Quando chegou a Bruxelas, Diogo Feio levava na bagagem cinco anos como deputado à Assembleia da República (AR). Lembra-se bem de uma das primeiras impressões à chegada ao Parlamento Europeu: "Na primeira reunião do grupo parlamentar em que estava integrado, uma reunião interna do Partido Popular Europeu, estavam mais deputados do que aqueles que há em toda a AR.".O gigantismo e a complexidade. É a primeira impressão de quem tem a experiência do hemiciclo nacional e chega a Bruxelas como eleito ao Parlamento Europeu (PE). A dimensão transnacional transforma o PE numa realidade "muito distinta" da Assembleia da República, diz a comunista Ilda Figueiredo, também ela com passagem pelos dois cenários..Atualmente são 751 os eurodeputados com assento em Bruxelas e Estrasburgo - 28 nacionalidades (por enquanto), oito grupos parlamentares (mais os deputados não inscritos). Um ato legislativo saído do PE - que demora no mínimo um ano a ver a luz do dia, mas pode pode estender-se por uma década - aplica-se a 500 milhões de cidadãos europeus. Mas será isso uma medida da importância do que se decide em Bruxelas? Que decisões pesam mais, as que são tomadas em São Bento ou no Parlamento Europeu?."Na AR vive-se o dia-a-dia".Os números dão primazia a Bruxelas. De acordo com dados da própria instituição, desde o início do mandato (em julho de 2014) até ao final de 2018, saíram do Parlamento Europeu cerca de 700 atos legislativos (que podem ser regulamentos ou diretivas, tendo estas de ser adaptadas ao quadro jurídico de cada país). Já a Assembleia da República, nas três sessões legislativas que leva completas, produziu 145 leis. Mas os números, por si só, dizem pouco.."No curto prazo a influência é maior na Assembleia da República. No médio prazo, no Parlamento Europeu. No Parlamento nacional tomei decisões que têm um impacto mais imediato, no PE as decisões têm um impacto mais profundo, são mais estruturais", diz ao DN o socialista Carlos Zorrinho, eurodeputado desde 2014, depois de anos na Assembleia da República e de uma legislatura como líder parlamentar (condição que partilha, aliás, com o centrista Diogo Feio, o socialista Francisco Assis e o social-democrata Paulo Rangel, todos eurodeputados depois de terem sido líderes parlamentares).."Na AR estamos sob um escrutínio diário, e a política é muito a do dia-a-dia, em que temos de dar uma resposta imediata, de proximidade. No PE há uma lógica mais de ciclo: mesmo um relatório rápido demora um ano a ser terminado", acrescenta o eurodeputado. Diogo Feio partilha a mesma ideia: "No Parlamento Europeu nunca se está a legislar sobre o caso do dia. É muito mais tranquilo estar em Bruxelas e Estrasburgo a legislar sobre a União Bancária do que na Assembleia da República sobre o Banco de Portugal". Mesmo que a decisão europeia obrigue depois o Parlamento nacional a ir atrás. E aqui há uma primazia que Ilda Figueiredo contesta: "O Parlamento Europeu não devia aprovar nada que não tivesse sido previamente discutido e aceite nos parlamentos nacionais.".Ao contrário da Assembleia da República, o PE não faz leis sozinho. Mas tem vindo a ganhar força legislativa, tornando-se em muitas áreas um codecisor praticamente em pé de igualdade com o Conselho Europeu. Um processo que passa pela conciliação de posições e que transforma o PE na "melhor escola de negociação do mundo", diz Zorrinho..O social-democrata Carlos Coelho, o eurodeputado português que está há mais tempo em Bruxelas (também com passagem anterior pela AR), explica: "No Parlamento nacional, um deputado sabe que, se tiver mais um voto a favor do que contra, tem uma lei aprovada. A aritmética parlamentar é relativamente fácil. Uma lei aprovada pelo PE só é lei se o Conselho - os governos dos Estados membros - aprovar o mesmo texto. Tem de haver uma negociação, uma conciliação entre o Parlamento e o Conselho para aproximarem as posições". Um exemplo de como funciona esse processo: "Se eu for o relator de uma proposta e tiver, por exemplo, 301 votos a favor e 299 contra, mas se a posição que perdeu for a do Conselho Europeu, asseguro-lhe que o que o que vai ser aprovado não