Djerba, oásis que não é só de belas praias mas também exemplo de coexistência religiosa

A pequena ilha situada no sul tunisino é famosa pelo casario branco e azul que resplandece em contraste com o Mar Mediterrâneo, sobretudo com o sol de verão. Mas fora da época alta, e com tentação da ida à praia a sentir-se menos, os turistas têm vasta oferta cultural para desfrutar, e até podem conhecer uma das últimas comunidades judaicas do mundo árabe.
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Vir a Djerba no início de novembro é não resistir a um mergulho no Mediterrâneo, e ficar surpreendido com a facilidade de entrar na água, tanto mais que a comparação imediata para um setubalense como eu é com outras praias de areia branca e mar azul, as da Arrábida, em que se sente aquele friozinho do Atlântico até em agosto. Mas o turista de outono (e não só) tem muito mais do que praias para o atrair a esta ilha do sul da Tunísia, cujo clima doce cativa desde a Antiguidade, como nos relembra um historiador local, Houcine Tobji, fundador do Museu de Guellala: "Cartagineses, romanos, vândalos, bizantinos, árabes, espanhóis, turcos, franceses. Muitas foram os que se instalaram em Djerba, mas a ilha continua a ter como marca a herança dos primeiros habitantes, os Berberes ou Amazighes, o povo que já há três mil anos vivia no Norte de África. Está nos costumes, no vestuário, na gastronomia, em tudo".

Estar sentado na esplanada do café que pertence ao museu, a beber um chá, e ouvir Tobji falar apaixonadamente sobre uma ilha que é conhecida pela hospitalidade é um triplo privilégio. É que à cultura do historiador se soma a bela vista, pois estamos no ponto mais alto de Djerba, e o próprio museu nos oferece uma introdução a essa história e cultura tão ricas de uma ilha de cerca de 500 km2. São uns 20 por 25 quilómetros, com um litoral que se estende por 150 quilómetros, cheio de surpresas como os flamingos rosa, as aldeias de pescadores, ou o mercado árabe que dá também nome à principal cidade, Oumt Souk, que por estes dias se prepara para acolher a XVIII Cimeira da Francofonia, um desafio organizativo para a Tunísia (democracia após a Primavera Árabe mas já desde a independência declarada por Habib Bourguiba em 1956 um país aberto ao mundo), e uma oportunidade para Djerba reforçar nos dias 19 e 20 a notoriedade global.

"Esperamos com a Cimeira da Francofonia mostrar a Tunísia. Djerba será o palco, acolhendo delegações de mais de 80 países, e durante dois dias a ilha será muito falada. Haverá depois curiosidade por descobri-la", diz Hamda Abdellaoui, da Destination Management Organisation Djerba (DMO), organização de empresários do sector turístico. A conversa é em francês, a segunda língua para a maioria dos tunisinos, mesmo que cada vez mas se aprenda inglês.

Depois de um primeiro dia em que fiquei num hotel de charme, o Dar- Bibine (propriedade de um casal belga que se apaixonou por Djerba), e conheci não só a sinagoga da Ghriba como Hara, o bairro judaico - e lá o famoso BriksIshaak, restaurante onde se comem os melhores crepes tunisinos (garantiu-me Gérard Gridelet, do Dar-Bibine) -, os dois dias seguintes foram no Radisson Blu, um dos hotéis na zona turística com praias perto de Oumt Souk e, portanto, boa base para descobrir a ilha em geral e a principal cidade em particular.

O almoço com Abdellaoui é no restaurante Haroun, com vista para o mar e próximo do porto de pesca. A caminho tive oportunidade de ver o chamado Forte Espanhol, recordação desse século XVI em que Carlos V disputava o controlo do Mediterrâneo com o sultão otomano Solimão o Magnífico. Outro legado dessa época é a Mesquita dos Turcos, próxima da Igreja de São José, católica, essa já do século XIX, resultado da presença então de pescadores italianos na ilha.

O muito falado cosmopolitismo tunisino, país árabe que homenageia o seu passado cartaginês e também romano (os mosaicos do Museu do Bardo, em Tunis, são excecionais), revela-se em Djerba sob esta forma de convivência de religiões. Não só a comunidade judaica, reunida em volta de uma sinagoga com 2600 anos, é hoje a mais numerosa do mundo árabe depois da de Casablanca, megacidade marroquina, como a própria população muçulmana pertence tradicionalmente ao ibadismo, terceira via do islão, distinta do sunismo e do xiismo.

