"Deve evitar-se a todo o custo substituir trabalhadores a termo por temporários"
A Organização Internacional do Trabalho (OIT) admite falta de dados conclusivos, mas alerta para o risco de a contratação a prazo estar a ser substituída por trabalho temporário no setor automóvel português, fortemente marcado por uma estratégia de redução dos custos salariais em detrimento de aumentos de produtividade, segundo o estudo "Conduzir a mudança: o futuro do trabalho no setor automóvel português". A análise foi encomendada pelo governo e apresentada ontem, num evento que contou com o diretor-geral da OIT, Guy Ryder e a ministra do Trabalho, Ana Mendes Godinho. David Mosler, investigador que liderou e coordenou o estudo, e Maurizio Bussi, vice-diretor regional da OIT para a Europa e Ásia Central, defendem em entrevista realizada por escrito, a necessidade de novos incentivos financeiros ou fiscais que penalizem a precariedade ou premeiem quem contrata de forma permanente. Num setor ameaçado pelas transições digital e ambiental, defendem um mecanismo de lay-off adaptado ao automóvel, mesmo reconhecendo os riscos de cortes salariais e de os custos das empresas serem passados para os contribuintes. Entre o lay-off e maior precariedade, a primeira solução surge "favorável" aos olhos dos responsáveis da agência da ONU.
Este novo relatório da OIT sobre o setor automóvel português sucede a um outro relatório sobre Trabalho Digno apresentado em 2018, e é divulgado pouco depois de o governo ter finalizado a proposta legislativa final da Agenda do Trabalho Digno para rever as leis laborais em 2023. Trará mudanças, por exemplo, aos valores de compensação por cessação de contratos a prazo, adiando subidas no pagamento de horas extraordinárias. Supre as lacunas identificadas em 2018?
Uma vez que o novo pacote legislativo ainda está em discussão, é cedo para ajuizar se resolve as preocupações identificadas no relatório. E somos também realistas quanto ao facto de a resolução de desigualdades criadas pela segmentação do mercado de trabalho entre contratos permanentes e a prazo exigir um processo demorado. Não obstante, houve esforços claramente positivos para resolver esta questão desde o nosso relatório de 2018. Simultaneamente, o relatório sobre o setor automóvel também reconhece a necessidade de haver flexibilidade numa indústria que é global na sua natureza e que recorre a modelos de negócio que exigem flexibilidade. Por esse motivo, sublinhamos a necessidade de ser negociada entre parceiros sociais em pé de igualdade a forma e modelo que essa flexibilidade deve assumir. A legislação, neste aspeto, contribui para garantir esse nivelamento, promovendo o diálogo social a nível setorial, ao invés de a um nível de empresa.
Este novo relatório identifica a supressão salarial e o baixo investimento como os dois principais problemas que a indústria automóvel enfrenta em Portugal. O peso dos custos com pessoal tem vindo a cair, assinala, em parte devido ao facto de o trabalho suplementar se ter tornado mais barato. É a principal causa? Que outros fatores estão em jogo?
As reduções no pagamento de horas extraordinárias são um dos motivos, mas, mais fundamentalmente, a perda de peso dos salários nos custos reflete a estratégia de expansão adotada em grande parte do setor. O setor expandiu-se particularmente entre jovens trabalhadores e praticamente metade das novas contratações são a prazo. Estes trabalhadores têm salários mais baixos, e oportunidades reduzidas de progressão na carreira. A composição da força de trabalho no setor está também fortemente inclinada para profissões de baixas qualificações, reflexo do foco na montagem e outros segmentos de baixo valor da produção automóvel. E é aqui que se estabelece a relação entre supressão salarial e baixo investimento - destaca a redução de custos em detrimento de um investimento em ganhos de produtividade enquanto estratégia preferida. E a pressão dos custos do trabalho, conjugada com pressão para aumentar a flexibilidade, é um claro fator por trás da subida do uso da contratação a prazo.
O relatório sugere que deveria haver maiores limitações aos bancos de horas. Um dos exemplos dados é o da Finlândia, país onde os trabalhadores devem usar o período de descanso acumulado num prazo de seis meses ou receber o pagamento em dinheiro quando é o empregador a decidir quando as folgas são gozadas. Seria uma solução para Portugal?
O relatório sublinha, de facto, a necessidade de haver regulamentação rigorosa dos bancos de horas e a importância de dar aos trabalhadores a oportunidade de se pronunciarem em alterações aos seus horários. A Finlândia aprovou, de que tenhamos conhecimento, uma das leis mais completas sobre este assunto até aqui, e o nosso enfoque não está necessariamente nas suas provisões individuais, mas na abordagem holística aos horários de trabalho adotada nesta legislação. Naturalmente, a legislação é específica ao contexto, portanto, a recomendação não é para que se transponha a regulamentação finlandesa para o contexto português, mas antes para que se veja esta abordagem e princípios subjacentes como base a considerar. O relatório também salienta preocupações com a legislação adotada na Hungria, que foi em direção oposta ao permitir que os empregadores imponham vastas horas suplementares sem regras claras quanto a quando serão compensadas. Quando se discutem os bancos de horas é importante sublinhar por que motivo existem em primeira análise restrições aos horários de trabalho. Naturalmente, para garantir aos trabalhadores um bom equilíbrio entre o trabalho e a vida pessoal, mas também para os proteger dos efeitos físicos e mentais adversos do excesso de trabalho. É por isso que a recuperação das horas deve ser a principal via e é por isso que é importante assegurar períodos de descanso adequados, logo que possível após períodos prolongados de trabalho suplementar.
