"Dentro de 30 anos, grandes áreas do Alentejo já não terão condições para fazer vinho"
Situada à saída de Montemor-o-Novo, a Quinta de São Jorge, conhecida como Quinta Plansel, recebe os visitantes com umas árvores cujas sombras protegem do sol forte do Alentejo. Foi ali que Jorge Böhm viveu até há um ano, quando se mudou para uma casa mais perto do castelo.
O alemão, nascido em 1938 em Neustadt an der Weinstrasse, visitou Portugal pela primeira vez em 1961, depois de o veleiro em que seguia com amigos a caminho das Seicheles ter sido abalroado por um barco de pesca em Cascais. Apaixonou-se. Por Portugal e pelos vinhos portugueses, que começou a importar para a Alemanha, onde a família era dona de uma das maiores empresas de importação e produção de vinho do país.
A crise aberta pela concorrência dos supermercados levou-o a mudar de vida e de país: em 1976 comprou esta quinta e começou um longo e difícil processo de seleção de castas. O objetivo? Melhorar a qualidade do vinho português. Hoje, a filha, Dorina Lindemann, produz o próprio vinho ali na quinta e as netas prometem seguir a tradição familiar, uma delas está na Alemanha neste momento a estudar na Universidade de Geisenheim, tornando-se a sétima geração da família no negócio do vinho, como atestam os retratos dos antepassados que Jorge Böhm se orgulha de exibir na parede das escadas da casa que foi sua.
No corredor que leva à biblioteca onde as estantes exibem volumes sobre o vinho, alguns datados dos séculos XVII e XVIII, o visitante é recebido por uma impressionante coleção de pinturas, sobretudo de artistas alemães dos anos 60. E o viveirista não esconde que, apesar dos 83 anos, ainda não desistiu do projeto de unir arte e vinho.
Como é que um alemão acaba em Montemor a dedicar a sua vida a melhorar a qualidade dos vinhos portugueses?
Nasci em Neustadt an der Weinstrasse, a capital do estado alemão da Renânia Palatinado. A minha família tinha a maior empresa de vinho da região.
O negócio do vinho já estava na família há muitas gerações?
Desde os tempos de Napoleão. Antes de Napoleão estava tudo na mão da nobreza e do clero naquela zona da Alemanha. Com Napoleão, a margem esquerda do Reno foi completamente liberalizada. A nobreza perdeu direitos, os terrenos foram secularizados. No início do século XIX, surgiram todas as grandes empresas de vinho. A maior era dos meus bisavós maternos e o meu bisavô paterno era o maior produtor de espumante naquele tempo na Alemanha. Quando entrei na empresa, só tinha uma participação pequena porque, passadas várias gerações, já estava muito dividida. Quando surgiu a crise causada pelo crescimento dos supermercados, pensei que fazia sentido sair. E aproveitei a ligação que tinha a Portugal. Conseguimos vender a empresa antes do colapso. Ficámos todos bem e ainda fiquei com alguns milhões para investir aqui. Acabámos assim com uma tradição com séculos, mas continuámos no ramo. No meu caso, mais ligado à investigação. Aqui em Montemor, eu também quis criar emprego. Quis ser útil. Se trabalhamos com uma droga, e o vinho é uma droga, convém ter uma mais-valia [ri-se].
Essa paixão por Portugal começou bastante mais cedo... Em 1961 ia a caminho das Seicheles com amigos no seu veleiro quando algo correu mal...
Bom, não sei se correu mal. Se calhar correu bem! Afinal, assim conheci Portugal, o que não tinha intenção de fazer. Portugal nos anos 60 era praticamente desconhecido na Europa. A política de isolamento de Salazar era de tal maneira forte que ninguém sabia nada de Portugal. Não parecia um mundo interessante, não havia turismo de grande volume, só de alta riqueza. Quando passámos de Espanha para baixo, foi a primeira vez que me confrontei com Portugal. Foi um acaso na minha vida. Naquela altura, o porto de Cascais ainda não tinha barra, por isso ficámos ali em mar aberto e um barco de pescadores, de manhã, bateu no nosso veleiro. Bateu meio metro acima do nível da água e arrancou a âncora. Confesso que também estávamos bastante bêbados! Foi depois de oito dias de aventura para passar o cabo Finisterra. Acordei no mar, com o barco estragado. Teve de ser rebocado e restaurado. Acho que foi no Bom Sucesso. E ficou lá até eu voltar para Portugal nos anos 80. Estava em frente ao sítio onde fica o Aquário Vasco da Gama. Entretanto, visitei Portugal algumas vezes e vi como o barco estava degradado na fase crítica dos anos 70. Viviam lá galinhas... E milhares de pulgas. No 25 de Abril de 1974, tinha programado uma visita a Portugal com a Câmara de Comércio da minha região na Alemanha. Chegámos praticamente no dia da Revolução. Fomos aplaudidos quando chegámos porque pensavam que vínhamos da Alemanha de Leste. Mas, quando compreenderam que não éramos da Alemanha de Leste, os seus colegas jornalistas já não quiseram falar connosco.
