Depois de Obama, Biden tenta fechar Guantánamo. Será que vai conseguir?
A 11 de janeiro de 2002, quatro meses depois dos atentados do 11 de Setembro nos EUA, os primeiros 20 prisioneiros chegaram ao Campo de Detenção da Baía de Guantánamo. Desde então, 779 homens passaram pela prisão militar norte-americana em Cuba, que no pico da guerra ao terror albergou 675 prisioneiros. Em 2016, o então presidente Barack Obama deu ordens para fechar a prisão, mas ainda lá estão 39 presos. Há dias, o marroquino Abdul Latif Nasser, de 56 anos, detido há quase 20 e nunca formalmente acusado, foi repatriado para Marrocos, naquela que foi a primeira transferência da presidência de Joe Biden.
O Departamento de Estado já disse que o presidente vai continuar a avançar no "processo deliberado e minucioso" de reduzir o número de prisioneiros em Guantánamo, "garantindo, ao mesmo tempo, a segurança dos EUA e dos seus aliados". Ao contrário de Obama, que estabeleceu um prazo de um ano para fechar a prisão, Biden não indicou datas.
"Nasci novamente a 19 de julho. A minha data de nascimento já não é 14 de março. Nasci a 19 de julho", disse Nasser numa declaração, citada pela ABC News. "Não tenho palavras para descrever a minha enorme sensação de felicidade e alegria. É como um milagre estar em casa após 20 anos e celebrar o Eid [festa muçulmana] junto com a minha família", acrescentou.
Membro de um grupo ilegal sufista não violento na década de 1980, o marroquino foi recrutado para treinar na Chechénia, acabando contudo no Afeganistão, junto da Al-Qaeda - organização terrorista responsável pelos atentados que causaram a morte a quase três mil pessoas. Preso pelos militares norte-americanos durante a invasão para derrubar o regime talibã, acusado de dar guarida à Al-Qaeda no Afeganistão, Nasser chegou a Guantánamo em maio de 2002.
O prisioneiro número 244 nunca foi formalmente acusado de nada ou julgado - havia suspeitas de que teria vendido armas à Al-Qaeda. Dos 39 detidos que ainda estão em Gitmo, como também é conhecido o campo de detenção, 17 estão na mesma situação: são os chamados "prisioneiros para sempre". Tal foi possível porque, no rescaldo do 11 de Setembro, o Congresso dos EUA aprovou a Autorização para o Uso da Força Militar. Esta dava luz verde a perseguir "as nações, organizações ou pessoas" que tinham planeado e cometido os atentados ou ajudado os responsáveis.
Na prática, um cheque em branco, sem limites, para o então presidente George W. Bush que aproveitou para invadir o Afeganistão de forma a derrubar os talibãs. A autorização também dava à administração a capacidade de deter os prisioneiros sem acusação ou julgamento e sem data limite, em Guantánamo, já que não é claro quando esses poderes expiram.
A guerra no Afeganistão é o mais longo conflito no qual os militares norte-americanos se viram envolvidos, sendo que oficialmente ainda dura. A retirada das últimas tropas está prevista para 31 de agosto, pelo que se levantam questões sobre se, legalmente, é possível manter os prisioneiros nesta situação. A mais geral "guerra ao terrorismo" poderá ser usada como desculpa, sendo este um conceito demasiado lato que os defensores dos detidos de Guantánamo temem possa ser usado para os manter para sempre nestas condições.
Quando Obama chegou à Casa Branca, em janeiro de 2009, havia 240 prisioneiros em Guantánamo. A ordem foi para fechar a prisão no espaço de um ano, mas o Congresso complicou-lhe as coisas, ao travar a transferência dos detidos para prisões de alta segurança nos EUA (só aconteceu num caso) e complicar as transferências para países terceiros - alegando que 30% dos que tinham sido libertados haviam retomado as atividades terroristas. No final do mandato, Obama disse que esse número era referente a libertações ainda na presidência de Bush e que menos de 6% dos ex-detidos tinham recaído e menos de 7% eram suspeitos de o fazer. No final, quando Obama terminou o segundo mandato, ainda havia 41 detidos em Guantánamo.
Nasser já tinha recebido autorização de transferência para Marrocos, que se compromete a manter a vigilância sobre ele, em 2016, ainda com Obama. Atualmente há dez detidos nessas mesmas condições, sendo que três deles já podiam em teoria ter sido libertados há mais de quatro anos. Outros 17 podem beneficiar deste procedimento. Durante a presidência de Donald Trump, que recuou na ideia de fechar Guantánamo e disse até que iria aumentar a população prisional (não o fez), só houve uma libertação, pelo que Biden "herdou" um total de 40 prisioneiros.
O atual presidente parece querer retomar os esforços de Obama para fechar a prisão, mas enfrenta as mesmas dificuldades que ele: não só a oposição dos republicanos, como dificuldades em encontrar países disponíveis para receber os detidos que faltam. Muitos detidos são, por exemplo, do Iémen, devastado pela guerra e sem condições para receber ninguém. Portugal, por onde passaram os voos secretos da CIA que levaram muitos prisioneiros para Guantánamo, acolheu dois sírios em 2009. Outro problema é mesmo levar a julgamento aqueles que foram acusados. As denúncias de tortura nos interrogatórios iniciais - desde privação do sono à simulação de afogamento, ou waterboarding - ficaram para trás, mas há quem ponha em causa a legalidade dos tribunais militares que ali foram criados.
Só dois dos atuais 39 detidos foram já condenados: um iemenita, acusado de ser o chefe da propaganda da Al-Qaeda e assessor para os media do próprio líder, Osama Bin Laden, e um paquistanês, que se declarou culpado de crimes de guerra e de ter servido como correio para entrega de fundos da Al-Qaeda a um grupo filiado na Indonésia, que realizou atentados. O primeiro foi condenado a prisão perpétua, o segundo ainda aguarda a sentença - como foi alvo de tortura da CIA terá a pena reduzida (não é claro em quanto tempo).
Outros sete detidos foram formalmente acusados (mais três estão nesse caminho), sendo que cinco enfrentam a prisão perpétua pela sua alegada participação no planeamento dos atentados do 11 de Setembro. Entre eles o alegado cérebro dos ataques, Khalid Sheikh Mohammed. Deviam começar a ser julgados no início de setembro, quando se assinalam os 20 anos dos atentados, mas não é claro o que acontecerá, até porque o principal procurador, o brigadeiro general Mark S. Martins, pediu a reforma após dez anos no cargo.
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