"Devemos continuar a poupar água, mas agora não há nada que preocupe"

Ministro do Ambiente lidera a vasta comitiva portuguesa no 8.º Fórum Mundial da Água, que começa hoje em Brasília. Em entrevista ao DN João Matos Fernandes faz um ponto da situação da água em Portugal
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Especialistas e governantes de todo o mundo juntam-se em Brasília à volta do uso racional e sustentável da água. No 8.º Fórum Mundial da Água, Portugal apresenta-se com uma responsabilidade acrescida, uma vez que foi o escolhido para representar 52 países europeus e liderar um trabalho sobre a situação dos recursos hídricos neste continente. O ministro do Ambiente, João Matos Fernandes pretende aproveitar o Fórum Mundial da Água para realçar o "ótimo trabalho" feito por Portugal neste setor e abrir portas a novos negócios para as empresas nacionais. Na delegação portuguesa, com cerca de 70 elementos, estão representantes políticos, além do ministro, os secretários de Estado do Ambiente, Carlos Martins, e dos Negócios Estrangeiros e Cooperação, Teresa Ribeiro, deputados e autarcas, mas também várias empresas, como a Águas de Portugal, e a Entidade Reguladora dos Serviços de Água e Resíduos (ERSAR). No Fórum, que pela primeira vez se realiza num país de língua portuguesa, João Matos Fernandes terá oportunidade para encontrar com outros governantes como a ministra espanhola que tutela o Ambiente, Isabel Garcia Tejerina, com quem irá analisar o protocolo entre os dois países relacionado com os projetos que podem ter impactos ambientais transfronteiriços.

O que é que Portugal leva a este Fórum Mundial da Água, também enquanto responsável para liderar o processo da região Europa?

Portugal vai poder mostrar-se como um país com grande capacidade técnica e institucional, seja na gestão dos recursos hídricos, seja na gestão dos sistemas urbanos de água. Temos um mundo profundamente desigual de acesso à água. Dois mil milhões de habitantes, mais de um terço da população da Terra, não tem acesso a água potável, ou pela escassez e porque paralelamente existem regiões onde até existe disponibilidade hídrica, como na África Subsariana, mas onde os sistemas são muito frágeis e não há capacidade de tratar a água. Meio milhão de pessoas morrem no mundo por doenças que provocam diarreia e desidratação por falta de acesso à água potável. Portugal tem um caminho assinalável e reconhecido internacionalmente na gestão do ciclo urbano da água.

Em que é que Portugal se destaca?

Dou exemplos claros: nos últimos 20 anos passámos de 50% de água segura na torneira para 98,9%. Podemos beber água da torneira em qualquer parte do país. Um outro exemplo, talvez figurativo mas que representa o esforço que tem vindo a ser feito no tratamento dos esgotos urbanos, foi termos passado de 62 praias com bandeira azul para 320. Para fazermos este caminho foi feito um investimento de 10 mil milhões de euros ao longo de 20 anos. Portugal vai poder mostrar-se como um país que tem feito um ótimo trabalho neste domínio, e o reconhecimento justifica o facto de termos sido escolhidos no espaço europeu de 52 países para conduzir o trabalho sobre a água para toda a Europa.

E quais as conclusões desse relatório que vai apresentar em Brasília?

Várias coisas. Esse relatório tem uma componente de auscultação e diria que o comum dos líderes europeus está de acordo com a sensibilidade das pessoas de que os três maiores riscos para a economia e o desenvolvimento dos mercados são os riscos ambientais, fundado na qualidade dos recursos hídricos, por um lado, nas alterações climáticas, por outro, e na escassez de bens materiais que obriga à existência de uma economia circular.

Que objetivos tem para este Fórum?

Os objetivos são sempre difíceis de quantificar, mais ainda quando há aqui empresas que vão à procura de contactos para negócios. O meu objetivo é, em primeiro lugar, estar à altura do desafio que foi lançado a Portugal... O pavilhão de Portugal está à frente do pavilhão do Conselho Nacional da Água, é um espaço de atividades onde irão acontecer seminários, mostras, painéis de discussão, naturalmente todos em torno da água, muito pensados a partir de Portugal, mas que não são pensados para Portugal. O segundo objetivo é sair do Brasil deixando claro que Portugal, mesmo sendo um dos país que no contexto mundial tem pouca água, conseguiu, no ano que passou, fazer face à escassez, à seca, graças às infraestruturas que tem e à capacidade de gestão que permitiu que a água não faltasse na torneira de ninguém.

