Homens a tentar falar e a não conseguir, homens a chorar convulsivamente, homens a mastigar segundos inteiros de silêncio em directo: foi este o tema dominante da semana televisiva, pelo menos para quem tentou sintonizar canais argentinos. Noutros países, a coisa procedeu de maneiras menos operáticas, mas igualmente reverentes, com procissões de convidados a chegar aos estúdios munidos da matéria-prima dos obituários, prontos para explicar porque é que alguém que deixou de estar vivo na verdade não morreu. Muitos destes comentários incluíram a palavra "Deus"..Quem optou por se refugiar no YouTube encontrou horas e horas de alternativas à sua espera: a opção estruturada do documentário legendado, o conforto silencioso da compilação de 20 minutos, ou a tentação do jogo completo - de preferência um dos menos notórios, um qualquer Nápoles-Pisa ou Nápoles-Cagliari de 85 ou 88, na esperança não apenas de rever num contexto novo os símbolos familiares - o barril torácico, os ombros puxados para trás, aquele cabelo inconfundível, a meio caminho entre o capacete de astronauta e a peruca Playmobil - mas também, talvez, de encontrar uma finta secreta, ainda por estrear nas compilações. Muitos destes vídeos incluem a palavra "Deus" no título..O documentário que a HBO estreou no ano passado ajuda a recordar que esta conversa sobre "divindade" atingiu o pico em Nápoles, depois do primeiro título. Maradona passou a mover-se num contexto permanente de hipervisibilidade, que reorganizava imediatamente qualquer situação para o colocar no centro das atenções. Isto é algo comum no seu nível de celebridade, mas Nápoles conseguiu transcender esse nível. Uma enfermeira num laboratório de análises levou um frasco com o seu sangue para a Igreja de São Genaro. Num programa de TV, a apresentadora informou-o que para todos os napolitanos ele era agora tão ou mais importante do que Deus. Maradona encolheu os ombros e explicou pacientemente (e sem pinga de ironia): "Bem, a meu ver há algumas diferenças..." Foram os anos - e a cidade - em que uma breve saída à rua formava uma multidão instantânea de três mil pessoas, em que Maradona ia à discoteca para dançar ao som de músicas sobre si próprio e cantar refrões que consistiam no seu nome..Sempre houve uma condescendência implícita no tipo de idolatria que inspirou, tratado como criança e divindade em simultâneo, como se os seus actos fossem sempre dignos de atenção e as consequências nunca tivessem a menor importância, para si ou para terceiros. A mescla dos dois epítetos - Deus e Pibe - intensificou-se após o fim de carreira de jogador e acompanhou a sua migração para os dois universos paralelos: o cargo oficioso de lenda vida e as primeiras páginas dos tablóides. Ídolos que se tornam lunáticos públicos acabam sempre por cumprir um impulso subterrâneo em muitos adeptos de futebol, que é menos perverso do que inconsciente, e que se manifesta na maneira como a reacção a certas figuras - Mike Tyson, Balotelli, o Maradona das últimas décadas - encolhe a distância entre troça e celebração. Pelé passou a reforma a representar dócil e compenetradamente o papel de mascote corporativa - a inaugurar lojas no Dubai ou a promover esquemas de investimento nas ilhas Caimão..Maradona ocupou o mesmo período a produzir manchetes cada vez mais berrantes: enfartes, intoxicações, atropelamentos a jornalistas, processos de paternidade. A sua meteórica aparição nas bancadas do Mundial de 2018 (piretes, olhos esbugalhados) foi rapidamente traduzida em memes. Como um Deus, era inescapável. Como uma criança, não tinha grande importância. As reputações e o talento pertencem ao domínio público. Tal como foi enquanto jogador, o Maradona das manchetes era refém de uma vontade colectiva em subordiná-lo às histórias mais apetecíveis..A sua "história" - no sentido da distorção selectiva e parcial dos emblemas do talento, manipulados para atingir certos alvos narrativos (promessa, desaire, vingança, redenção, queda, etc.) - é invulgarmente apetecível, e talvez até venha a ter mais influência na solidez do seu lugar em futuros panteões do que qualquer (francamente desnecessária) avaliação crítica rigorosa das suas obras completas. Muitos dos adjectivos que lhe foram aplicados nos últimos três dias não descrevem uma coisa que aconteceu, mas apenas o efeito de alguém a ter testemunhado..Mesmo após várias horas de youtubes, a revelação mais consequente que ocorreu ao autor do presente texto foi a de que provavelmente