Divertimentos e divagações de uma primeira-dama
Cada vez parece mais evidente que nunca ficará saldada a "conta" de Carla Gilberta Bruni Tedeschi, também Sarkozy, a quem muitos teimam em cobrar os "custos da conjugalidade". Por outras palavras, torna-se claro que, sem o seu matrimónio com um político controverso, ex-presidente de França, a antiga manequim ganharia direito a uma bitola de análise muito mais benevolente do que aquela que se lhe aplica a cada passo. Como se, em pleno século XXI, não houvesse ainda discernimento e equilíbrio para separar as águas entre o percurso artístico e as opções políticas, sobretudo as assumidas desde o seu casamento com Nicolas Sarkozy, em 2008.
Há, de resto, uma assinalável e pronunciada mudança de atitude da parte de críticos, divulgadores e media: em 2002, quando se lançou com o disco Quelqu"un M"a Dit, foi considerada uma surpresa, uma revelação, um "brisa de ar fresco" no panorama francês, evocando - através da simplicidade apresentada - os primeiros tempos de Françoise Hardy. Desde que se casou, viraram-lhe as costas e passaram a encostá-la a um grupo leviano, frívolo e inconsequente. Mas quem se der ao trabalho de escutar os álbuns entretanto publicados - e French Touch é o quinto, se descontarmos um disco ao vivo, gravado no Olympia parisiense - constatará que Bruni não mudou de estilo, de abordagem, de parâmetros. Muito menos perdeu aquela voz rouca e impressiva com que conquistou simpatias e devoções. De uma vez por todas, o problema da cantora e autora mora nisto: ganhou um marido que não cai nas graças de muitos - e paga o imposto respetivo.
Verdade seja dita, Carla Bruni não parece disposta a facilitar nem dá passos em direção a qualquer espécie de compromisso. Há quatro anos, quando lançou Little French Songs, além de uma declaração de amor assolapada ao marido (na canção Mon Raymond), Carla incluiu no alinhamento o tema Le Pingouin, sarcástico para alguém menor, sem maneiras e capaz de se pôr em bicos de pés para fazer notar a respetiva presença. Não demorou a que muitos vissem ali o retrato do então presidente François Hollande, que chegou a comentar o assunto, defendendo que o pinguim até é um "animal simpático"... Quando foi questionada, a autora também jogou à defesa, explicando que a canção não visava ninguém em particular, antes uma categoria de gente... sem categoria. Agora, mesmo num disco de adaptações, descobre-se que Madame Sarkozy continua fiel à sua cara-metade - a inclusão de Stand by Your Man sugere de imediato um renovar de votos, sobretudo depois do desaire de Nicolas Sarkozy, que não conseguiu chegar à candidatura presidencial em 2017.
A escola Nouvelle Vague
Um dos primeiros momentos divertidos na aproximação a French Touch passa precisamente pela escolha das 11 canções que aqui aparecem, moldadas com a ajuda dos arranjos de David Foster para um desfecho que não se afasta do gosto jazzy já antes denunciado pela intérprete, que aflora aqui e ali o prazer que não esconde nas baladas, num primado da elegância e da leveza (não, não é leviandade) sobre o significado e o "embrulho" originais. Reconheça-se que algum talento haverá em cruzar no mesmo disco um clássico de Henry Mancini, Moon River (originalmente cantado com enorme candura por Audrey Hepburn, no filme Boneca de Luxo), com um dos temas que ajudaram a definir a carreira metálica dos AC/DC, Highway to Hell. Ou para juntar outra canção "do cinema" de há muitos anos, Please Don"t Kiss Me, entregue em primeira mão à voz de Rita Hayworth (no filme A Dama de Xangai), com Jimmy Jazz, do reportório dos - sempre - saudosos The Clash. Mas a festa continua, navegando pela country, com um inesperado dueto de Bruni com o veterano Willie Nelson, em Crazy, pela música dita ligeira, com a entrada em cena de The Winner Takes It All, dos Abba, com uma piscadela de olho a Lou Reed, numa "tradução despojada" de Perfect Day em que a voz da protagonista volta a causar aqueles inevitáveis arrepios na espinha, numa leitura (ainda) mais despida da já económica Enjoy the Silence, dos Depeche Mode.
Ainda assim, se fosse absolutamente indispensável - e felizmente não é - uma só canção para apresentar esta nova incursão de Carla Bruni por um recreio a que ela demonstra conhecer bem os cantos e os truques, talvez a mais indicada, como porta-bandeira de todo o álbum, acabasse por ser mesmo Miss You, original dos Rolling Stones, faixa de abertura do notável Some Girls (1978). Lembrar-se-ão os mais velhos e/ou os mais atentos que este foi precisamente o tema que causou alguns amargos de boca a Jagger, Richards & Cª, quando alguns dos acólitos mais radicais quiseram ver aqui uma cedência ao disco sound, ainda por cima passados apenas quatro anos sobre o "juramento" de It"s Only Rock"n Roll (But I Like It). Agora, que virámos quase quatro décadas sobre o primeiro contacto com a canção, esse pormenor deixou definitivamente de contar - fica o puro prazer de uma batida, de um refrão, de um balanço que, bem acompanhado por todo o álbum, convoca imediatamente o percurso de versões que tanta fama e tanto proveito têm rendido aos Nouvelle Vague.
Carla Bruni vai completar 50 anos em dezembro próximo. Aplaudida e reconhecida no meio musical - já ganhou um prémio nos Victoires de La Musique, já escreveu canções para Julien Clerc, já gravou com Michel Legrand, Louis Bertugnac e Angelo Branduardi, já participou de pleno direito em discos de homenagem a Boris Vian, a Georges Brassens e a Renaud -, merece este "intervalo" feliz, em que parece ter-se divertido tanto quanto nos diverte a nós. Mesmo aos que, por algum preceito ideológico e formal, a ouvirem apenas às escondidas. O "toque" da Madame pode não ser o de Midas, mas nunca será um toca-e-foge. E isso é meio caminho, na música pop.