é o meu relatório, não é a minha posição, mas a dos que foram derrotados, porque o Conselho vai negociar e tentar encontrar apoiantes que mudem de posição"..Nesse processo, o trabalho em comissão torna-se muito mais relevante do que os debates em plenário. É uma constatação geral. "No Parlamento nacional é claramente visível a supremacia da política sobre a técnica, enquanto no Parlamento Europeu, se não houver uma boa formação técnica e uma boa capacidade negocial - mas baseada no conhecimento técnico dos dossiês -, a dimensão política fica asfixiada", diz Zorrinho. "O Parlamento Europeu é bastante mais complexo no seu modelo, implica processos de negociação muito mais intrincados. Temos de cruzar nacionalidades com grupos políticos, que são grupos políticos com uma matriz absolutamente diferente do que estamos a habituados a tratar no parlamento nacional", acrescenta o eurodeputado socialista..O que faz um eurodeputado em 751?.Pode um eleito fazer a diferença entre 751 eurodeputados? Poder pode, embora não seja fácil, é a resposta unânime de quem já passou por Bruxelas. Mas com uma condição impreterível - o domínio técnico dos dossiês. "O que vale em Bruxelas é o perfil das pessoas. Se for respeitada na sua área, ela risca. Quando fala, é ouvida. Se não for respeitada na sua área, não é no Parlamento Europeu que consegue alterar isso. Depende da capacidade de cada um: quem tem unhas toca guitarra", diz Carlos Coelho, que defende que na AR, mais centrada num trabalho político-partidário - e numa avaliação "ganhou o debate ou perdeu o debate?" - "há menos espaço para a realização individual de cada deputado".."A lógica das famílias políticas é muito mais marcada no Parlamento nacional, onde há bancadas parlamentares claras, onde há governo e oposição, do que no Parlamento Europeu. As famílias políticas existem, mas as diferenças de voto são gritantes - eu muitas vezes voto diferente do Partido Popular Europeu, muitas vezes a delegação do PSD vota diferente do PPE", explica o social-democrata. E isso não é caso único: "Vê muitas vezes os 21 deputados portugueses, do PCP ao CDS, votarem da mesma maneira independentemente do voto da sua família política". Significa isto que um eurodeputado tem mais liberdade própria do que um deputado na Assembleia da República? A resposta não levanta dúvidas a Carlos Coelho: "Sim, claramente"..O eurodeputado acrescenta outra questão. "Muitas vezes, na Assembleia da República, para fazer um documento, estava completamente sozinho. No Parlamento Europeu apercebi-me rapidamente de que tinha três níveis de apoio - o meu próprio gabinete, o apoio do meu grupo parlamentar, e ainda havia um conjunto de assessores do próprio PE." "É como David e Golias. O Parlamento português é muito incipiente, o PE se calhar é sobredimensionado", resume..Já Diogo Feio sublinha que, para ganhar peso político no Parlamento Europeu, o ideal é ficar mais do que cinco anos - "Quando se chega há uma máquina imensa que não se conhece, demora tempo a conhecer. Quem queira ter maior visibilidade e aceitação tem que ter um segundo mandato". .Ilda Figueiredo diz que a maior diferença que sentiu quando chegou a Bruxelas foram os tempos de intervenção. Enquanto na Assembleia da República um parlamentar pode ter largos minutos para expor uma posição, no PE "os tempos são diminutos: um minuto, minuto e meio, dois minutos, não mais". Aquela que é uma componente importante do trabalho (e da visibilidade) no hemiciclo nacional, transforma-se em Bruxelas numa corrida em contra relógio para dizer o maior número de coisas possível no mais curto espaço de tempo admissível. E quase não há pedidos de esclarecimento, como não há de todo a figura da "defesa da honra", que muitas vezes são usadas na Assembleia da República para ganhar tempo de intervenção. Em Bruxelas, todos os eurodeputados são "André Silva" - o deputado-único do PAN que, no Parlamento, se especializou em intervenções a grande velocidade no escasso tempo que tem para falar. Com a agravante de que, no PE, as intervenções estão a ser traduzidas em tempo real para as 24 línguas oficiais da União Europeia.
