Ana Gomes: "O financiamento saudita de mesquitas deve alertar as nossas autoridades"
A Estratégia Nacional de Combate ao Terrorismo faz, já em fevereiro, três anos e só agora alguns dos planos que prevê estão a ser concluídos. Como coordenadora na Comissão TERR que avaliação faz de Portugal?
Se não passar do papel, nenhuma estratégia faz sentido. Ando ainda a reunir com diferentes autoridades e estruturas nacionais para perceber se essa Estratégia está a ser aplicada ou pelo menos se orienta medidas de capacitação, de preparação, de prevenção, de análise, de cooperação, etc.. Não tenho dúvidas que nalguns setores - como na Polícia Judiciária e no Ministério Público - temos gente muito capaz que faz a diferença, incluindo na cooperação no plano europeu e internacional. Não sei se os serviços de informações, incluindo informações militares, estruturas de cibersegurança, serviços prisionais e estruturas locais das forças de segurança, poderes municipais, entre outros, estão a ser envolvidos ou sequer sensibilizados numa tal estratégia.
E quais as suas maiores preocupações com o nosso país?
É óbvio que existem riscos para Portugal, ainda que não sejam tão elevados como na Bélgica, França, Reino Unido, e até na vizinha Espanha. Portugal foi até hoje, país de recuo e apoio logístico para alguns terroristas. Penso que temos forças policiais competentes e capazes, mas precisam de mais meios e melhor articulação interna, incluindo para a proteção de infraestruturas críticas e o espaço público. Chamar-me-ão alarmista, mas não posso deixar de fazer notar que o boom turístico pode desmoronar-se com qualquer ataque low cost como os que aconteceram em Sousse ou no Museu Bardo, na Tunísia. Temos de investir na intervenção social ao nível local, cuidando da integração de pessoas e comunidades em risco de serem infiltradas. E temos de estar muito atentos a apoios financeiros e outros que ajudam infiltrar proselitismo extremista e organizações criminosas que frequentemente atuam em conjugação com os grupos terroristas, de traficantes de drogas e de armas a traficantes de seres humanos, incluindo no recurso a esquemas de branqueamento de capitais, através do nosso sistema financeiro. O financiamento saudita de mesquitas deve alertar as nossas autoridades, a nível nacional e local. Não devem embandeirar em arco e aceitar apoios financeiros de fontes sauditas e de outros países do Golfo, para apoiar a construção de mesquitas e estruturas sociais associadas, ou para aceitar responsáveis ou pregadores cujo discurso proselitista ninguém segue ou controla.
Mas há uma suspeita concreta desse género de financiamentos em relação a Portugal?
Que eu saiba, não, nada de se terá concretizado. Mas, segundo informações que me chegaram, há ofertas de financiamento a autoridades locais, onde há comunidades muçulmanas. O melhor é alertar e não aceitar, tendo em conta a experiência noutros países europeus. A Bélgica, por exemplo, acaba de obrigar a retirada de financiamento saudita à mesquita central de Bruxelas, que previa livros com proselitismo extremista e pregadores em árabe com mensagens perigosas.
O papel das autarquias e das estruturas locais estão a ter algum papel na prevenção da radicalização, como defendeu há um ano o primeiro-ministro, António Costa? Há experiências noutros países?
Como já tinha há pouco referido, ainda estou a recolher informações sobre o que está efetivamente no terreno em Portugal. Mas essa uma abordagem indicada pelo primeiro-ministro é indispensável, em paralelo, claro, com a capacitação a outros níveis. Tem sempre também de haver de haver uma perspetiva holística, um investimento na educação, na proteção social, na integração, na cultura e também na reintegração - em particular dos reclusos (muito recrutamento jihadista faz-se nas prisões, por essa Europa fora). Faz todo o sentido que as autarquias coordenem e estejam ativas neste trabalho, porque estão próximas das comunidades, conhecem a realidade local, os fatores de risco, e podem atuar utilizando os meios locais - seja na mobilização e apoio das famílias, escolas, centros culturais, os espaços de convívio, de desporto, etc. Obviamente, tem de haver também o apoio político e financeiro dos governos, que por outro lado, devem ter estratégias de combate ao desemprego, de habitação social, de criação de oportunidades, de combate à discriminação - há bairros por essa Europa fora que são verdadeiros "guetos". Enfim, precisamos de investimento na inclusão social - tudo aquilo que tem sido desvalorizado nos últimos anos em que se impôs o paradigma da austeridade. Mas já há exemplos positivos noutros países: visitei, há tempos, a comuna de Malines (Mechelen) na Bélgica, uma das que mais exportou jovens da emigração para as fileiras "jihadistas" do Estado Islâmico na Síria. Até que o Presidente da Câmara lançou um programa integrado, com forte investimento social e interação entre polícias, famílias, escolas, clubes para detetar, contrariar e travar o recrutamento terrorista, incluindo mobilizando um grupo de académicos muçulmanos para combater a narrativa pseudo-religiosa dos terroristas, que hoje operam muito pelas redes sociais e cada vez tendo mais por alvo jovens do sexo feminino. Sem mobilizar, envolver e apoiar as nossas comunidades muçulmanas não venceremos a ameaça "jihadista" na Europa.
Que trabalho está a desenvolver a Comissão TERR?
Criámos esta Comissão para avaliar e fazer recomendações sobre o que as autoridades europeias estão (e não estão) a fazer para combater eficazmente o terrorismo. A Comissão tem um mandato de um ano, ao fim do qual publicará um relatório de avaliação e escrutínio político dos esforços e medidas tomados pela UE e pelos Estados Membros no combate ao terrorismo. Compreendemos que esta é uma das principais preocupações dos cidadãos europeus, face aos ataques terroristas ocorridos em solo europeu e golpeando cidadãos europeus em muitos pontos do globo, nos últimos anos.