"A diversidade de Djerba é parte da cultura da ilha. E reflete-se no património material e imaterial. Por isso digo que o verão é excelente para visitar a ilha, pois o nosso litoral oferece desde os banhos de mar até desportos como o kitesurf, mas noutras estações há muito para descobrir e fazer. Falo da equitação, do golfe, da talassoterapia, das oficinas para aprender cerâmica e tapeçaria. E falo também da descoberta da gastronomia", sublinha o dirigente da DMO Jerba.

O Haroun oferece uma ementa diversificada, com peixe grelhado e mariscos. Opto pelo polvo na brasa e devo dizer que, depois de regado com azeite tunisino, me sabe à lagareiro, prova de que entre a Península Ibérica e o Magrebe muito há em comum, da gastronomia à língua, ou não tivéssemos no português tantas palavras de origem árabe, como o próprio azeite e a azeitona, e nomes de locais, como Almada, Aljezur ou Alcântara.

Mas se há laços antigos entre tunisinos e portugueses (tanto nos primórdios do Império Árabe como antes no Romano chegaram a estar sob o mesmo poder político), não deixa de haver diferenças, e mesmo num restaurante muito pensado para acolher turistas há pratos com exotismo q.b., típicos do Magrebe, como a salada mechouia ou o já falado brik (ao fim de provar alguns, posso testemunhar que o do BriksIshaak se distingue!).

A nível da bebida, e como país muçulmano liberal, a Tunísia não só autoriza vários estabelecimentos a vender álcool (caso de hotéis como o Radisson Blu) como até produz vinho e uma aguardente de figo chamada Boukha (lê-se Burra).

O liberalismo tunisino também tem muito que ver com a emancipação feminina desde a era de Bourguiba e, se em Djerba, tanto se vê mulheres de cabelo descoberto, como outras que o cobrem, "ninguém impõe nada a ninguém", assegura Isslem Jerbi, diretora de marketing da DMO, que se juntou ao almoço no Haroun.

"Mesmo para as estrangeiras, Djerba é um local seguro e acolhedor. A ilha recebe turistas desde a independência e até antes e a população habituou-se ao que chamamos roupas de verão. As praias dos hotéis são privadas, mas mesmo nas praias públicas podem ver-se mulheres de fato de banho, até tunisinas. Não há choque cultural", explica.

Habituada a visitar a Tunísia, Laure Jeanne Moureaux decidiu instalar-se no país e abrir em 2019 um negócio em Djerba. Depois de vários anos a trabalhar para cadeias de hotéis em diferentes continentes, um antigo caravanserai com três séculos conquistou-a e transformou-o em restaurante. O nome é Fondouk, palavra local para os caravanserais, que só em Oumt Souk são 25, "mas este é o maior", nota a francesa, que chegou a trabalhar no hotel Reid"s no Funchal e fala português.

"Há muitos anos que acredito no potencial deste país. É um potencial gigantesco, mesmo que por vezes a instabilidade política afete o desenvolvimento. Pode progredir muito sem abandonar a tradição. Aqui mantive a arquitetura tradicional e só acrescentei um teto removível por causa do calor no verão. E aposto na qualidade. Gostava que toda a Tunísia, e em especial Djerba, apostasse na qualidade e na autenticidade, que não se deixasse atrair pelo all inclusive, que não beneficia a população", sublinha, satisfeita com o azul e branco do Fondouk, onde se oferece do melhor da gastronomia tunisina e internacional, e boa doçaria. Não vende bebidas alcoólicas por estar, como restringe a lei, nas vizinhanças de uma mesquita, mas Moureaux diz "que até é melhor assim".

Entre os líderes aguardados para a Cimeira da Francofonia estão Emmanuel Macron e Justin Trudeau. Tal como a maioria dos visitantes, o presidente francês e o primeiro-ministro canadiano vão chegar de avião (a ilha fica a duas horas e meia de várias capitais europeias, a três de Lisboa com os charters de verão). Mas uma experiência que recomendo é entrar em Djerba, depois de uma ida à região do Dahar, pela antiga calçada romana que atravessa sete quilómetros de mar. Está a ser alargada para quatro vias e hoje parece uma obra simples de engenharia, mas há dois mil anos foi um feito. A localidade em Djerba onde começa (ou acaba) essa espécie de ponte chama-se Al Qantara. Sim, reconheceu a palavra? É "ponte" em árabe.

leonidio.ferreira@dn.pt
DN viajou a convite da embaixada da Tunísia

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