provarem que há coisas piores do que manter a boca calada..Escreve de acordo com a antiga ortografia.