Quando chegou a Bruxelas, Diogo Feio levava na bagagem cinco anos como deputado à Assembleia da República (AR). Lembra-se bem de uma das primeiras impressões à chegada ao Parlamento Europeu: "Na primeira reunião do grupo parlamentar em que estava integrado, uma reunião interna do Partido Popular Europeu, estavam mais deputados do que aqueles que há em toda a AR.".O gigantismo e a complexidade. É a primeira impressão de quem tem a experiência do hemiciclo nacional e chega a Bruxelas como eleito ao Parlamento Europeu (PE). A dimensão transnacional transforma o PE numa realidade "muito distinta" da Assembleia da República, diz a comunista Ilda Figueiredo, também ela com passagem pelos dois cenários..Atualmente são 751 os eurodeputados com assento em Bruxelas e Estrasburgo - 28 nacionalidades (por enquanto), oito grupos parlamentares (mais os deputados não inscritos). Um ato legislativo saído do PE - que demora no mínimo um ano a ver a luz do dia, mas pode pode estender-se por uma década - aplica-se a 500 milhões de cidadãos europeus. Mas será isso uma medida da importância do que se decide em Bruxelas? Que decisões pesam mais, as que são tomadas em São Bento ou no Parlamento Europeu?."Na AR vive-se o dia-a-dia".Os números dão primazia a Bruxelas. De acordo com dados da própria instituição, desde o início do mandato (em julho de 2014) até ao final de 2018, saíram do Parlamento Europeu cerca de 700 atos legislativos (que podem ser regulamentos ou diretivas, tendo estas de ser adaptadas ao quadro jurídico de cada país). Já a Assembleia da República, nas três sessões legislativas que leva completas, produziu 145 leis. Mas os números, por si só, dizem pouco.."No curto prazo a influência é maior na Assembleia da República. No médio prazo, no Parlamento Europeu. No Parlamento nacional tomei decisões que têm um impacto mais imediato, no PE as decisões têm um impacto mais profundo, são mais estruturais", diz ao DN o socialista Carlos Zorrinho, eurodeputado desde 2014, depois de anos na Assembleia da República e de uma legislatura como líder parlamentar (condição que partilha, aliás, com o centrista Diogo Feio, o socialista Francisco Assis e o social-democrata Paulo Rangel, todos eurodeputados depois de terem sido líderes parlamentares).."Na AR estamos sob um escrutínio diário, e a política é muito a do dia-a-dia, em que temos de dar uma resposta imediata, de proximidade. No PE há uma lógica mais de ciclo: mesmo um relatório rápido demora um ano a ser terminado", acrescenta o eurodeputado. Diogo Feio partilha a mesma ideia: "No Parlamento Europeu nunca se está a legislar sobre o caso do dia. É muito mais tranquilo estar em Bruxelas e Estrasburgo a legislar sobre a União Bancária do que na Assembleia da República sobre o Banco de Portugal". Mesmo que a decisão europeia obrigue depois o Parlamento nacional a ir atrás. E aqui há uma primazia que Ilda Figueiredo contesta: "O Parlamento Europeu não devia aprovar nada que não tivesse sido previamente discutido e aceite nos parlamentos nacionais.".Ao contrário da Assembleia da República, o PE não faz leis sozinho. Mas tem vindo a ganhar força legislativa, tornando-se em muitas áreas um codecisor praticamente em pé de igualdade com o Conselho Europeu. Um processo que passa pela conciliação de posições e que transforma o PE na "melhor escola de negociação do mundo", diz Zorrinho..O social-democrata Carlos Coelho, o eurodeputado português que está há mais tempo em Bruxelas (também com passagem anterior pela AR), explica: "No Parlamento nacional, um deputado sabe que, se tiver mais um voto a favor do que contra, tem uma lei aprovada. A aritmética parlamentar é relativamente fácil. Uma lei aprovada pelo PE só é lei se o Conselho - os governos dos Estados membros - aprovar o mesmo texto. Tem de haver uma negociação, uma conciliação entre o Parlamento e o Conselho para aproximarem as posições". Um exemplo de como funciona esse processo: "Se eu for o relator de uma proposta e tiver, por exemplo, 301 votos a favor e 299 contra, mas se a posição que perdeu for a do Conselho Europeu, asseguro-lhe que o que o que vai ser aprovado não