Despartidarizar as autarquias locais

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Os partidos políticos são importantes em democracia. Na verdade, uma democracia sem partidos naturalmente tende para o autoritarismo do chefe. E as democracias orgânicas já passaram de moda. Mas uma democracia que se esgota nos partidos é, inevitavelmente, coxa. Infelizmente, Portugal tem, neste momento, partidos a mais e sociedade civil a menos. E, assim sendo, tudo o que seja feito para despartidarizar é, neste momento, um reformismo desejável. O afastamento dos principais partidos políticos nas últimas eleições presidenciais (apesar dos principais candidatos serem figuras de primeiro plano dos partidos, com a exceção de Sampaio da Nóvoa), assim como a expansão das candidaturas independentes nas autarquias locais (é verdade que muitas delas fruto de desavenças dos aparelhos partidários locais) podem ser ainda pequenos passos, mas vão seguramente na direção certa.

Uma das propostas que tenho defendido é a eliminação de candidaturas partidárias ao nível das juntas de freguesia e dos municípios com menos de 10 mil habitantes (cerca de 110 municípios dos atuais 308 existentes). Dadas as atuais competências das juntas de freguesia, não vejo grandes batalhas ideológicas a este nível. E, no caso dos pequenos municípios, parece-me que estas unidades de governo estariam mais bem servidas por grupos de cidadãos sem preocupações com ou sujeitos a agendas partidárias. De forma alguma estou a sugerir listas únicas, mas antes que os temas eleitorais sejam realmente de natureza meramente local. Assim, a multiplicidade de listas seria apenas determinada por diferentes sensibilidades locais na procura de soluções ao nível das juntas de freguesia ou dos pequenos municípios.

A eliminação de listas partidárias nas juntas de freguesia e em metade dos municípios teria o saudável efeito de limitar a influência e o poder dos aparelhos partidários na vida local. Também reduziria as consequências do habitual favoritismo do partido governamental pelos governos locais da mesma cor. Ao mesmo tempo, estes governos locais deixariam de estar pressionados pelos interesses e pelas agendas dos partidos em eleições legislativas. Finalmente, nas pequenas comunidades, exigir--se-ia maior intervenção da sociedade civil, uma vez que não seriam os partidos a organizar as listas candidatas.

Evidentemente, o mesmo modelo poder-se-ia aplicar aos municípios acima dos 10 mil habitantes. Mas, dada a sua dimensão, não só a natureza da gestão local pode já exigir respostas ideologicamente mais polarizadas (como têm sido os casos de Lisboa e do Porto) como os partidos são um veículo de organização eleitoral muito mais efetivo do que outras alternativas. Na verdade, em grandes municípios, a eliminação formal das listas partidárias quase inexoravelmente resultaria em listas de cidadãos apoiadas pelos partidos, mantendo-se, pois, na prática, o atual sistema.

Para evitar que os partidos colonizassem as listas de cidadãos ao nível da junta de freguesia e nos pequenos municípios, poderíamos optar pela introdução do sistema de torneio (sortition em inglês). O presidente da junta (a lista para a câmara municipal, no caso dos pequenos municípios) seria votado diretamente pelos eleitores, mas a assembleia de freguesia (assembleia municipal, no caso dos pequenos municípios) decorreria de um sistema de escolha aleatória. Os membros da assembleia, em vez de resultarem de uma lista eleitoral, seriam aleatoriamente selecionados na base de uma estratificação estatística da população com mais de 18 anos. Os desenvolvimentos do conhecimento teórico ao nível da estatística sociodemográfica permitem hoje encontrar os parâmetros adequados a uma verdadeira seleção aleatória e representativa.

Nenhum sistema é perfeito. Pode acontecer que os escolhidos aleatoriamente não tenham particular apetência pelas suas funções (poderíamos, por exemplo, reduzir o universo de potenciais selecionados aos cidadãos que exerceram o seu direito de voto nas últimas três ou quatro eleições autárquicas). Ou pode acontecer que a parametrização do processo aleatório seja errónea ou manipulada pelas autoridades. Ou, ainda, que a relação entre as listas não partidárias e os escolhidos aleatoriamente acabe por ser disfuncional (apesar das variadas experiências de assembleias não partidarizadas nos cantões suíços mostrarem o contrário).

No meu entender, dada a atual situação da nossa democracia, o grau de insatisfação, o aumento importante da abstenção e a excessiva partidarização da vida pública, os benefícios de um sistema de governo local baseado num sistema de sortition ultrapassam largamente os potenciais custos. Seria uma boa forma de dinamizar as comunidades locais e convidar a uma maior participação da cidadania.

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