Dois Papas, um filme Netflix de Fernando Meirelles
Lançado no Festival de Toronto, Dois Papas eleva à sétima arte a obra de Anthony McCarten. Trata-se da peça de teatro homónima (2019) cujo enredo consiste num encontro entre Bento XVI e o então Cardeal Bergoglio, pouco tempo antes do conclave que veio a eleger o atual Sumo Pontífice.
Sem dúvida que estamos perante uma obra cinematográfica de valor, não só pelo elenco de atores excecionais, tais como Anthony Hopniks, Jonathan Pryce e Juan Minujin, mas também pela música diversificada e, sobretudo, pela maneira de narrar duas vidas através de diálogos. A trama narrativa, tecida no presente de uma conversa a dois, enriquece-se com três flashbacks que nos permitem compreender e aprofundar a história do atual Sumo Pontífice. Tudo se acompanha com belos cenários, sobretudo no Vaticano, com destaque para a admirável Capela Sistina que o filme nos faz visitar no silêncio da ausência de turistas.
A humanidade dos "dois Papas" transparece constantemente. E aí reside, talvez, a maior riqueza do filme. Os dois personagens tanto se inquietam com os problemas do mundo e da Igreja dos tempos que correm, como expressam as emoções mais festivas que a banalidade de um jogo de futebol pode suscitar entre nós. Cada um deles tem uma personalidade própria, uma relação particular com Deus, um caminho pessoal, uma vocação única.
O problema do filme, a meu ver, é deixar transparecer um dualismo, um tanto ou quanto maniqueísta, entre os dois personagens e o que eles supostamente representam. Frequentemente, ficamos com a sensação de estar perante duas visões completamente antagónicas de Igreja. Quase parece que a ortodoxia cristã se opõe à reforma da Igreja, tal é o contraste entre o conservadorismo do imaginário Bento XVI e a Igreja que agora respira com o idealizado progressismo de Francisco. Ao longo do filme, de várias maneiras, mais ou menos explícitas, sugere-se esta dicotomia entre os dois papas. Bento XVI, por exemplo, parece não conhecer tão bem os ABBA ou o Yellow submarine dos Beatles quanto Bergoglio; e este, mais aberto ao mundo do que outro, aspira a uma reforma da Igreja, em vez de defender tradições do passado.
A explicitação destes clichés empobrece, por vezes, os diálogos entre os dois papas. E convém esclarecer que muito do que Francisco afirma em relação ao celibato dos padres, por exemplo, não difere substancialmente do magistério de Bento XVI. O mesmo se diga em relação à crise dos abusos que a Igreja hoje atravessa: Francisco herdou, de facto, do seu sucessor muitas das medidas que tem vindo a implementar a este propósito.
O enredo de Meirelles sugere também um ditado, supostamente célebre, pelo menos entre os homens de Igreja, ou talvez entre os alemães, segundo o qual "Deus corrige sempre um papa presenteando outro papa ao mundo." Afirmações como estas não mostram apenas o lado ficcional do filme: tais declarações explicitam o seu caráter ideológico. A mensagem dualista evidencia-se quando, baseando-se em tal ditado, Ratzinger explica que renuncia ao cargo em vida para que possa ver a sua própria "correção". Eis a porta aberta para a clara dicotomia entre a Igreja de Francisco e o passado da Tradição. E isto mesmo apesar da narrativa do filme mostrar a sucessão de Bergoglio como uma vontade expressa de Bento XVI.
A preferência que o filme atribui a Bergoglio é, portanto, notória, nem que mais não seja pelo tempo atribuído à biografia do atual Sumo Pontífice, em claro contraste com os escassos minutos dedicados à vida do seu predecessor.
E, para além do dualismo ideológico que os separa radicalmente, o caráter das duas personalidades também contrasta profundamente, como se Bergoglio, aquele que protagoniza uma autêntica mudança na Igreja, fosse o humilde, enquanto que os outros, os da Tradição, seriam sobretudo arrogantes, ambiciosos ou até rudes.
Chegamos assim à grande contradição de uma visão maniqueísta que certos diálogos do filme poderiam deixar transparecer. Pois é graças a Bento XVI que hoje temos dois papas vivos entre nós. Se nos deparamos hoje com a coexistência de um Papa em exercício e outro emérito, é porque o segundo ousou realizar o gesto profético da renúncia no fatídico dia 28 de fevereiro de 2013. Além disso, quem privou com Ratzinger diretamente, conhece a sua humildade, a sua inteligência e a sua capacidade de dialogar com o mundo e a cultura dos tempos que correm.
Evidentemente que Francisco não repete Bento XVI; e o pontificado de Bergoglio não é isento de novidades. Não, "a tradição não é um museu de coisas velhas." Mas trata-se sempre de uma novidade enraizada no Evangelho e na herança recebida. Mais do que uma ruptura em relação ao passado, trata-se de continuar a fazer caminho. Bento XVI como Francisco, ou os outros papas, concebe a Tradição dessa maneira. Podemos "gostar do papa" Francisco, como Meirelles afirma. Mas, para expressarmos o nosso apreço por ele, não precisamos denegrir a imagem do predecessor. A Igreja sempre confiou na sabedoria de aceitar o papa que o Espírito suscita para o nosso tempo de agora.
Para além da grande mise en scène, o que pode salvar o filme de Meirelles é o retrato dos dois papas na sua humanidade e na sua capacidade de reconciliação. E é a partir dessa humanidade que o enredo expõe a complexa realidade da vida de oração, da confissão sacramental, do discernimento vocacional. Por outras palavras, ao mostrar o peso da sua consciência, deparamo-nos com pessoas que se arrependeram dos erros que todos cometemos nesta vida. E, desta forma, em vez de nos apresentarem certos príncipes da Igreja, imaculados em suas vidas, o filme coloca-nos diante de homens de carne e osso. É belo ver Bento XVI ao piano, executando apaixonadamente uma peça musical, reconhecendo que, nesse âmbito, ele não é infalível. Estamos, portanto, diante de dois personagens que, apesar de tudo, se escutam mutuamente, e se abrem ao perdão. Creio que este caminho de diálogo e de reconciliação é cada vez mais urgente nas nossas sociedades atuais.