Doentes com covid grave têm maior risco de desenvolver infeção hospitalar

Não se sabe quantos, mas sabe-se que alguns doentes críticos de covid-19 acabaram por sucumbir às ditas infeções hospitalares, mesmo depois de terem recuperado do vírus. José Artur Paiva explica porque é difícil evitar isso.
Publicado a
Atualizado a

Paulo tinha uma doença oncológica ainda ativa quando em novembro foi infetado pelo SARS-CoV-2, apesar de ter o esquema vacinal primário - as duas doses. Sabia que era um doente de risco. Tinha os seus cuidados, mas um dia o vírus conseguiu passar a sua barreira de proteção. Dos sintomas de uma constipação rapidamente passou a febres muito altas e à dificuldade de respirar. Recorreu a um serviço de urgência de um hospital central de Lisboa e já não saiu. Um dia depois estava a ser transferido para outra unidade daquele centro hospitalar, para entrar numa enfermaria covid. E em menos de 48 horas passava para uma unidade de cuidados intensivos (UCI). O seu estado foi muito crítico durante mais de duas semanas, acabou por resistir e por testar negativo ao vírus.

Da UCI passou para uma unidade de cuidados intermédios, continuava a melhorar até que foi transferido para outra enfermaria de medicina interna de outra unidade do mesmo centro hospitalar. Aqui já estava estável. Cansado, mas com ânsias de trabalhar. Até que começou a ficar confuso e com a febre a subir. Mais exames e foi-lhe detetada uma "infeção hospitalar". Foram usados antibióticos, mas Paulo não resistiu a esta infeção adicional aos 56 anos. Não resistiu a uma bactéria que conseguiu invadir e desenvolver-se no seu organismo, deixando os seus órgãos em falência, talvez devido à debilidade em que o próprio vírus pode ter deixado o seu sistema imunitário ou que pode ter surgido até pelos procedimentos agressivos que são feitos nas UCI e que se destinam a "salvar vidas".

CitaçãocitacaoNão se pode pensar que havendo uma infeção hospitalar é sempre um sinal de má prática, porque nem sempre o é. Esta questão também tem a ver com a dotação de recursos humanos por doente e com as condições dos espaços

"Há procedimentos que colocam dispositivos a passar por órgãos nossos que estão cheios de bactérias, como a nossa boca, até outros que não têm bactérias. Só este procedimento pode desencadear o desenvolvimento de uma bactéria", exemplifica ao DN o diretor do Programa de Prevenção e Controlo de Infeções e de Resistências a Antimicrobianos (PPCIRA), da DGS, José Artur Paiva.

Na certidão de óbito de Paulo nada é referido sobre a infeção hospitalar que lhe pode ter causado a morte depois da covid-19, mas o seu caso não é único. Aconteceu a outros. Não se sabe a quantos, porque os dados de monitorização das infeções hospitalares "não fazem esta separação", explica Artur Paiva, confirmando que tal "aconteceu a alguns doentes". Até porque os doentes que desenvolveram formas graves de covid têm maior risco de contrair uma infeção deste tipo por "várias razões. Uma é o facto de terem estado muito tempo em cuidados intensivos, sujeitos a tratamentos que são agressivos e que debilitam o sistema imunitário - como disse, há procedimentos que implicam o uso de dispositivos que passam por locais que têm bactérias e por outros que não têm, e, apesar de todos os cuidados para se evitar uma sepsia, às vezes esta desenvolve-se -, e porque a própria covid também o debilitou". Ou seja, há maior probabilidade de estes doentes poderem desenvolver uma infeção adicional devido à debilidade do sistema imunitário, conseguindo alguns resistir e outros não, também por causa da capacidade de reação deste.

O médico de medicina intensiva do Hospital de São João explica: "Alguns dos doentes críticos faleceram diretamente pela covid 19, mas outros pelas complicações que esta gerou, nomeadamente infecciosas ou cardiovasculares", voltando a sublinhar que "as complicações infecciosas acontecem frequentemente em doentes críticos de covid-19. O estar muito tempo em cuidados intensivos faz com que o doente seja alimentado artificialmente. Só isto debilita o seu organismo". Mas o que há de importante a dizer é que "a mortalidade em Portugal por covid grave em cuidados intensivos foi relativamente baixa. Andou à volta de 25%, o que é um bom resultado à escala europeia".

José Artur Paiva defende que querer atingir risco zero para a infeção hospitalar é impossível. "Há grupos que investem muito nesta ideia de se poder eliminar as infeções hospitalares, mas na minha opinião isso é uma miragem." Quando perguntamos o porquê, argumenta com a longevidade da vida. "Tratamos cada vez mais pessoas num limite de fragilidade. Cada vez mais empurramos a fronteira da vida para mais longe." Ou seja, "empurramos a morte e, ao fazê-lo, aumentamos também o grupo de pessoas que vivem com um sistema imunitário debilitado e com menos defesas. Isto não é mau. É bom, pois quer dizer que doenças que eram fatais antigamente foram transformadas em doenças crónicas - por exemplo, muita da patologia oncológica, que matava rapidamente há 20 anos ou há 10, hoje já não mata. Os doentes vivem com medicação que lhes salva a vida, mas que os debilita. Mas o facto de vivermos com uma população com as defesas diminuídas faz com que seja impossível eliminar a infeção hospitalar".

Eliminar não, mas é possível diminuir. E para isso José Artur Paiva diz que o grupo que coordena está a "rever as metodologias que possam levar a uma redução da infeção hospitalar". Por exemplo, "metodologias de lavagem da boca que sabemos que poderão reduzir a incidência de infeção". Por fim, deixa um alerta: "Não se pode pensar que, havendo uma infeção hospitalar, é sempre um sinal de má prática, porque nem sempre o é." Aliás, esta questão não tem só a ver com a prática clínica, mas também com a dotação de recursos humanos por doente - se há um enfermeiro que tem de tratar muitos doentes, o risco de infeção aumenta - e com os espaços, uma enfermaria com seis doentes e só uma casa de banho também aumenta o risco de infeção.

Em relação aos dados sobre infeções hospitalares, afirma que a tendência em Portugal é agora de diminuição da incidência em algumas áreas, nomeadamente no que toca à "pneumonia associada à entubação (em UCI), à infeção associada à cirurgia da prótese do joelho, à infeção associada à cirurgia da vesícula, de pneumonia neonatal associada a ventilação e de infeção neonatal associada a cateter". E, como diz, "é preciso reconhecer que os resultados no controlo da infeção hospitalar e da resistência microbiana não são tão bons como os alcançados no consumo de antibióticos". Portanto, "temos de continuar a trabalhar para melhorar o que ainda é necessário".

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt