Desfazer o nó górdio dos consensos
Os últimos dias foram férteis, do ponto de vista político, em discussões sobre acordos de regime, entendimentos e consensos. Tudo isto, a propósito da localização do novo aeroporto de Lisboa. Ninguém duvida da importância estratégica desta decisão e do compromisso a ela associado, tendo em conta a relevância do investimento em causa. Em boa verdade o novo aeroporto de Lisboa extravasa, em muito, a mera decisão sobre a sua localização geográfica, tendo em conta as externalidades geradas nos domínios sociais, económicos e estratégicos. Fala-se de um investimento global superior a 6 mil milhões de euros cuja execução se estenderá por mais de uma década. Sobre a importância do consenso, nesta decisão, não haverá certamente muita gente que não esteja de acordo. É pena, por isso, que num tema de bem maior importância, para todos os portugueses, como é o caso do Serviço Nacional de Saúde (SNS), não seja igualmente suscitado esse impulso para um consenso político alargado. Pelo contrário, o que temos visto, desde há muito tempo, é a utilização do SNS como instrumento de combate político. Como se o SNS não fosse, por definição, a melhor referência da democracia onde se exprime e exerce, com maior evidência o sentido de justiça social, a defesa dos direitos de cada um dos cidadãos, de cada uma das pessoas.
CitaçãocitacaoO futuro do SNS passa, inexoravelmente, pela compreensão da realidade atual, das circunstâncias presentes e pela projeção de um compromisso que antecipe o futuro.esquerda
A tendência, profundamente inútil, de fazer das questões da Saúde e, em particular, do SNS um terreno privilegiado para o combate político partidário, segmentando posições e rejeitando consensos alargados apenas tem servido para tornar mais difícil a sua urgente reforma e transformação. Este bloqueio resulta em prejuízo dos portugueses e apenas poderá ser resolvido, de forma duradoura e consistente, se for possível uma abordagem estratégica que resulte num contrato social de médio e de longo prazo. A produção legislativa esparsa, inconsistente e incoerente apenas contribuirá para tornar quase impossível desfazer a entropia e o novelo de contradições. A sustentabilidade do SNS apenas será alcançada com políticas públicas suportadas num consenso amplo com um horizonte de médio e de longo prazo. Os riscos associados à evolução demográfica, ao peso crescente da doença crónica, à progressiva dependência da Saúde das áreas sociais, bem como à vulnerabilidade associada aos custos crescentes com a inovação terapêutica e tecnológica, obrigam a decisões que tenham pela frente um horizonte de estabilidade, de coerência e de estabilidade das políticas.
Se ficarmos apenas pelos slogans do momento, pela retórica inconsequente, pelo combate espúrio, que alimenta a querela do dia a dia, não estaremos a fazer bem pelas pessoas. O Serviço Nacional de Saúde é a maior "obra pública" da história da democracia cujos efeitos e consequências não se esgotarão nunca, muito menos numa década. O SNS merece por isso, pelo menos, tanta atenção quanto está a merecer o novo aeroporto de Lisboa na aparente busca incessante por um consenso político alargado. Mas um consenso que seja a reflexão democrática da vontade largamente maioritária dos cidadãos e que não esteja condicionada por nenhum tipo de pressões. O futuro do SNS passa, inexoravelmente, pela compreensão da realidade atual, das circunstâncias presentes e pela projeção de um compromisso que antecipe o futuro. Tal não será possível com ideias, projetos ou parceiros que perderam, há muito, nos interstícios da história a capacidade de compreender o mundo. Persistir nesse caminho significará apenas adiar o inadiável, tornando quase impossível desfazer este nó górdio.
Médico e ex-ministro da Saúde