nenhum ser humano foi tantas vezes filmado no momento em que estava quase a cair, mas depois não caiu. Os seus melhores momentos não são instantes de fluidez, mas de algo mais precário e provisório: em que o equilíbrio está no ponto-limite, o relvado é péssimo, a bola está demasiado elevada, o corpo demasiado torcido, os adversários demasiado ali à frente - e depois todas estas fricções são reconfiguradas e um homem muito pequeno sai na posse da bola..Quem gosta de futebol o suficiente para se preocupar com a continuidade temporal destas coisas - com mitos, com histórias, com hierarquias - tem uma tendência natural para preferir o talento que é inconsciente dos seus efeitos, o génio que não precisa de se esforçar. Trajectórias como a de Maradona, e a nossa respectiva reacção às mesmas, mostram que a linha entre sprezzatura e autodestruição não é protegida pela mitificação retrospectiva; está ali, à mercê das circunstâncias..Os temperamentos inclinados para aplicar a frase "isto não é futebol" a tudo o que não venha ensopado em propaganda sentimental sobre a pura alegria do jogo vão sentir o impulso para separar os vários elementos da história de Maradona, rasurando a influência de uns nos outros, ou romantizando as respectivas contradições e paradoxos. Mas não há nada de contraditório em nada disto, a não ser para quem leva demasiado à letra o significado de "história", ou quem exige demasiado da função que desempenham. O espectro de emoções em jogo no amor pelo futebol vai muito para lá da alegria; inclui a histeria, a irritação, a vergonha, o alívio e a crueldade..Maradona sentiu todas estas coisas enquanto jogava e fez que outros as sentissem ao vê-lo jogar. Neste sentido, é o ícone mais representativo da modalidade. A função de histórias como a sua, quando finalmente depositamos o fardo retrospectivo no futuro, é diminuir a distância entre as coisas como são e as coisas como deveriam ser; mas essa operação é estética e não moral. Ao nível mais elementar, é fazer-nos ter vontade de olhar para algo que não deveria acontecer: um homem que não devia estar tão perto do chão sem cair; uma bola que não devia estar tão perdida no ar sem nunca escapar à sua vontade..Escreve de acordo com a antiga ortografia
Homens a tentar falar e a não conseguir, homens a chorar convulsivamente, homens a mastigar segundos inteiros de silêncio em directo: foi este o tema dominante da semana televisiva, pelo menos para quem tentou sintonizar canais argentinos. Noutros países, a coisa procedeu de maneiras menos operáticas, mas igualmente reverentes, com procissões de convidados a chegar aos estúdios munidos da matéria-prima dos obituários, prontos para explicar porque é que alguém que deixou de estar vivo na verdade não morreu. Muitos destes comentários incluíram a palavra "Deus"..Quem optou por se refugiar no YouTube encontrou horas e horas de alternativas à sua espera: a opção estruturada do documentário legendado, o conforto silencioso da compilação de 20 minutos, ou a tentação do jogo completo - de preferência um dos menos notórios, um qualquer Nápoles-Pisa ou Nápoles-Cagliari de 85 ou 88, na esperança não apenas de rever num contexto novo os símbolos familiares - o barril torácico, os ombros puxados para trás, aquele cabelo inconfundível, a meio caminho entre o capacete de astronauta e a peruca Playmobil - mas também, talvez, de encontrar uma finta secreta, ainda por estrear nas compilações. Muitos destes vídeos incluem a palavra "Deus" no título..O documentário que a HBO estreou no ano passado ajuda a recordar que esta conversa sobre "divindade" atingiu o pico em Nápoles, depois do primeiro título. Maradona passou a mover-se num contexto permanente de hipervisibilidade, que reorganizava imediatamente qualquer situação para o colocar no centro das atenções. Isto é algo comum no seu nível de celebridade, mas Nápoles conseguiu transcender esse nível. Uma enfermeira num laboratório de análises levou um frasco com o seu sangue para a Igreja de São Genaro. Num programa de TV, a apresentadora informou-o que para todos os napolitanos ele era agora tão ou mais importante do que Deus. Maradona encolheu os ombros e explicou pacientemente (e sem pinga de ironia): "Bem, a meu ver há algumas diferenças..." Foram os anos - e a cidade - em que uma breve saída à rua formava uma multidão instantânea de três mil pessoas, em que Maradona ia à discoteca para dançar ao som de músicas sobre si próprio e cantar refrões que consistiam no seu