"A Rússia hoje não procura realmente o apaziguamento. Violou as fronteiras europeias"

Em Portugal no dia 5 para um seminário na Gulbenkian com o ministro da Defesa português, João Gomes Cravinho, a ministra das Forças Armadas francesas, Florence Parly, responde às perguntas do DN sobre o exército europeu, os coletes amarelos, o terrorismo ou os ciberataques.
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A saída do Reino Unido da União Europeia deixa a França como única potência nuclear da UE. É um reforço da posição do país ou sobretudo mais responsabilidade?
O Reino Unido sai da União Europeia mas as ilhas britânicas não vão deixar a Europa. São e serão parceiros importantes em matéria de segurança. A França, por sua parte, continuará a incitar os parceiros da UE a assumirem cada vez mais as suas responsabilidades nesta matéria. Somos os primeiros a seguir este princípio, com operações contra o terrorismo em África e no Oriente. O mesmo se passa com Portugal, um importante parceiro com quem cooperamos.

Hoje o nuclear é mais um símbolo obrigatório de potência ou uma força de dissuasão?
A doutrina nuclear francesa é decidida pelo presidente da República. A dissuasão não é um símbolo mas um pilar da nossa defesa nacional. A nossa força de dissuasão nuclear é estritamente defensiva, vocacionada para garantir a proteção da nação em circunstâncias extremas de legítima defesa.

A ideia de um exército europeu - Initiative Européenne d"Intervention (IEI) - defendida pelo presidente Emmanuel Macron é a única resposta que a Europa pode dar às ameaças à sua segurança?
Não pode ser descurado o contexto estratégico: há ameaças mais fortes que ignoram as fronteiras. Vejam o terrorismo ou os ciberataques: qualquer um pode ser alvo. Devemos trabalhar juntos se quisermos defender-nos eficazmente. As palavras do presidente a respeito do exército europeu definiam uma imagem forte, para vislumbrarmos o rumo. Isto significa que devemos cooperar mais para desenvolver uma cultura estratégica comum. Esta é a ideia inicial da IEI, que não é um exército europeu. Trata-se da iniciativa de dez países, entre os quais Portugal, determinados e capazes política e militarmente, que decidem preparar-se juntos para enfrentar as possíveis ameaças. Mas não é a única resposta possível por parte da Europa. Nestes dois últimos anos, conseguimos iniciar várias ações. Lançámos o Fundo Europeu de Defesa que poderá investir diretamente em projetos de defesa inovadores. Pela primeira vez, verbas comunitárias irão financiar projetos de capacidades militares e de investigação na área da defesa! O mesmo vale para a cooperação estruturada permanente: há um ano, quando arrancou, ninguém teria apostado nessa cooperação. Ora, permitiu lançar 34 projetos de parceria, alguns deles muitos ambiciosos, como a modernização do helicóptero Tigre ou os novos programas de armamento antitanque.

O presidente Trump viu essa ideia como um desafio aos EUA. Hoje a América é uma potencial ameaça à Europa?
Julgo muito perigoso referir o país que ajudou a salvar a Europa em 1917 e em 1944 como uma ameaça. Os americanos são os nossos amigos e aliados. E quando nos dizem "ajam por conta própria, façam mais", têm razão. Os europeus ficaram demasiado tempo como os passageiros clandestinos da sua própria segurança. As nossas despesas em defesa devem alcançar 2% do PIB, e devemo-nos organizar para suportar sozinhos, se necessário for.

E a Rússia?
Procuramos ter uma relação equilibrada com a Rússia. É um grande país da nossa vizinhança, com o qual partilhámos a nossa sorte no início da Primeira Guerra Mundial e no final da Segunda. No entanto, a Rússia hoje não procura realmente o apaziguamento. Violou as fronteiras europeias, na Ucrânia. Não respeita praticamente nenhum dos acordos de controlo de armamentos por ela assinados, sendo a mais recente das violações a do Tratado FNI [Tratado de Forças Nucleares de Alcance Intermediário]. Apoia regimes que utilizam a arma química - arma que os seus agentes utilizaram no continente europeu. A Rússia conduz manobras de influência desestabilizantes no continente europeu e até em África. Não podemos ser ingénuos. A Europa deve proteger-se. Mas, apesar de tudo, é preciso discutir com a Rússia, e é isto que o presidente Macron procura fazer. É importante para resolver crises como a da Síria e para encontrar um bom modus vivendi no continente que partilhamos.

França foi alvo de vários atentados. O Daesh, mesmo enfraquecido, é uma ameaça forte?
O território do Califado está em vias de ser totalmente reconquistado no Oriente. O que não significa que o Daesh tenha desaparecido. Mesmo clandestino, continua muito perigoso. Por isso, devemos olhar para além das operações no nordeste da Síria, encontrar maneiras de estabilizar estes territórios e zelar para que sejam bem governados. Não esqueçamos que foi uma profunda crise de governança no Iraque e na Síria que originou o Daesh em 2013, quando se julgava que a Al-Qaeda estava derrotada. Devemos fazer tudo para evitar que, vencido o Daesh, as falhas da governança em 2019 resultem na emergência de um Daesh 2.0.