Só voltando à sua primeira visita. Acorda com o barco abalroado e fica aqui por Portugal uns dias. Foi nessa altura que provou pela primeira vez o vinho português?
Foi em 1961, claro. Como é que acha que apanhei a bebedeira? [dá uma gargalhada] Foi a primeira vez que bebi vinho português. E depois comecei a ter contactos com o setor do vinho. Em 1974, depois da Revolução, quando o escudo caiu drasticamente, comprei uma casa em Sintra. Em 1976, comprei esta quinta e criei uma empresa com o barão Stefan von Breisky. Ele depois tornou-se conhecido por causa das festas da Elsa Raposo, um escândalo. Mas eu perdi o contacto. Não aguentei as festas! Fui ficando cada vez mais ligado a Portugal. Mas o vinho português nesta altura não tinha a estabilidade e constância dos vinhos franceses ou italianos. Eles tinham castas que dominavam. A partir de 1981 mudei-me para Portugal, mas ainda passava muito tempo na Alemanha por causa da universidade. Comecei a instalar as primeiras vinhas. Fizemos a seleção clonal. Selecionámos centenas ou mesmo milhares de castas, que mandámos para a Alemanha para controlar se tinham vírus. Uma parte foi controlada aqui, outra na Alemanha. E, a partir de 1983, estava a viver totalmente aqui.
Porque decidiu comprar esta quinta em especial, porquê Montemor?
Tentei comprar várias. Mas, quando o negócio estava quase feito, vendiam a outro. A vantagem de Montemor é ser perto de Lisboa. Não havia autoestrada neste tempo. Ir para Évora ou para Beja, Reguengos ou Borba era muito complicado. Por isso, comprei este terreno. Comprámos vários terrenos na altura. Investimos. Mas o meu interesse não era ser latifundiário. Portugal em 1976 estava numa grande crise. A gestão da sociedade no passado era péssima, exploraram as pessoas e havia um ódio muito grande contra os empresários. Francamente, se tivesse vivido aqui nesse tempo também teria sido comunista - apesar de eu ser totalmente orientado para um sistema de comércio de mercado. O nosso objetivo nesse tempo foi criar muito trabalho aqui. Porque não havia trabalho. Era uma situação que eu tinha dificuldade em compreender. Havia um conflito tremendo na sociedade: de um lado, os proprietários, os latifundiários, do outro lado os empregados. Na altura, o governo alemão apoiou-me. O meu investimento foi cofinanciado pelo governo alemão, que estava interessado em que se desenvolvesse um sistema democrático em Portugal. Por isso, tive sempre uma forte ligação à inovação e investigação. Paralelamente ao investimento, eu estava a estudar em Gasenheim, nos primeiros anos. Como importador de vinho de Portugal, percebi que a situação vitícola era catastrófica. Nas vinhas havia até dez ou 20 variedades. Não eram selecionadas. Havia uma multiplicação, sem qualquer sistema.
Foi então que decidiu mudar as coisas?
Fomos os primeiros a dizer que não podia ser. Que tínhamos de saber quais eram as castas e qual a sua qualidade. Com a Universidade de Évora, conseguimos criar uma adega experimental com meios modernos. Importei quase toda a tecnologia da Alemanha. E em pouco tempo ficámos a saber quais eram as grandes castas. Antes da grande praga de filoxera, em meados do século XIX, Portugal era muito mais rico em castas. E tinha uma posição muito forte. Mas, no século XX, o vinho em Portugal degradou-se. Tenho aqui livros, até do século XVII e XVIII, que usei para saber quais eram as castas endémicas, autóctones, específicas, e foram essas que selecionámos. Para fazer o vinho naquele tempo não era fácil. Não se faz vinho com temperaturas de 40 graus, que é o que temos aqui na fase da vindima. Portugal não pensava nisso e por isso os vinhos para exportação não eram grande coisa. Nós alugámos à Gelmar [empresa de peixe congelado que abriu falência após a Revolução] um contentor que metemos na Universidade de Évora. Lavámo-lo bem porque cheirava muito a peixe! E assim foram vinificadas todas as velhas castas da região. Fizemos pela primeira vez a seleção baseada em vinho. E para ser internacionalmente competitivo não só controlámos com a Junta Nacional do Vinho, que tinha uma grande equipa de provadores de vinho, como fomos também a Inglaterra, França, Alemanha e EUA para fazer o ranking das variedades através de testes. Fizemos a classificação. E conseguimos criar um dinamismo no país, mas também muita oposição. No Instituto Superior de Agronomia (ISA) havia um professor que questionou haver um estrangeiro que se atrevia a falar sobre o nosso património nacional. Eles não fizeram nada, mas não queriam que nós fizéssemos! Claro que não conseguiram. Era a altura da entrada no mercado comum europeu. Mas foi sempre uma guerra. Em 1991, apresentámos uma série de clones para serem homologados e podermos começar a fazer material certificado. Foi uma guerra por parte da universidade. Eles recusavam um sistema policlonal. Queriam conservar a biodiversidade com a multiplicação. Mas fazer isso em exclusivo não funciona.
