Do Vietname para o Reino Unido: uma viagem infernal em busca de uma vida melhor

As 39 pessoas que foram encontradas mortas num camião no Reino Unido são sobretudo jovens e suspeita-se que tenham vindo do Vietname para trabalhar ilegalmente. São vítimas das redes de tráfico ilegal.
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A polícia britânica continua a interrogar quatro suspeitos e prosseguem as investigações sobre a morte de 39 pessoas, cujos corpos foram encontrados na quarta-feira passada dentro de um camião frigorífico na região de Essex. Embora ainda não seja conhecida a identidade das vítimas já se sabe que eram 31 homens e oito mulheres na sua maioria vindos do Vietname - apesar de inicialmente a polícia ter dito que eram de origem chinesa, essa informação não parece confirmar-se.

A polícia já deteve o motorista do camião, Mo Robinson, um cidadão da Irlanda do Norte de 25 anos, que foi este sábado acusado de homicídio, tráfico humano e lavagem de dinheiro, e duas outras pessoas - um homem e uma mulher, ambos com 38 anos e residentes em Warrington (noroeste de Inglaterra) - suspeitas de "assassínio" e "conspiração para traficar pessoas".

Os 39 cadáveres foram transferidos para o hospital de Broomfield, na cidade de Chelmsford, para serem autopsiados. O processo de identificação dos mortos irá começar assim que se concluir a análise forense. Já este sábado, o ministro dos Negócios Estrangeiros do Vietname informou que pediu à sua embaixada em Londres para colaborar com a polícia na identificação das vítimas.

No entanto, a identificação das vítimas está a ser dificultada pelo facto de muitos viajarem com documentos falsos. VietHome, uma organização que representa a comunidade vietnamita no Reino Unido, recebeu fotos de mais de 20 pessoas dadas como desaparecidas desde que o camião foi encontrado, e essas fotos já foram entregues à polícia. Entretanto, de acordo com os testemunhos de familiares recolhidos pela BBC nos últimos dias, as vítimas deverão ser sobretudo jovens, com idades entre os 15 e os 45 anos, e é provável que tenham morrido sufocadas, dentro do camião frigorífico. Entraram ilegalmente no país para onde vinham trabalhar.

O que faz um jovem do Vietname atravessar meio mundo numa viagem perigosa e enfiar-se durante várias horas num camião fechado para entrar ilegalmente no Reino Unido?

Em camiões fechados e com medo

As organizações que combatem a escravatura têm, nos últimos anos, chamado a atenção para o tráfico de jovens do Vietname, tanto rapazes como raparigas, tendo como destino o Reino Unido. Os rapazes vão, na sua maioria, trabalhar em plantações de cannabis enquanto as raparigas trabalham em salões de manicure.

O primeiro problema que se põe ao combate do tráfico é que muitas destas pessoas embarcam nestas viagens voluntariamente, porque querem procurar um emprego e uma vida melhor, e, portanto, pagam a alguém para organizar a viagem, tratar da documentação e ajudar a atravessar a fronteira. De acordo com o relatório Precarious Journeys, divulgado no início deste ano, o preço de uma viagem destas até à Europa pode oscilar entre os 10 mil e os 40 mil dólares (9 mil a 36 mil euros). Os familiares de Pham Thi Tra My, uma das jovens que estaria no camião, disseram aos jornalistas que tinham pago 30 mil libras (cerca de 34 mil euros) aos contrabandistas para organizar a viagem e que esse dinheiro foi devolvido à família assim que surgiram as notícias da tragédia.

Saindo do Vietname, a viagem, feita em camiões fechados, pode passar pela Rússia ou pela China, pela Polónia, Alemanha, Bélgica e França, antes da entrada no Reino Unido. Os camiões evitam as estradas principais, tentando escapar aos controlos fronteiriços. Mas isso faz com que a viagem dure muito mais tempo. Os migrantes passam várias horas fechados nos camiões, onde há pouco oxigénio, e, segundo os relatos recolhidos pelas ONG, por vezes nem sequer saem de lá para dormir. Nos camiões frigoríficos, dizem-lhes, têm mais hipótese de não ser apanhados.

As 39 pessoas encontradas mortas no camião, em Inglaterra terão passado pelo menos 10 horas na câmara frigorífica do veículo, a temperaturas inferiores a -25 graus centígrados. Segundo as autoridades locais, as vítimas já estavam fechadas no camião antes de este ter chegado ao porto de Zeebrugge, na Bélgica, na terça-feira à tarde, a caminho de Inglaterra.

A linha divisória entre contrabando e tráfico pode ser muito ténue. A maioria dos vietnamitas que trabalha no Reino Unido sabe que as famílias, que ficaram no seu país, ainda têm dívidas para com os traficantes e por isso têm que trabalhar praticamente como escravos durante os primeiros anos para pagar essas dívidas, acabando por ficar presos neste esquema. As vítimas de tráfico sabem que estão no Reino Unido ilegalmente e, temendo as repercussões, raramente denunciam a situação de exploração em que se encontram. Outras vezes, os traficantes nem sequer cumprem a sua promessa de lhes arranjar um emprego e uma casa e os jovens são deixados à sua sorte. Nesse caso, é comum que quer rapazes quer raparigas acabem por se dedicar à prostituição.

Ao The Guardian, Mimi Vu, especialista em tráfico de jovens vietnamitas para a Europa, disse que durante as suas visitas a campos de migrantes na França na semana passada encontrou um número maior do que o habitual de pessoas da província de Han Tinh, uma região muito pobre do Vietname central: "O desastre ambiental de Han Tinh tem sido muito problemático para os pescadores, que perderam os seus meios de subsistência. Eles precisam de dinheiro imediatamente e esse é o fator que impulsiona a emigração", explicou. No caso de Pham Tra My, por exemplo, "ela provavelmente veio de livre vontade. A sua família pagou para que ela partisse, achando que conseguiria um emprego num salão de manicure no Reino Unido", disse Mimi Vu.

Segundo a Reuters, nos primeiros oito meses deste ano mais de 40 mil pessoas deixaram Ha Tinh à procura de trabalho, muitas delas noutros países. Neste momento, há várias família ali preocupadas com os seus jovens. Na casa de Anna Bui Thi Nhung, de 19 anos, reuniram-se dezenas de parentes: "Ela disse que estava na França e a caminho do Reino Unido, onde tem amigos e parentes", contou o primo de Nhung, Hoang Thi Linh. "Estamos à espera e rezando para que não seja ela entre as vítimas, mas é muito provável. Rezamos por ela todos os dias. Havia duas pessoas da minha aldeia a viajar nesse grupo".

Apesar da legislação existente (o Modern Slavery Act é de 2015), as autoridades não têm conseguido combater o tráfico de pessoas para o Reino Unido, sobretudo porque as vítimas têm demasiado medo para denunciar a situação e recusam-se a cooperar com a polícia mesmo depois de já estarem a ser acompanhadas por associações e de a sua situação estar regularizada. Em janeiro deste ano, uma ação de fiscalização num salão de manicure em Bath detetou duas raparigas vietnamitas, ainda menores, que trabalhavam 60 horas por semana - uma recebia 30 libras por mês (menos de 27 euros), a outra não ganhava nada - e dormiam num colchão no sótão da casa da proprietária do salão. Três pessoas foram condenadas por tráfico e exploração.

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