Qual é a situação nos países e entidades que já visitou?
A Comissão já efetuou missões à Haia, na Holanda, e às agências para a cooperação policial e judiciária lá sediadas - a Europol e a Eurojust -, missão em que participei. Houve também já uma missão a Paris. Estão agendadas para o próximo mês missões a Londres, Berlim, e depois a Madrid e Catânia (Itália), proporcionando discussões com autoridades e operadores em todos os domínios. Penso que há muito a fazer no domínio da prevenção da radicalização e nos esforços de promover a desradicalização, no funcionamento da cooperação policial entre Estados Membros e ainda nos esforços para impedir o financiamento do terrorismo. Fui relatora-sombra do Parlamento Europeu nas IV e V Diretivas Anti-branqueamento de Capitais e cheguei à conclusão de que os Estados-Membros estão em negação sobre o que é necessário para combater o financiamento do terrorismo e redes de criminalidade organizada a ele associadas: passa muito pela transparência empresarial e financeira, pelo controlo e escrutínio de transferências de capitais, e por um sistema de supervisão mais eficaz nos controlos que faz e nas sanções que aplica.
As medidas securitárias são mais populares que as preventivas...
As medidas securitárias apenas, em geral anunciadas "a quente" depois de um atentado, normalmente são ineficazes e contraproducentes: nunca se podem negligenciar os princípios do Estado de Direito e os direitos fundamentais dos cidadãos. Destruí-los é o objetivo dos grupos terroristas. Ignorá-los é fazer o jogo dos terroristas. A prevenção da radicalização e o apoio à desradicalização implica todo um investimento holístico na vertente social, cultural, de integração, de inclusão social e de criação de oportunidades para os jovens, em especial direcionada para segundas e terceiras gerações em comunidades de emigração, que tem sido abandonada pelos Estados Membros nos últimos anos - não é com investimento securitário que contrariaremos a propaganda dos recrutadores de terroristas: mais do que a religião, eles exploram as disfunções sociais e o seu reflexo nos indivíduos. Além de uma estratégia de narrativa contraterrorista que temos de difundir nos media, redes sociais, nas redes locais, nas escolas, nos locais de culto etc.. é preciso dar-lhe substância prática. Incluindo nas prisões, que em vários países europeus, em vez de serem centros de reabilitação são verdadeiros centros de radicalização. E é preciso investir, ajudar a afirmar-se um Islão europeu, compatível com os valores, direitos e garantias europeus, em especial nos direitos das mulheres. Não é possível que governos europeus continuem a aceitar que locais de culto, escolas e estruturas sociais na Europa sejam controladas, financiadas e instrumentalizadas por clérigos que pregam ódio, extremismo violento e ideologia medieval, exportados por redes salafistas e wahabistas.
A partilha de informações e a cooperação policial, judicial e da intelligence é um problema em todos os países?
É preciso investimento em recursos humanos, equipamento, e capacidades (incluindo análise, investigação, línguas, ciber, articulação civil-militar) e serão precisos anos e muita pressão política para melhorarmos. Já há mecanismos eficazes e e rápidos de comunicação e de partilha de informação, mas esta é uma área em que muitos Estados Membros - em especial, os maiores - têm relutância em cooperar e partilhar informação, com tradições de investigação diferentes, habituados a proteger a sua própria intelligence, meios e fontes. Ainda há muito a fazer para haver confiança mútua alargada. A proposta de uma Unidade de "Intelligence" Europeia (exigindo um efetivo controlo democrático que a maior parte dos Estados Membros não vê ser realmente exercido a nível nacional) encontra muita oposição. Até porque os níveis de ameaça terrorista e as prioridades de segurança variam muito entre os Estados Membros.
Que outras preocupações tem a Comissão neste momento?
Não podemos fechar os olhos à ameaça da violência extremista e terrorismo da extrema-direita, que fomenta e se alimenta da retórica xenófoba que amalgama terroristas com muçulmanos, migrantes e refugiados. É preciso não esquecer que são muçulmanos a maior parte das vítimas do Estado Islâmico (EI), da Al Qaeda e outros grupos terroristas que invocam perversamente o Islão. Muitos dos refugiados e migrantes estão a fugir desses grupos terroristas e do impacto da sua ação dos seus países - por exemplo na Nigéria onde atua o Boko Haram. Os que na Europa defendem uma visão ultra securitária e vivem obcecados com o regresso dos chamados "foreign fighters" (combatentes estrangeiros) do EI, deviam reconhecer que a esmagadora maioria deles nasceu na Europa e interrogar-se como e porque foram radicalizados e porque e como não tivemos políticas para travar a sua radicalização. A maior parte dos atacantes na Europa, até hoje, nasceram, cresceram e radicalizaram-se na Europa. Como impedir esse processo é a chave para desarticular a ameaça terrorista.
Como é que o nosso país é olhado lá fora em relação a esta matéria?
Penso que existe uma boa imagem das nossas forças policiais e de segurança, e da nossa cooperação no domínio da partilha da informação a nível europeu. Ainda recentemente na Europol a delegação do Parlamento Europeu ouviu louvar a cooperação portuguesa, através da PJ, na desarticulação e prisão de uma célula terrorista que planeava ataques em França, com indivíduos já referenciados na Alemanha por criminalidade comum.
O nosso sistema de segurança interna, com várias polícias, será o melhor para esta enfrentar esta ameaça?
A estrutura não será o principal problema. O que é preciso é que cooperem e partilhem informação e acesso a bases de dados. Francamente, preocupa-me mais que os serviços de informações não tenham meios, nem mandato legal, nem porventura cultura e preparação para fazer o trabalho que deviam fazer.