O relatório sugere que o setor beneficiaria de mecanismos de lay-off, enquanto alternativa à contratação a prazo. Os trabalhadores arriscariam cortes de salário?
Depende da forma como o mecanismo seja implementado. Naturalmente, há um risco, e é importante implementar as salvaguardas adequadas, tanto para proteger os rendimentos dos trabalhadores como para evitar que o risco empresarial seja socializado, enquanto os lucros permanecem privados. Porém, nas medidas para a retoma progressiva propostas e parcialmente implementadas pelo governo, há orientações claras para a substituição do mecanismo de lay-off simplificado temporário implementado durante a pandemia. Os principais pressupostos são, um, a convergência progressiva da remuneração ao trabalhador com 100% do seu salário; em segundo lugar, o pagamento das horas trabalhadas pela empresa; terceiro, a redução progressiva das isenções de contribuições para a Segurança Social por parte do empregador e compensação das perdas de receita da Segurança Social pelo Orçamento do Estado. Há indícios de que o setor automóvel usou este mecanismo para lá dos confinamentos imediatos impostos nas fases iniciais da pandemia. É muito provável que seja necessária uma avaliação mais pormenorizada do mecanismo para chegar a uma conclusão final e qualquer solução deve ser procurada através de diálogo social adequado. Ainda assim, perante a escolha entre flexibilidade na forma de segmentação do mercado de trabalho e flexibilidade através de mecanismos de redução de períodos de trabalho, a proteção do emprego através dos últimos parece favorável.
O relatório também aborda a questão de se aumentar as contribuições sociais de empregadores que recorrem à contratação a prazo. É uma medida que, apesar de legislada em 2019, ainda não é efetiva - e não o será, pelo menos, antes de 2024, devido ao adiamento da regulamentação necessária. É avisado agir tão lentamente?
Esta é uma decisão que, em última análise, cabe aos legisladores e não à OIT. Quaisquer alterações legislativas têm uma grande variedade de impactos nos trabalhadores, empregadores, padrões de investimento e receitas públicas, e cabe aos processos democráticos tais como o da legislação parlamentar e ao diálogo social encontrarem o equilíbrio certo.
O relatório vê os atuais incentivos pecuniários à contratação permanente como insuficientes. Que mais deveria o governo fazer?
Mais uma vez, os detalhes devem em última análise ser decididos através de consultas com os parceiros sociais e do processo legislativo, mas é claro que o recurso à contratação a prazo apenas pode ser diminuído se houver para as empresas uma diferença de custos fundamental. Se esta diferença é aumentada através de limites mais rigorosos no uso de contratos a prazo, maiores contribuições sobre esses contratos, ou incentivos fiscais à contratação permanente, ou uma mistura destas abordagens, é algo que permanece por observar. Sendo claros, as empresas agem normalmente com os resultados em vista. Ou seja, procurarão as soluções mais eficazes do ponto de vista dos custos para preencher as necessidades de competências, flexibilidade e mão de obra. Durante a nossa investigação também constatámos que há um crescente risco de a diminuição do uso de contratos a prazo ocorrer por via de um aumento da utilização de agências de trabalho temporário. Naturalmente, deve evitar-se a todo o custo substituir trabalhadores com contrato a termo por trabalhadores temporários, porque os últimos normalmente são ainda mais desprovidos de garantias básicas de trabalho digno. Infelizmente, temos poucos dados para avaliar a dimensão deste problema, o que também sublinhamos no relatório, mas os indícios que obtivemos nas nossas entrevistas sugerem que tem havido uma viragem substancial para as agências de trabalho temporário.
A falta de informação sobre trabalho temporário prejudicou os resultados do estudo. O problema está a ser resolvido?
Não diria que prejudicou os resultados do estudo. Os resultados que detetámos nos dados existentes e a nossa análise foram corroborados através de entrevistas com os intervenientes do setor, assim como com a contraparte governamental. Mas há o risco de não se medir aquilo que se quer mudar. A segmentação do mercado de trabalho continua a ser um problema na economia portuguesa. Contudo, se houver maior sucesso na limitação da contratação a prazo, mas simultaneamente aumentar o uso de trabalho temporário e trabalho em plataformas, isso pode não estar a melhorar a situação. É por isso que o relatório pede melhor informação para poder observar os desafios ao trabalho digno associados a outras formas de trabalho precário.