Há muitas empresas na comitiva. A procura de novos negócios está inerente a esta iniciativa?

É natural que exista a vertente de negócio. Há muitas empresas de estilos diferentes que vão poder mostrar-se, entre elas a empresa que é uma referência, que é uma empresa pública, que são as Águas de Portugal. Vão estar empresas que operam estações de tratamento, outras que constroem equipamento para as estações de tratamento, empresas que desenvolvem plataformas tecnológicas...

Portugal está neste momento a recuperar de uma das maiores secas de sempre. Qual é o ponto da situação?

Nestes últimos 15 dias todas as bacias hidrográficas do país recuperaram água. Das 102 albufeiras que são monitorizadas, no primeiro dia deste mês só cinco tinham uma disponibilidade superior a 80 por cento e neste momento já são 22. Não só as bacias hidrográficas têm mais água como também as albufeiras, nomeadamente aquelas onde se capta superficialmente a água para rega e consumo humano. No entanto, dou o exemplo do Sado, onde a quantidade de água disponível, sendo hoje muito maior do que há 15 dias - tínhamos só 29% do volume nas albufeiras - neste momento tem 47%.

Um valor, ainda assim abaixo do desejado para esta altura do ano...

O valor que deveríamos ter era à volta dos 60%.

E há outros casos?

Sim, por exemplo, Monte da Rocha [concelho de Ourique], que apesar da subida de 8% para 20% nesta quinzena, tem muito menos água do que tinha nesta mesma altura no ano passado.

A chuva das últimas duas semanas está a deixá-lo mais tranquilo para os meses que aí vêm?

Tranquilo é uma expressão com pouco significado para o assunto em causa, mas as coisas estão muitíssimo melhor. Mas a verdade é que Portugal não vai ter mais água do que a que tem, por isso terá que a saber gerir muito bem e isso significa fazer um uso eficiente, ou seja, poupar água. Temos de poupar água. Portanto se hoje temos mais água do que há uma quinzena isso não deve fazer relaxar. E garanto que não estamos a relaxar em nada.

E que está a ser feito por parte do governo?

Os planos que estamos a construir para a seca por bacia hidrográfica vão estar prontos no final do próximo ano; os planos para podermos utilizar os afluentes tratados nas 50 maiores ETAR [estações de tratamento de águas residuais] do país vão estar concluídos este ano; a procura de fontes alternativas para abastecimento e recuperar as velhas que foram desmontadas ou que deixaram de ser usadas quando se construíram os grandes sistemas; estão em andamento todos os projetos de limpeza dos fundos das albufeiras, retirar a matéria orgânica, para melhorar a qualidade da água de forma a que possa ser aproveitada e distribuída para consumo humano.

No final de fevereiro os especialistas diziam que eram precisos dois meses de chuva iguais às médias previstas para março e abril. Como ministro do ambiente, o desejo ainda é de um abril bem chuvoso?

Ainda haverá muita chuva por cair...

É correto afirmar que o cenário de seca e de restrições de água para este verão está ultrapassado?

O que agora posso afirmar é que a norte do Tejo não há nenhum problema neste momento. Devemos continuar a poupar água mas não há nada que preocupe, vai ser um ano normal. A sul do Tejo, particularmente no Sado ainda existem albufeiras onde temos menos água do que aquela que gostaríamos de ter e que é normal ter nesta época do ano.

A integração do Instituto Nacional da Água (INAG) na Agência Portuguesa de Ambiente (APA) tem sido muito criticada por ter retirado eficiência à gestão integrada da água, nomeadamente das bacias hidrográficas. Como vê estas críticas?

