Do quimono pago a prestações à primeira medalha olímpica

Manuela, mãe de Telma Monteiro, conta como se formou a campeã, desde o bairro social ao pódio no Rio, "com garra e superação"
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"Ela ligou-me e disse "minha mãe, eu sei que estás toda contente; é para ti, fizeste-me uma mulher forte"." Foi com esta frase que Telma Monteiro agradeceu à mãe uma vida que, embora de sofrimento - ou "superação", como ela prefere apelidar -, foi também de alegrias, como a medalha de bronze no judo (-57kg) agora conquistada no Rio 2016, aos 30 anos, e depois de uma carreira de 16.

"Não é para menos, é um orgulho muito grande, é a primeira medalha olímpica de uma judoca portuguesa e a segunda de sempre, depois da de Nuno Delgado (Sydney 2000)", lembra Manuela Monteiro, depois de acabar os almoços no restaurante Farinhas, onde trabalha como cozinheira. Foi a cozinhar que ganhou dinheiro para sair do Bairro Branco, no Monte de Caparica, assim que Telma entrou em alta competição.

Não saiu pela má fama do bairro social, mas porque queria "dar todas as condições à Telma para ser uma superatleta", como lhe diziam que ela era. Por isso, decidiu fazer uso das poupanças e dar entrada numa casa no Feijó, para morar a metros do clube onde a filha ia treinar - o CCD, Construções Norte-Sul. "Ela treinava muito cedo, às 07.00, e eu achava que ela não podia andar quilómetros ao frio e à chuva, sozinha, tão cedo, para treinar. Sair do bairro foi uma das minhas melhores conquistas, saber que lutei e consegui apesar de ter quatro filhos e ganhar pouco mais de 600 euros. E é um orgulho muito grande saber que ela tem humildade para reconhecer esse esforço da família", confessa.

A vida de Manuela sempre foi na cozinha. Gosta do que faz. "Não deixo de ser mãe da Telma por estar numa cozinha, porque foi na cozinha que ganhei o dinheiro com que comprei o primeiro quimono dela e o da irmã, e que paguei o carro para a poder ir buscar ao aeroporto. Foi do meu trabalho e do do meu marido que saiu o dinheiro", revela, antes de contar que "o primeiro quimono, daqueles reversíveis, custou 16 contos [80 euros]. Era muito dinheiro, tivemos de pagar a prestações".

Manuela Monteiro já combinou com a patroa ir ao aeroporto buscar a medalhada olímpica, dia 23. E já sabe que vai ter de preparar a comida preferida da filha. "Ela pede sempre bifinhos com cogumelos. Mesmo no Natal. Ela não gosta de bacalhau, por isso a ceia de Natal é sempre bifinhos e mousse de chocolate... que ela diz que é diferente. Mas agora até já diz que a dela é melhor do que a minha", responde, entre sorrisos orgulhosos.

O futebol perdeu para o judo

Foi graças a um programa de reinserção social no Bairro Branco, liderado pelo mestre Vítor Caetano, que Telma, então com 14 anos, apareceu no judo. A irmã, Ana Monteiro, e as amigas - Sandra Borges, Ana Sofia, e as irmãs Teresa e Sandra Mirrado - andavam no judo. Telma andava no futebol. "Tinha uma enorme paixão pela bola", conta a mãe, revelando que ela até era boa jogadora e chegou a ter alguns problemas com os treinadores de ambas a modalidades, tal a disputa: "Dei por mim a ter de dizer aos treinadores que ela é que decidia... ia dando confusão."

Ia, mas não deu porque ela acabaria por desistir dos relvados. "A irmã dizia-lhe para ir para o judo, que era fixe irem todas viajar e assim ela foi experimentar, mas desistiu passado dois dias. Entretanto, não sei porque carga de água ela decidiu voltar. E aí já não deixou mais o judo." Dos tapetes usados e das aulas numa garagem no bairro social, a judoca passou para o CCD - Construções Norte Sul, onde Vítor Caetano era mestre. Telma foi um dos atletas em quem ele viu qualidades superiores. Pouco depois já dava treino aos meninos do bairro, a pedido do mestre, a troco de 5 euros/hora (a dividir com Sandra Borges). "Ela sempre foi poupada, por isso mesmo 2,5 euros era dinheiro. Mas para ela o mais importante era saber que já era alguém no judo", acredita a mãe, revelando que o penteado com totó ao lado, que a caracteriza, nasceu de uma necessidade: "Só podem apanhar o cabelo duas ou três vezes, se não são desclassificadas, e ela queixava-se que lhe puxavam o cabelo. Por isso, aquela foi a maneira de minimizar os estragos."

