Descobrimos quem quis contratar jornalistas para manipular sobre covid. Diz que a ideia não foi sua
O assunto foi revelado ontem por um artigo de opinião de Pedro Tadeu, no DN e levantou desde logo preocupações na classe jornalística (mas não só) e teve impacto claro nas redes sociais, com mais de duas mil reações (que inclui partilhas e comentários) só no Facebook.
A história. Um jornalista respondeu a um anúncio de emprego no LinkedIn em fevereiro onde procuravam entrevistadores e repórteres - com carteira profissional de jornalista -, uma chamada de Zoom depois ficou a saber que o recrutador queria que sugerisse aos editores de jornais mais artigos sobre a pandemia, os seus números, o excesso de mortes no país, etc. Entretanto ficámos a saber "que o objetivo era fazer o contraditório sobre a pandemia que não aparece nos meios tradicionais".
"O jornalista ao perceber que se tratava de uma tentativa de manipular o trabalho jornalístico nas redações não aceitou continuar" (embora tivesse depois disso respondido a mais duas propostas com entrevistas semelhantes), diz-nos Pedro Tadeu.
Quem são estes recrutadores e o que pretendem com esta prática (que, de acordo com a opinião de Pedro Tadeu, pedem a jornalistas para traírem o seu código deontológico e mesmo a empresa de comunicação onde trabalham)? Descobrimos o tal anúncio inicial no LinkedIn, além de ser de "cliente anónimo" é do Porto e por lá vem o anunciante da vaga: Paulo Senra, aluno da Universidade do Porto.
Depois de algumas tentativas, conseguimos falar por telefone com Paulo Senra. O jovem, que não tinha conhecimento do artigo de opinião, admite a recrutamento. "Fui só um intermediário, sou um estudante universitário e fui contratado para isso, mas não digo para quem", adianta, indicando: "a vaga já foi preenchida, mas não digo mais nada".
O objetivo? "Há um lado da pandemia que não está a ser publicada pelos jornais mais oficiais ou tradicionais, nos media com mais impacto, era para tentar também que houvesse o contraditório sobre a pandemia, deve haver artigos com opinião oposta à atual". Quando questionámos sobre a prática de pagar a jornalistas para influenciar artigos e a informação de meios de comunicação não ser ética ou até mesmo ser ilegal, deixámos de ter respostas sobre o tema.
Questionado sobre a sua participação no grupo anti-5G Onda da Cidadania, o estudante garante que "não tem nada a ver com este recrutamento", embora admita que o grupo do qual é "voluntário" também lida com uma comunicação social "que não aborda os perigos do 5G". "Não há interesse da minha parte em continuar esta conversa", concluiu Paulo Senra.
Quem é Paulo Senra? Aparece em 2019 como modelo da Central Models e no perfil de Instagram (criado em julho de 2019 e com última foto de fevereiro deste ano) com 608 seguidores e 60 publicações diz (em inglês) que é "estudante de artes, modelo, membro da ondadecidadania, uploading..." A Central Models confirma ao Dinheiro Vivo que Paulo Senra, que é do Porto, foi de facto modelo em 2019 mas já não faz parte da agência, tendo tido uma passagem curta.
O cabelo grisalho parece ser uma imagem de marca de Paulo Senra e é mesmo ele o tal recrutador. Houve à posteriori mais dois recrutadores em anúncios semelhantes, que não conseguimos saber quem são por falta de informação do tal jornalista alvo de recrutamento - preferiu manter anonimato no artigo de Pedro Tadeu - e que não terá aceite continuar por achar a situação estranha.
A página de Facebook do grupo Onda de Cidadania é seguida por 987 pessoas e tem como principal foco os perigos do 5G. Na descrição diz ser "um movimento local que defende e tem como objetivo proporcionar legalmente, direitos aos cidadãos, na segurança da tecnologia e limites efetivos de exposição de radiação eletromagnética a nível nacional."
Os posts são sempre em torno do 5G "e dos perigos da tecnologia", indicando-se que têm a decorrer petições para levar o tema à Assembleia da República e que têm tido reuniões com vários municípios (que não conseguimos confirmar), argumentando mesmo que o 5G provoca, entre outros, cancro. No site do grupo vão mais longe e deixam várias indicações dos perigos do Wi-Fi, colocando ligações a grupos anti-5G.
Rui Aguiar é um dos principais especialistas europeus em 5G e já em janeiro explicava ao Dinheiro Vivo os motivos pelos quais os portugueses e europeus não devem temer a implementação desta tecnologia. O professor na Universidade de Aveiro e investigador Instituto de Telecomunicações é também um dos seis membros do Comité de Gestão das Plataformas Tecnológicas Europeias (PTE) Net!Works, que analisa precisamente as comunicações móveis e o 5G. "Estes grupos de teorias da conspiração não são novos e este é apenas mais que alega coisas sem fundamento", explica-nos.
Um dos membros do tal grupo Onda da Cidadania é um professor de Física da Universidade de Évora chamado Hugo Gonçalves Silva, que dá a cara em vídeos explicando os perigos do 5G (efeitos biológicos do magnetismo artificial).
"Conheço-o e já tive discussões offline com ele, que terminaram quando ele se recusou a aproveitar a oferta que lhe fiz de usar todas as minhas facilidades de 5G para provar o que diz, num projeto que ele poderia desenhar como quisesse", adianta Rui Aguiar, que indica que estes grupos "escondem muitas vezes no Facebook que são contra todas as comunicações eletromagnéticas". "Não podem dizer isso abertamente porque se dissessem que são contra os telemóveis poucos os ouviriam", diz. Tentámos contactar sem sucesso Hugo Gonçalves Silva.