nome..Sempre houve uma condescendência implícita no tipo de idolatria que inspirou, tratado como criança e divindade em simultâneo, como se os seus actos fossem sempre dignos de atenção e as consequências nunca tivessem a menor importância, para si ou para terceiros. A mescla dos dois epítetos - Deus e Pibe - intensificou-se após o fim de carreira de jogador e acompanhou a sua migração para os dois universos paralelos: o cargo oficioso de lenda vida e as primeiras páginas dos tablóides. Ídolos que se tornam lunáticos públicos acabam sempre por cumprir um impulso subterrâneo em muitos adeptos de futebol, que é menos perverso do que inconsciente, e que se manifesta na maneira como a reacção a certas figuras - Mike Tyson, Balotelli, o Maradona das últimas décadas - encolhe a distância entre troça e celebração. Pelé passou a reforma a representar dócil e compenetradamente o papel de mascote corporativa - a inaugurar lojas no Dubai ou a promover esquemas de investimento nas ilhas Caimão..Maradona ocupou o mesmo período a produzir manchetes cada vez mais berrantes: enfartes, intoxicações, atropelamentos a jornalistas, processos de paternidade. A sua meteórica aparição nas bancadas do Mundial de 2018 (piretes, olhos esbugalhados) foi rapidamente traduzida em memes. Como um Deus, era inescapável. Como uma criança, não tinha grande importância. As reputações e o talento pertencem ao domínio público. Tal como foi enquanto jogador, o Maradona das manchetes era refém de uma vontade colectiva em subordiná-lo às histórias mais apetecíveis..A sua "história" - no sentido da distorção selectiva e parcial dos emblemas do talento, manipulados para atingir certos alvos narrativos (promessa, desaire, vingança, redenção, queda, etc.) - é invulgarmente apetecível, e talvez até venha a ter mais influência na solidez do seu lugar em futuros panteões do que qualquer (francamente desnecessária) avaliação crítica rigorosa das suas obras completas. Muitos dos adjectivos que lhe foram aplicados nos últimos três dias não descrevem uma coisa que aconteceu, mas apenas o efeito de alguém a ter testemunhado..Mesmo após várias horas de youtubes, a revelação mais consequente que ocorreu ao autor do presente texto foi a de que provavelmente nenhum ser humano foi tantas vezes filmado no momento em que estava quase a cair, mas depois não caiu. Os seus melhores momentos não são instantes de fluidez, mas de algo mais precário e provisório: em que o equilíbrio está no ponto-limite, o relvado é péssimo, a bola está demasiado elevada, o corpo demasiado torcido, os adversários demasiado ali à frente - e depois todas estas fricções são reconfiguradas e um homem muito pequeno sai na posse da bola..Quem gosta de futebol o suficiente para se preocupar com a continuidade temporal destas coisas - com mitos, com histórias, com hierarquias - tem uma tendência natural para preferir o talento que é inconsciente dos seus efeitos, o génio que não precisa de se esforçar. Trajectórias como a de Maradona, e a nossa respectiva reacção às mesmas, mostram que a linha entre sprezzatura e autodestruição não é protegida pela mitificação retrospectiva; está ali, à mercê das circunstâncias..Os temperamentos inclinados para aplicar a frase "isto não é futebol" a tudo o que não venha ensopado em propaganda sentimental sobre a pura alegria do jogo vão sentir o impulso para separar os vários elementos da história de Maradona, rasurando a influência de uns nos outros, ou romantizando as respectivas contradições e paradoxos. Mas não há nada de contraditório em nada disto, a não ser para quem leva demasiado à letra o significado de "história", ou quem exige demasiado da função que desempenham. O espectro de emoções em jogo no amor pelo futebol vai muito para lá da alegria; inclui a histeria, a irritação, a vergonha, o alívio e a crueldade..Maradona sentiu todas estas coisas enquanto jogava e fez que outros as sentissem ao vê-lo jogar. Neste sentido, é o ícone mais representativo da modalidade. A função de histórias como a sua, quando finalmente depositamos o fardo retrospectivo no futuro, é diminuir a distância entre as coisas como são e as coisas como deveriam ser; mas essa operação é estética e não moral. Ao nível mais elementar, é fazer-nos ter vontade de olhar para algo que não deveria acontecer: um homem que não devia estar tão perto do chão sem cair; uma bola que não devia estar tão perdida no ar sem nunca escapar à sua vontade..Escreve de acordo com a antiga ortografia