A ascensão de Telma foi uma "coisa tão rápida" que Manuela não se lembra com exatidão da primeira vez que ela chegou a casa entusiasmada e aos gritos a dizer "mãe, mãe eu ganhei". Depois chegou a primeira medalha: "Ela é muito competitiva e, como ganhou a primeira medalha, aquilo mexeu com ela e quis ver até onde conseguia ir. E foi nessa altura que ela disse: " já não dá mais para conciliar, vou deixar o futebol"." A notícia fez a irmã mais velha, também judoca, feliz. Para a mãe também foi bom. Foi um orgulho ver as duas a ter sucesso juntas no judo em vez de as ver, como tantos outros jovens do bairro, a desperdiçar a vida em assaltos e corridas de carros. "A Ana [irmã mais velha] era uma atleta muito boa e a Telma olhava para ela como inspiração. Por vezes questionavam como a Ana, quase sem treinar, chegava ao tapete e ganhava aquilo tudo. Se não fosse as lesões... A Telma é a imagem do espírito de sacrifício. Treinar, treinar, treinar...", atira entre suspiros, antes de recordar um torneio, na Alemanha, onde combateram entre elas. Depois do primeiro título nacional, vieram as taças do Mundo e os títulos europeus, até merecer a honra de ser porta-estandarte de Portugal nos Jogos Olímpicos de Londres 2012.

Os maiores desgostos

"Londres 2012 foi o maior desgosto da vida dela", revela a mãe, lembrando que ser porta-estandarte e sair eliminada no primeiro combate foi "uma frustração muito grande" e deixou marcas: "As pessoas são cruéis na derrota e, quando a Telma ficou sem chão, só a família e o Benfica estavam no aeroporto."
Regressada de Londres, a judoca começou a pensar no Rio 2016, mas a morte da avó que ela "adorava" voltou a abalar a judoca, que ainda não tinha superado outra morte, a de António Matias, o selecionador nacional, anos antes (2008). Mas Manuela sabe bem a filha que criou e, por isso, acredita que ela reverteu esses momentos tristes em motivação: "Tenho a certeza de que foi ao Matias e à avó que ela foi buscar forças para se erguer de novo, após a operação [no início deste ano]. Foi a avó que nos ensinou que temos de lutar muito para conseguir o que queremos e o Matias também foi muito importante na vida dela. Esta medalha também é para eles."

Da operação à medalha em meses

Este ano de Jogos Olímpicos não podia começar pior: a 18 de fevereiro, Telma teve de ser operada ao joelho direito. Apesar disso não desanimou. Os amigos e a família "fartaram-se" de lhe dizer ela ia recuperar a tempo dos Jogos. Mas houve uma pessoa em especial que a sensibilizou. "O presidente do COP visitou-a e disse-lhe : "Primeiro a Telma, depois a atleta e só a seguir os Jogos. Se não puderes ir como atleta vais como convidada." Não foi apenas no papel de presidente, a ver se ela ia ou não conseguir competir e representar o país", elogiou, sem esquecer o fisioterapeuta do Benfica que a ajudou e o médico que a operou, Pereira de Castro: "Eles sabem como ela estava e como recuperou em tempo recorde, com dois ingredientes fundamentais: o querer e determinação superaram as dores, o choro e o desânimo inicial."

Foi a mesma crença que a levou a tatuar os cinco anéis olímpicos no braço. E que levou também a mãe a fazer uma promessa a Nossa Senhora de Fátima. Quando Telma conseguiu carimbar a vaga para o Rio, os quartos Jogos consecutivos da carreira, a mãe foi cumprir a promessa e fazer outra: voltar depois dos Jogos, com a Telma e uma vela de 1, 62 metros (altura da filha).

Manuela viu o combate que deu o bronze à filha em casa. Mas o primeiro não foi capaz de ver... e até teve de ir à farmácia medir a tensão: "estava muito ansiosa". Passado o trauma do primeiro combate, e como já lhe tinha dito que ia trazer uma medalha, viu os restantes e festejou como nunca. Mas só conseguiu descansar depois de falar com Telma, já depois da meia-noite. E "ela estava tão feliz".
Como "já são muito anos", Manuela já vai percebendo o judo e a estratégia da filha e das adversárias. Por isso estava com medo que as outras soubessem que ela tinha sido operada e que a massacrassem para tirar vantagem. Não foi no joelho, mas Telma ia ficando sem braço no combate decisivo... "A minha filha é muito forte, e não estou a falar de força física mas sim psicológica. Naquele momento ela não pensou na dor no braço, só pensou "eu tenho de levar a medalha para o meu país"", refere.

O grito de "eu vim para ficar" após ganhar à francesa Pavia apanhou de surpresa a mãe, que desabafa: "A Pavia estava descontrolada, olhava para ela como se lhe quisesse dar uma tareia e não combater. Mas no final ganhou a portuguesinha do totó." Manuela ainda não sabe o que a filha vai fazer com a medalha, mas terá seguramente um lugar de destaque na sala dos troféus em casa dela. "Tem os troféus por ordem de conquista, que ela é muito organizada", revela a mãe. "Isto se a Cuca [a irrequieta cadela de Telma] não a apanhar para brincar (risos)."

O bronze olímpico traz associados 17 500 euros, prémio a pagar pelo Estado. Um valor que não chega para pagar tudo o que a família investiu na carreira: "Mesmo se não ganhasse dinheiro nenhum ela continuava no judo, porque a paixão dela foi sempre esta." A medalhada olímpica só volta dia 23. Até lá fica no Rio para apoiar os outros atletas. Depois, assim que chegar, Manuela acredita que ela vai "logo" começar a pensar em Tóquio 2020 : "Os japoneses adoram-na e ela é amiga da [judoca] Matsumoto. Deu-lhe uma camisola do Benfica autografada e tudo. Foi giro, agora no Rio dividiram o pódio. A Telma vai querer ir lá aos Jogos. E se ela quer... ela consegue!"

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