Doenças mentais. Há um "problema grave" de excesso de medicação
"Verifica-se um problema grave em termos de adequação da terapêutica prescrita aos doentes com doença mental", alerta o relatório Primavera 2019, do Observatório Português dos Sistemas de Saúde, apresentado nesta quinta-feira. Portugal é o país da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) onde o consumo de psicofármacos é mais elevado, sendo que há antidepressivos a serem prescritos de forma errada e outros que poderiam ser evitados.
As benzodiazepinas, por exemplo, que segundo o documento "são frequentemente prescritas para distúrbios de ansiedade e de sono", podem provocar fadiga, vertigens ou confusão. Riscos estes acentuados no caso dos idosos, que podem ainda ter como efeitos secundários quedas, acidentes, overdoses e diminuição da capacidade cognitiva. Atualmente, por cada mil idosos, 139 tomam benzodiazepinas.
Os antidepressivos representaram 2% das vendas de medicamentos em Portugal em 2017, o que correspondeu a uma despesa de 51,9 milhões de euros. E a tendência é para que a venda destes continue a crescer, pelo menos no que diz respeito ao consumo de ansiolíticos e antidepressivos. Os sedativos e hipnóticos, pelo contrário, têm vindo a mostrar uma diminuição no uso.
"Não estamos a fazer bem aquilo que devíamos fazer. Provavelmente, haveria um menor consumo de psicofármacos se tivéssemos contemplado outras alternativas terapêuticas", diz, ao DN, Rogério Sá Gaspar do Centro de Estudos e Investigação em Saúde na Universidade de Coimbra, um dos coordenadores do estudo. Refere-se à falta de incentivo dado aos cuidadores informais que retiram das instituições pacientes com doenças mentais e, principalmente, à falta de recursos humanos aptos para tratar estas doenças.
Mais de 80% dos utentes recorrem ao seu médico de família para serem acompanhados em doenças do foro psicológico. Apenas uma pequena parte consulta psicólogos ou psiquiatras devido à falta destes profissionais no Sistema Nacional de Saúde, que em 2015 tinha apenas 601 psicólogos. Menos 1618 dos sugeridos pela Organização Mundial de Saúde, que recomenda um psicólogo por cada cinco mil habitantes.
"Nunca houve um compromisso político sério em investir neste setor, com o objetivo de dotar o Serviço Nacional de Saúde de recursos que permitam melhorar a qualidade de vida do portador de perturbação mental", pode ler-se no relatório. Nos últimos anos, foi criada legislação e um plano de saúde mental, mas, de acordo com o professor Rogério Sá Gaspar, a "implementação desse mesmo plano foi mínima na última década".
Portugal está atrasado no combate às doenças mentais, quando tem um número elevado de pessoas com incapacidade por esta patologia - 23,8%. E quando a média europeia é de 22%. Os autores do estudo sugerem, portanto, que o modelo de apoio seja repensado e que sejam criados serviços mínimos de prestação de cuidados em todo o território, diminuindo também desta forma as assimetrias ao longo do país.
O acesso diferenciado aos cuidados de saúde vai para além das doenças mentais, até nos cuidados primários este se faz sentir. Há concelhos onde não há unidades de saúde familiar. Em 2018, existiam 376 unidades de cuidados de saúde primários (UCSP) e 376 unidades de saúde familiares (USF), estas últimas concentradas apenas em 140 dos 278 concelhos do país. Encontram-se localizadas no litoral e em ambientes socioeconómicos mais favorecidos.
"Com a exceção do corredor Lisboa-Évora, há uma clara distinção entre o litoral e o interior. Não pode haver num país, este tratamento de cidadãos de primeira e cidadãos de segunda em função do nível de desempenho e do nível de implementação do modelo de cuidados de saúde primários", refere Rogério Sá Gaspar.
Para além da irregularidade no acesso ao serviços, é ainda destacada a falta de médicos de família. Em abril de 2019, havia 710 377 utentes (6,9% do total) sem médico de família, segundo o Ministério da Saúde.
Em ano de fim de legislatura, o relatório faz ainda um balanço do que foi feito e do que ficou por fazer na área. Os autores referem que "o Serviço Nacional de Saúde (SNS) está bem melhor do que muitos pretendem fazer crer - a evolução dos indicadores de saúde do país é apenas um exemplo". No entanto, os resultados ficam aquém dos pretendidos por terem aumentado também as necessidades da população, cada vez mais envelhecida e exigente.
"Esta legislatura termina com alguma recuperação do investimento, mas uma recuperação que ficou muito aquém daquilo que seriam as expectativas que se têm quando se passa por um período tão dramático como foi o da legislatura anterior", diz o professor Rogério Sá Gaspar.
"O que ficou para memória futura é manifestamente pouco, face às expectativas geradas", conclui-se no Relatório Primavera. Utilizando como exemplo, o debate sobre a nova Lei de Bases da Saúde, cujos "constantes avanços e recuos estratégicos traduziram-se na aparente incapacidade de promover consensos para a sua aprovação nesta legislatura". "As preocupações e orientações políticas resultaram numa ação dominada pela procura da sustentação financeira do SNS no imediato, sem se poder centrar na sustentabilidade técnica, estrutural, humana e financeira do SNS, a longo prazo."