Chegou a hora em que Pedro Almodóvar cedeu a si mesmo. Revestiu o tom confessional de cores garridas e ergueu uma sedutora autoficção, com elementos biográficos que se misturam na malha do próprio feitiço dramático do seu cinema. Ele, o mais conceituado cineasta espanhol contemporâneo, que num livro de 1991, Patty Diphusa e Outros Textos (publicado entre nós com tradução de Pedro Tamen), escrevia: "Não quero que a minha obra futura seja contaminada pela minha fuga para dentro, pela contemplação de mim mesmo.".Pois bem, de olhos postos em Dor e Glória, mais do que nunca, a sua eloquente matéria acusa precisamente essa introspeção. Quem é Salvador Mallo, o realizador estagnado e "em fuga para dentro", o estranho "refletido no espelho da casa de banho", como também escreve nesses textos, senão Almodóvar?.Interpretado por um Antonio Banderas em estado de graça - muito longe das musculadas aventuras hollywoodescas -, Mallo é uma personagem tomada pela dor, na mais completa, e ilustrada, aceção da palavra. Dores nas costas, enxaquecas, zumbidos e tendência para se engasgar são algumas das maleitas deste realizador, a que se somam as dores da alma. Refugiado no seu colorido apartamento (este, à imagem do de Almodóvar), ele vai tateando o passado, redescobrindo figuras desse lugar distante, enquanto se vê pela primeira vez viciado em heroína..Entre um filme restaurado, o reencontro de um ator com quem tinha cessado relações, um texto íntimo por encenar, o retorno de um ex-amante toxicodependente, a lembrança de um jovem pedreiro que outrora ensinou a ler e a escrever ou a forte relação com a mãe (nas memórias de infância, Penélope Cruz), Mallo é um corpo em ruína a precisar de exorcizar as dores através da reconciliação com esse passado. Que é como quem diz, através do cinema..Pegando neste roteiro de personagens e emoções "cinematográficas", Almodóvar urdiu um território, ao mesmo tempo, gracioso e melancólico, que deleita o espectador no seu jeito de oração profana. Essa que está, desde logo, no ADN de uma oitava colaboração com Banderas (ator de A Lei do Desejo, Ata-me...), a oferecer a pele à nudez espiritual do cineasta, e aproveitando também para regressar às origens - algo que se sente de forma tremenda no seu despojamento performativo, nessa verdade do registo espanhol por contraste com aquela outra masculinidade tóxica americana....Tudo sobre a minha mãe.Por vezes será difícil distinguir o que é autobiografia do que é autoficção em Dor e Glória. Não que isso seja muito relevante, mas vale a pena sublinhar as portas que se abrem para leituras realistas através dos detalhes romanceados. Por exemplo, mesmo que não tenha sido numa cova em Paterna, Valência, que Almodóvar cresceu, como se vê nos flashbacks da infância de Mallo, foi de facto nesse isolamento do meio rural católico (em La Mancha) que ganhou forma o seu desejo de fugir para uma cidade em particular, aquela que marcaria a sua vida e o seu cinema: "Madrid é tão inabarcável com um ser humano. Igualmente contraditória e variada. Tal como as pessoas são feitas de mil facetas (muitas delas contraditórias), esta cidade contém para mim mil cidades numa. Oito delas aparecem nos meus respetivos filmes", escreveu Almodóvar, que foi um dos principais rostos da movida madrileña..Ouve-se falar desta magoada transição para a vida urbana numa das conversas recordadas do protagonista com a mãe, já velha, em que o fantasma da homossexualidade e das escolhas pessoais paira como uma angústia silenciada. E é nesta transparente e intensa lembrança maternal que o filme procura a viragem para uma majestosa serenidade. Por fim, Mallo/ Banderas/ Almodóvar pode volver e pôr mãos à obra, tal como as mulheres que, cantando, lavam os lençóis no rio. O cinema, qual canto feminino, é aqui o vício e o bálsamo de um realizador em vertigem interior. Foi apenas há uma semana que Pedro Almodóvar recebeu das mãos de Lucrecia Martel o Leão de Ouro de carreira, no Festival de Veneza, 36 anos depois de ali se estrear com Negros Hábitos. No momento, aproveitou para dizer que não concebe a sua vida sem fazer filmes - de resto, uma "necessidade vital" bem patente em Dor e Glória..Esta que tem sido apontada como a sua obra-prima da maturidade, o regresso à plena forma depois de alguns desvios entre géneros (o thriller A Pele Onde Eu Vivo ou a comédia Os Amantes Passageiros), consuma a imagem de um reencontro consigo próprio. Não que o cineasta de coração madrileno tenha andado propriamente perdido, mas é verdade que este mais recente título traz de volta aquela tão reconhecível textura do melodrama "segundo Almodóvar", em que rimos e nos deleitamos sempre com uma lágrima tristonha no canto do olho..Esta quinta-feira, a Academia de Cinema espanhola anunciou que Dolor y Glória, é o filme selecionado para competir por um lugar entre os melhores filmes estrangeiros na 92.ª gala dos Óscares, à frente de Buñuel en el laberinto de las Tortugas, de Salvador Simó, e Mientras Dure la Guerra, de Alejandro Amenábar..Classificação: **** Muito bom.(Artigo atualizado às 11:45 com informação sobre a escolha do filme de Almodóvar para a pré-seleção dos Óscares.)