Há ainda insuficiências na formação, sendo que o setor automóvel surge em grande necessidade de converter os seus trabalhadores menos qualificados. Como poderão ser facilitados a formação no posto de trabalho e o prosseguimento de estudos?
A resposta exige uma introdução para referir que o relatório não é um estudo sobre o sistema educativo, portanto as nossas recomendações são limitadas na sua pormenorização. Os trabalhadores deste setor são na verdade sujeitos a mais formação do que em muitos outros setores, mas há diferenças claras entre aqueles que estão em grandes empresas e os que estão em pequenas empresas, e entre trabalhadores permanentes e trabalhadores não permanentes. Portanto, parte da resolução do problema está nas condições de trabalho, para incentivar os empregadores a investirem de forma igual em todos os trabalhadores através de iniciativas de formação, reconversão e atualização. Isto não serve apenas para permitir que mais trabalhadores tenham acesso a formação. As condições de trabalho (particularmente, os salários) foram identificadas como um dos motivos pelos quais demasiados trabalhadores altamente qualificados são perdidos para concorrentes noutros países e noutras indústrias. Outro aspeto é a coerência política. O relatório pede políticas industriais integradas e coerentes, parte das quais deve incluir sistemas de formação associados que permitam alcançar a melhoria na cadeia de valor que se pretende. É crucial permitir a cada trabalhador individualmente, independentemente do tipo de contrato de trabalho que tem, e àqueles que não estão atualmente no emprego acederem a educação mais relevante para melhorarem as perspetivas de emprego. Para isso, o encargo financeiro da formação contínua deve ser justamente partilhado. A formação no posto de trabalho também terá um papel cada vez mais importante e é sobretudo responsabilidade dos empregadores investirem na formação do seu pessoal, tanto dentro da fábrica como no exterior. Além disso, os empregadores precisam de continuar a investir em ter ligações mais fortes com as instituições públicas de educação. O relatório sublinha algumas iniciativas, mas estas deviam ser mais alargadas.
O setor também precisará de mulheres, cada vez mais. Mas parece estar a afastá-las com salários baixos e condições desiguais.
Encontrámos de facto uma forte segregação entre profissões, o que é uma falha crítica, uma vez as mudanças tecnológicas minimizaram a necessidade de força física que antes prejudicava as mulheres. Portanto, ainda há um fator cultural de discriminação num setor tecnológico. Mas há outros aspetos das condições de trabalho, incluindo a segmentação de contratos e desigualdade salarial. Um desafio crucial para muitas mulheres, que ainda carregam o fardo das responsabilidades familiares, é a prevalência do trabalho por turnos e os horários imprevisíveis.
Os trabalhadores mais velhos que correm o risco de ficar para trás e devem ter a oportunidade de manter trabalho em part-time e receber algum tipo de apoio pecuniário, em vez de anteciparem a aposentação, segundo o relatório. Que tipo de apoio e quem deve financiá-lo?
Manter os trabalhadores mais velhos na força de trabalho não é apenas uma forma de benevolência. Há ampla investigação que sustenta que têm um valor único no processo de produção, mesmo quando as competências possam ficar ultrapassadas. É também uma questão de responsabilidade social. Porém, historicamente, é claro que os trabalhadores mais velhos foram com frequência severamente atingidos pelas transformações estruturais. Os sistemas de apoio financeiro podem ser estabelecidos de diferentes formas. Podem ser um tipo de seguro social, semelhante àquele que os trabalhadores suportam para garantir proteção no desemprego. Pode também ser um rendimento adicional suportado por fundos públicos ou um acordo de partilha de custos entre empregadores e governo. O que é importante é que haja diálogo social construtivo acerca de como proteger aqueles que têm mais a perder nesta transformação estrutural.
O relatório também considera gritante a forma como os acordos em negociação coletiva estão ultrapassados relativamente a alterações tecnológicas e a necessidade de haver contratação mais permanente. Os sindicatos têm estado pouco preocupados com estes aspetos ou demasiado focados na questão salarial?
A culpa não pode ser exclusivamente atribuída aos sindicatos. Os sindicatos atuam dentro de um sistema de negociação coletiva que é modelado pela legislação e pela tradição, e a disponibilidade dos empregadores para alargarem as discussões também pode ser limitada. O diálogo social e a negociação coletiva sofreram tremendamente durante o período da troika, o que deixou uma desconfiança persistente. E a trajetória dos desenvolvimentos salariais no setor indicam que os sindicatos têm razão em dar prioridade a essa questão. No entanto, os exemplos de outros países demonstram que alargar as discussões a outros aspetos da qualidade do emprego pode melhorar as condições de trabalho, mas também expandir o espaço negocial e trazer avanços à negociação de salários. Os acordos coletivos devem refletir as novas necessidades de empregadores e de trabalhadores, incluindo alterações na composição das famílias, perceções sobre o equilíbrio entre trabalho e vida pessoal, entre outras.