Do "tuitar de munições" ao "sair do armário" num debate do qual Biden saiu ileso
Joe Biden entrou confiante, vacilou para o final, mas nada que lhe faça mossa. Elisabeth Warren e Bernie Sanders mantiveram o pacto de não-agressão que terá que cair se querem chegar aos calcanhares do ex-vice-presidente nas sondagens. O último debate democrata, que se realizou em Houston, ficou marcado pelo primeiro frente a frente entre os favoritos às primárias que decidem quem irá enfrentar o presidente Donald Trump nas presidenciais de 2020.
Com 20 candidatos às primárias democratas (já houve quatro desistências), este foi o primeiro debate a incluir apenas os dez que estão mais acima nas sondagens. O que significou que, pela primeira vez, os três favoritos puderam estar frente a frente: o ex-vice-presidente Biden e os senadores Warren e Sanders, que representam a ala mais à esquerda do partido e têm uma espécie de pacto de não-agressão.
Mas o debate não foi a três, mas a dez. Julián Castro partiu ao ataque ao favorito, pondo em causa a capacidade de Biden de governar. Beto O'Rourke lançou um "hell, yes", um contundente "claro que sim" na pergunta sobre apreensão de armas de assalto. Kamala Harris acusou Trump de "tuitar as munições" usadas nos tiroteios nos EUA. Andrew Yang anunciou o uso pouco ortodoxo que vai dar ao dinheiro de campanha. Cory Booker falou do seu veganismo. Amy Klobuchar esteve apagada numa das pontas do palco. E Pete Buttigieg contou as dificuldades de assumir a homossexualidade.
As questões de saúde são as que mais preocupam os eleitores norte-americanos e foi por aí que começou o debate -- como tem sido já hábito -- com Biden a sair-se melhor.
Tanto Warren como Sanders defendem um plano de saúde para todos, mas Biden (e outros candidatos mais abaixo nas intenções de voto) criticam-no por ser demasiado caso. "O meu plano custa muito dinheiro, mas não custa 30 biliões de dólares", disse o ex-vice-presidente, que defende o alargamento do Obamacare.
Warren evitou responder sobre se o seu plano iria ou não aumentar os impostos para a classe média, enquanto Sanders disse esperar que os patrões passassem o dinheiro que poupariam ao não ter que pagar seguro de saúde aos trabalhadores para os próprios funcionários. "Para um socialista, tem muito mais confiança na América corporativa do que eu", respondeu Biden.
O debate ficou marcado pela invasão de ativistas dos direitos dos imigrantes, que interromperam Biden quando ele respondia à última questão, sobre o que os candidatos fazem diante do maior revés profissional, e falava de ter perdido a sua primeira mulher e filhos, o último em 2015 vítima de um tumor cerebral. Quem assistia à transmissão teve dificuldades em perceber o que estava a acontecer, com o debate a ser interrompido durante 48 segundos, antes de Biden pedir desculpa, assim como um dos moderadores.
O pior momento para Biden foi na resposta a uma questão sobre o legado do racismo, já para o fim do debate. O ex-vice-presidente, de 76 anos, divagou sobre assistentes sociais, educação e os pais garantirem que "o gira-discos está a tocar à noite" e que os filhos "oiçam palavras", acabando a falar da Venezuela e Nicolás Maduro.
Não foi um bom momento numa altura em que existem dúvidas sobre a sua capacidade para assumir a presidência -- a certa altura, o ex-ministro da Habitação de Obama, Julián Castro, acusou-o de se esquecer do que tinha dito há dois minutos. E perante o facto de os três favoritos terem todos mais de 70 anos, Castro disse na sua intervenção inicial: "Os nossos problemas não começaram com Donald Trump. E não vamos resolvê-los ao abraçar velhas ideias."
O ex-ministro criticou ainda o antigo vice-presidente, alegando que ele é rápido a pôr-se do lado de Obama quando lhe convém, mas afastar-se quando não convém. Em causa uma questão específica sobre imigração. "Estou a cumprir o legado e você não", disse Castro a Biden, que respondeu: "Isso vai ser uma surpresa para ele."
Biden começou confiante o debate e, sem erros maiores, deverá manter-se confiante na liderança nas sondagens. No Twitter, após o final do debate, congratulou-se com o facto de ser "o único candidato que pode adotar grandes políticas progressistas e criar resultados tangíveis para as famílias trabalhadoras".
Segundo a média das sondagens do site Real Clear Politics, Biden tem 26,8% das intenções de voto a nível nacional, à frente de Sanders (17,3%) e de Warren (16,8%). Os outros candidatos estão todos abaixo dos dez pontos percentuais.
Algumas das frases mais memoráveis do debate surgiram no tema de controlo de armas. Beto O'Rourke, ex-congressista do Texas e natural de El Paso (palco de um dos tiroteios mais recentes), questionado sobre se defendia o confiscar das armas, respondeu: "Hell, yes" , um efusivo "claro que sim", que foi aplaudido pela plateia, dizendo que vai ficar com as AR-15 e AK-47 que estão em circulação. "Não vamos deixar que sejam usadas contra os cidadãos norte-americanos."
Já a senadora da Califórnia, Kamala Harris, apontou o dedo ao presidente Donald Trump: "Obviamente que ele não apertou o gatilho, mas certamente que tem estado a tuitar as munições", afirmou.
Na questão sobre o maior revés profissional, Pete Buttigieg lembrou a luta com a sua própria sexualidade e a dificuldade, enquanto político, em assumir a sua homossexualidade. "Como um militar a servir sob a política do Don't Ask Don't Tell e como oficial eleito no estado do Indiana quando Mike Pence [atual vice-presidente] era governador, a determinado momento tinha que refletir se ser só quem eu era iria ser o maior revés profissional e final da carreira", disse
"Voltei do destacamento e percebi que só vivemos uma vez e não estava interessado em não saber o que era estar apaixonado", contou. "Então saí do armário. Não tinha ideia de que tipo de revés profissional iria sofrer porque, inconvenientemente, era ano de reeleição na minha comunidade socialmente conservadora", explicou, dizendo que confiou no trabalho que tinha feito e que os eleitores confiaram nele, reelegendo-o com 80%.
O empresário Andrew Yang surpreendeu ao anunciar, no discurso inicial, que vai usar os fundos da campanha para pagar a dez famílias sorteadas ao acaso (têm que se inscrever no seu site) mil dólares por mês -- uma das suas promessas de campanha é dar mil dólares a todos os norte-americanos com mais de 18 anos. "É original, admito isso", disse Buttigieg.
Vegan desde 2014, Cory Booker foi questionado pelo moderador Jorge Ramos se as outras pessoas deviam seguir a sua dieta, lembrando estudos que dizem que comer menos cartne é uma forma de ajudar o ambiente. "Em primeiro lugar, quero dizer 'não' -- de facto, quero traduzir isso em espanhol, 'não'", disse Booker, diante do riso da audiência. Depois falou da criação de animais nos EUA e como estes estão sujeitos a condições desumanas, defendendo o fim dos grandes aglomerados agrícolas, a favor dos agricultores de tamanho familiar e independentes.
O próximo debate é no próximo mês, no Ohio, sendo a primeira votação das primárias a 3 de fevereiro, no Iowa.