Hoje os ciberataques são o grande desafio para as Forças Armadas?
Sim, a ciberameaça é uma grande preocupação, que enfrentamos sem ingenuidade. Os sistemas de armamentos modernos são informatizados e cada vez mais conectados; são potencialmente vulneráveis a esta ameaça. Diariamente, detetamos dois incidentes de segurança nas redes do ministério francês das Forças Armadas, sendo certo que alguns deles são ataques específicos. A França implementou um sistema sólido de ciberdefesa, que terá mais de 4000 cibercombatentes até 2025. Pretendemos também utilizar a ciberarma de maneira ofensiva no âmbito de operações militares. Para tal, adotamos um enquadramento claro, que respeita os nossos compromissos internacionais.

A França tem forte presença militar na República Centro-Africana, onde estão militares portugueses. Este apoio e cooperação de outros países europeus é essencial?
Com certeza. A Europa está empenhada na RCA, nomeadamente com a missão de formação EUTM RCA. Como é o caso para qualquer missão europeia, é preciso um apoio forte dos Estados para que a missão tenha os recursos, tanto humanos como materiais, para cumprir a sua missão. É imperativo que os europeus permaneçam mobilizados, por três razões. Antes de mais, pela credibilidade da UE. Por outro lado, não haverá uma estabilidade duradoura na RCA se não apoiarmos até ao fim a reinstalação das forças armadas centro-africanas em todo o território, o que tornaria vãos os esforços já envidados. Por fim, se não o fizermos, estaremos a abrir a porta a outros atores, talvez mais preocupados em defender interesses particulares do que os interesses da RCA. Por estas razões, a França continua a apoiar a atuação da Europa, mas também da ONU na RCA. Por isso, estamos também tão gratos a Portugal pelo papel particularmente eficiente desempenhado pelas suas forças naquele país.

RCA, Mali, Chade. O envolvimento militar da França em África é uma afirmação da influência do país naquele continente?
A França possui laços históricos, políticos, económicos, mas também de amizade fortes com muitos países africanos. São estes laços que levaram alguns destes países, confrontados com uma grave crise, a solicitar o nosso apoio. Respondemos positivamente com a operação Serval, no Mali, ou com a operação Sangaris na RCA, porque considerámos que era responsabilidade nossa, mas também porque julgámos que era importante para a nossa própria segurança. Se não tivéssemos lançado a operação Serval, o Mali teria provavelmente caído nas mãos dos jihadistas, com consequências gravíssimas para a segurança da Europa. Contudo, acreditamos que as únicas soluções sustentáveis são as africanas: por isso, passada a reação imediata à crise, a nossa prioridade é ajudar os africanos a desenvolverem os recursos para uma resposta autónoma à ameaça. Hoje, Barkhane não se limita a atacar os grupos terroristas. Treina os soldados dos cinco países do Sahel e combate ao seu lado. O objetivo é fazer que, amanhã, estas forças armadas sejam capazes de enfrentar sozinhas a ameaça terrorista.

Falou-se no recurso às Forças Armadas em França durante os protestos dos coletes amarelos. Deviam ter intervindo?
A manutenção da ordem pública não faz parte, de todo, das missões das Forças Armadas francesas. O papel das Forças Armadas é proteger o território nacional, lutar contra o terrorismo, em França e noutros lugares, defender a soberania nacional e os interesses vitais da nação. Os militares não são formados, nem treinados, nem equipados, para manter a ordem. A operação Sentinelle, que muitos portugueses talvez tenham visto quando de uma visita a Paris, frente à Torre Eiffel ou ao Louvre, por exemplo, é uma operação de combate ao terrorismo, não de manutenção da ordem.

Há cada vez mais mulheres nas Forças Armadas e até ministras da Defesa, mas é um mundo muito masculino. Alguma vez se sentiu discriminada por ser mulher?
As Forças Armadas são tradicionalmente um mundo muito masculino, mas são ao mesmo tempo uma instituição que respeita os chefes, sejam ministros ou generais, sejam homens ou mulheres. Não me recordo de ter sido alvo de comentários ou comportamentos a contestar a minha legitimidade na chefia deste ministério por causa do meu género. Na realidade, as Forças Armadas são muito mais modernas e abertas do que se costuma pensar: há um número crescente de mulheres a alistar-se e a ocupar cargos de responsabilidade. A França possui o quarto exército mais feminizado do mundo e estou a preparar, neste momento, um "plano de inclusão" que intensificará esta tendência nos anos vindouros.

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