Continua a encontrar resistência ao seu trabalho hoje?
Uma resistência brutal. Porque a maior parte dos funcionários públicos estudaram no ISA e os professores ensinaram-lhes que os vírus são bons. E eu expliquei que os vírus são maus: se tem uma gripe não se sente bem, o mesmo se passa com as plantas. Fui ao Parlamento Europeu, fui a Bruxelas queixar-me. A primeira legislação sobre vinho em Portugal era uma legislação meio clandestina. Que fiz com o diretor do Instituto da Vinha e do Vinho. Criei uma associação e usámos um estatuto para certificar. Fizemos isso durante cinco ou seis anos, até que o Estado fez a sua legislação. Foi um jogo relativamente triste até finais dos anos 90, quando fui ao Parlamento Europeu. Finalmente, o vinho português desenvolveu-se de forma fantástica. Temos hoje castas que neste tempo não existiam no Alentejo - a touriga nacional, por exemplo, não existia. A touriga franca... Nem o aragonês existia, só numa pequena zona de Portalegre. De repente, o Alentejo era o número um em Portugal no vinho. O Douro ficou furioso. O vinho verde tem mais tradição, mas nunca fizeram este trabalho. No vinho do Porto não era necessário porque já utilizavam as melhores castas. No tempo do marquês de Pombal trabalhava-se bem!
Esta é a primeira fase do seu trabalho...
Sim, de 1980 até 2000. Conseguimos fazer a certificação e depois publiquei os meus livros de base. Então aconteceu um fenómeno muito interessante: o governo retirou-se completamente do financiamento dos projetos de investigação. Durante quase 20 anos não tivemos projetos. É grave, porque, de todos os pesticidas aplicados na Europa, mais de metade é aplicada na vinha. Mas a vinha só cobre 4% da área agrícola do continente. Por isso, eu tinha iniciado já com a universidade de Évora um trabalho para fazer introgredir nas nossas castas genes de outra espécie que são resistentes ao míldio e oídio. Este trabalho ficou quase 20 anos parado. Mas hoje há um movimento imenso na Europa nesse sentido e podemos esperar que dentro de pouco tempo, poucas décadas, a aplicação de fungicidas vá ser reduzida de tal forma que a viticultura tradicional vai deixar de funcionar.
Estas são preocupações que surgem agora com a busca de produtos mais naturais?
Sim. Em 2017, fiz um simpósio sobre vinha sustentável. Mas o conceito é diferente do que era antigamente. Antes procurávamos a sustentabilidade económica. Como é que Portugal ia sobreviver no meio desta concorrência brutal do novo mundo, com todos os novos países que entram agora na vinha na Europa. E onde Portugal se destaca do ponto de vista da qualidade. Aqui há três critérios. O primeiro é a mudança de clima. Dentro de 30 ou 40 anos, grandes áreas hoje de viticultura no Alentejo já não terão condições para fazer vinho. Mas não há nenhum programa ligado a isso! Nem sabemos que castas suportam o calor. A subida do CO₂ é um problema. Não interessa se nós em Portugal ou na Europa emitimos menos, a China e a Índia vão continuar a aumentar as emissões. A América não está tão mal como [Donald Trump] deixa pensar. Ele é um imbecil! Ele deixa bem claro: America First, a América Primeiro. É uma tendência que temos também na Polónia, na Hungria. E temos sorte por [o presidente francês Emmanuel] Macron não ser desta opinião. É equilibrado. E ainda bem, porque Angela Merkel vai sair do poder na Alemanha e não estou a ver alguém como Kohl, como Schröder ou como a própria Merkel para lhe suceder. Ela é fantástica. Fez um equilíbrio único na Europa. Mas queimou-se completamente com a abertura das fronteiras aos refugiados. Do meu ponto de vista, era o correto, mas é difícil de vender às pessoas. Enfim, este é o primeiro tema: a mudança de clima. E tem de ser pensado. Porque vai dar grandes migrações económicas, de zonas. Esta zona de Montemor é privilegiada. E tenho esperança de que vamos sobreviver. De manhã, quando saímos de casa, temos 14 graus - a temperatura ideal para o vinho. E com água e com rega talvez se consiga sobreviver. Mas, no interior, no Redondo, etc., vão ter grandes problemas.