é o meu relatório, não é a minha posição, mas a dos que foram derrotados, porque o Conselho vai negociar e tentar encontrar apoiantes que mudem de posição"..Nesse processo, o trabalho em comissão torna-se muito mais relevante do que os debates em plenário. É uma constatação geral. "No Parlamento nacional é claramente visível a supremacia da política sobre a técnica, enquanto no Parlamento Europeu, se não houver uma boa formação técnica e uma boa capacidade negocial - mas baseada no conhecimento técnico dos dossiês -, a dimensão política fica asfixiada", diz Zorrinho. "O Parlamento Europeu é bastante mais complexo no seu modelo, implica processos de negociação muito mais intrincados. Temos de cruzar nacionalidades com grupos políticos, que são grupos políticos com uma matriz absolutamente diferente do que estamos a habituados a tratar no parlamento nacional", acrescenta o eurodeputado socialista..O que faz um eurodeputado em 751?.Pode um eleito fazer a diferença entre 751 eurodeputados? Poder pode, embora não seja fácil, é a resposta unânime de quem já passou por Bruxelas. Mas com uma condição impreterível - o domínio técnico dos dossiês. "O que vale em Bruxelas é o perfil das pessoas. Se for respeitada na sua área, ela risca. Quando fala, é ouvida. Se não for respeitada na sua área, não é no Parlamento Europeu que consegue alterar isso. Depende da capacidade de cada um: quem tem unhas toca guitarra", diz Carlos Coelho, que defende que na AR, mais centrada num trabalho político-partidário - e numa avaliação "ganhou o debate ou perdeu o debate?" - "há menos espaço para a realização individual de cada deputado".."A lógica das famílias políticas é muito mais marcada no Parlamento nacional, onde há bancadas parlamentares claras, onde há governo e oposição, do que no Parlamento Europeu. As famílias políticas existem, mas as diferenças de voto são gritantes - eu muitas vezes voto diferente do Partido Popular Europeu, muitas vezes a delegação do PSD vota diferente do PPE", explica o social-democrata. E isso não é caso único: "Vê muitas vezes os 21 deputados portugueses, do PCP ao CDS, votarem da mesma maneira independentemente do voto da sua família política". Significa isto que um eurodeputado tem mais liberdade própria do que um deputado na Assembleia da República? A resposta não levanta dúvidas a Carlos Coelho: "Sim, claramente"..O eurodeputado acrescenta outra questão. "Muitas vezes, na Assembleia da República, para fazer um documento, estava completamente sozinho. No Parlamento Europeu apercebi-me rapidamente de que tinha três níveis de apoio - o meu próprio gabinete, o apoio do meu grupo parlamentar, e ainda havia um conjunto de assessores do próprio PE." "É como David e Golias. O Parlamento português é muito incipiente, o PE se calhar é sobredimensionado", resume..Já Diogo Feio sublinha que, para ganhar peso político no Parlamento Europeu, o ideal é ficar mais do que cinco anos - "Quando se chega há uma máquina imensa que não se conhece, demora tempo a conhecer. Quem queira ter maior visibilidade e aceitação tem que ter um segundo mandato". .Ilda Figueiredo diz que a maior diferença que sentiu quando chegou a Bruxelas foram os tempos de intervenção. Enquanto na Assembleia da República um parlamentar pode ter largos minutos para expor uma posição, no PE "os tempos são diminutos: um minuto, minuto e meio, dois minutos, não mais". Aquela que é uma componente importante do trabalho (e da visibilidade) no hemiciclo nacional, transforma-se em Bruxelas numa corrida em contra relógio para dizer o maior número de coisas possível no mais curto espaço de tempo admissível. E quase não há pedidos de esclarecimento, como não há de todo a figura da "defesa da honra", que muitas vezes são usadas na Assembleia da República para ganhar tempo de intervenção. Em Bruxelas, todos os eurodeputados são "André Silva" - o deputado-único do PAN que, no Parlamento, se especializou em intervenções a grande velocidade no escasso tempo que tem para falar. Com a agravante de que, no PE, as intervenções estão a ser traduzidas em tempo real para as 24 línguas oficiais da União Europeia.