Não lhe chamaria tal. Com o desaparecimento do INAG e das ARH (Administração da Região Hidrográfica), perdeu-se capacidade. O modelo que herdei de concentração na APA de todos os setores do ambiente no sentido mais clássico é um modelo que não acrescentou nada nem sequer capacidade de gestão ao sistema. Tínhamos um quadro comunitário de apoio com uma execução próxima de zero e por isso a nossa aposta, do conjunto do governo, não foi a de começarmos a rever leis orgânicas. Agora podemos fazer melhor no futuro e quero deixar desenhado para um governo que suceda a este uma nova arquitetura que valorize mais a gestão dos recursos hídricos.

A Convenção de Albufeira (que regula os caudais dos rios internacionais com Espanha) faz em novembro 20 anos. Qual o balanço deste acordo?

Há um thinktank de especialistas do Mundo que dizem que a Convenção de Albufeira é a melhor convenção na gestão de rios internacionais em países onde há pouca água. Tanto que no Fórum Mundial da Água a minha colega espanhola e eu próprio fomos convidados a apresentar a Convenção de Albufeira num seminário. Foi um salto extraordinário no compromisso de Espanha e Portugal para a gestão dos rios em comum. Podemos ir mais longe? Podemos.

E há vontade dos dois países para ir mais longe?

Dentro do próprio contexto da convenção já estamos a trabalhar nisso, nomeadamente acrescentando as questões da monitorização da água em conjunto, informação que não era partilhada. A parcela que falta completar da convenção é a da responsabilidade portuguesa. Não está completa porque Portugal ainda não definiu qual é o regime de caudais no Guadiana. Sendo o maior reservatório de água do Guadiana em solo português, o Alqueva, Portugal tem mesmo de acelerar este processo, é nossa obrigação honrar o que falta relativamente à Convenção de Albufeira este ano.

Já disse que gostaria de rever os caudais acordados com Espanha no âmbito da convenção, para passarem de semanais a diários. Acredita que vai conseguir?

Isso não está previsto na convenção. Há um rio, o Tejo, onde Portugal tem nele uma muito reduzida capacidade de regularização de caudais - não acontece o mesmo no Douro nem no Guadiana - onde era fundamental termos um regime de caudais mais estável. Mas isso é claramente pós-20 anos, porque obriga a mexer na Convenção de Albufeira, mexida essa que queremos que seja o mais cirúrgica possível porque o Tejo tem hoje menos 25% da água que tinha quando foi feita a convenção. Ir agora discutir caudais com os espanhóis era sair de lá com uma situação pior do que temos hoje. Não é só em Portugal que temos menos água, a situação em Espanha é até mais sensível.

Vai aproveitar o encontro em Brasília com a sua homóloga espanhola para falar da mina de urânio, prevista para Retortillo, a poucas dezenas de quilómetros da fronteira com Portugal? Na Assembleia da República a situação já foi criticada...

Vou aproveitar para termos a reunião que foi pedida por Portugal sobre o acordo que os dois países celebraram para a avaliação de impacto quando há projetos que podem ter impactos transfronteiriços. Há de facto um exemplo demasiado colorido, que é o da mina de urânio, que não ficará à margem desta conversa.

Qual é o ponto de situação da Celtejo (empresa de celulose) e da poluição do Tejo?

A situação neste momento é esta: a qualidade da aágua do Tejo é boa e isso é um grande salto relativamente ao que estava a acontecer. Neste momento temos 14 estações de monitorização diária e repito, a água é boa. Houve um problema de saturação, de incapacidade do próprio Tejo, num ano hidrologicamente difícil, de depurar a carga orgânica e os efluentes que nele eram rejeitados. Usando o princípio da precaução, reduzimos o volume de efluentes da Celtejo em 50%. Logo a seguir registou-se uma melhoria muito sensível: passámos de 1,1 mg de oxigénio para os 5 mg, que é quando a água se pode considerar boa. E depois disso para os 7 e para os 8. No caso de Constância e Abrantes estamos acima dos 10 mg de oxigénio, portanto não há qualquer problema na qualidade da água no Tejo. Essa é uma situação a caminho de normal. Vamos fazer uma nova licença para a Celtejo para mais 10 ETAR, licenças essas que mais do que terem novos plafonds, vão ter de ter plafonds que não são rígidos, serão adaptados à própria situação do rio.

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