Mas há mais desafios...
Sim, Portugal é muito pequeno. Só a região de Bordéus, em França, produz praticamente tanto vinho como Portugal. E tem uma posição no mercado muito mais forte, apesar de ser apenas 10% de França, não mais. Por isso, Portugal tem de ter um critério, que são as suas castas. Temos castas que são diferentes e são maravilhosamente adaptadas ao clima quente. Muito mais do que as castas francesas. Temos de procurar mercados que paguem um preço um pouco mais alto. Quem vai ao Lidl ou ao Aldi, não espera pagar caro. Mas os restaurantes, as lojas especializadas, conseguem vender vinho mais caro. Portanto, percebemos que tínhamos de ter em Portugal uma estratégia da qualidade. Qualidade por castas. E este trabalho vai ser cada vez mais importante. Hoje é evidente. Nós, a Dorina, o Esporão, a Fundação Eugénio de Almeida, vendemos com preços acima de três euros. A nossa média é acima da média nacional. Mas, se for para os grandes produtores, eles vendem com uma média abaixo de dois euros. O interesse de Portugal não é vender tão barato, porque assim os produtores não vão conseguir sobreviver. E, para ter um preço mais alto, precisamos de maior qualidade. Para isso estamos a fazer observações morfofuncionais: por exemplo, se tivermos um aragonês com bagos e cachos muito grandes, não terá uma grande qualidade. Mas, se tivermos um com o bago mais pequeno, as componentes aromáticas são muito mais altas e o vinho é muito mais concentrado. Produz menos, mas, em vez de vender por 90 cêntimos, pode vender pelo dobro e compensa mais. Mas é um mercado mais difícil. Aqui na quinta estamos a fazer retrocruzamento de castas resistentes a flagelos como a filoxera ou o míldio e oídio - flagelos que vieram da América no século XIX. O resultado são milhares de plantas, que reduzimos a centenas. E depois temos de testar se o vinho é bom. 90% é péssimo! Vamos provando e eliminando. Sobram alguns. Nesses vamos testar a resistência. Os vinhos americanos - talvez se lembre da morangueira que havia em Portugal - são resistentes mas são difíceis de beber. Mas nós cruzamos com as nossas castas e já temos vinhos que juntam a resistência e a qualidade. Cruzamos com touriga nacional, verdelho e antão-vaz. Depois de um processo de redução, temos ali 65 candidatos.
É uma solução para reduzir os fungicidas?
Se vamos ter legislação a obrigar-nos a reduzir os fungicidas em 50%, como já existe em França, temos de encontrar uma solução. Mas é muito difícil obter autorização do governo. É compreensível. Se alguma coisa correr mal, vão rolar cabeças entre os funcionários públicos. Tem de haver um bode expiatório se algo correr mal. Por isso, têm medo e ninguém quer fazer nada. Recapitulando: mudança de clima, alta qualidade e resistência das plantas. Estas são as três linhas que seguimos neste momento.
Um alemão a viver há tantos anos em Montemor já se sente um pouco alentejano?
É metade da minha vida aqui. Estou muito mais ligado hoje ao Alentejo do que à Alemanha. Tenho dupla nacionalidade. Era necessário por causa daquelas pessoas que achavam que um estrangeiro não podia estar a trabalhar nos vinhos portugueses. Bom, isso resolveu-se. Mas não é fácil para um alemão. Só pode ter uma nacionalidade. Só em situações políticas especiais é aceite a dupla nacionalidade. Consegui que aceitassem, no meu caso.
Em que ano passou a ser português?
Em 2002. Já praticamente não tenho nada na Alemanha. Só o jazigo da família. A minha irmã ainda vive lá, o meu filho também. Ele nunca quis vir para Portugal, acho que teve uma má experiência nos anos 80. A minha filha Dorina é que vive cá e faz vinho aqui na quinta. Tenho amigos na Alemanha, claro. Mas a ligação é sobretudo científica.
Consegue escolher o seu vinho preferido?
É fácil! Para mim, nos tintos, é o touriga nacional da Dorina. Nos brancos - a minha filha não vai gostar de ouvir isto -, é o Muralhas. O alvarinho com trajadura do Minho, que é muito semelhante aos vinhos alemães. Hoje já não bebo tanto vinho como antigamente. Antes bebia uma garrafa por dia. O fígado de uma pessoa que está na quinta geração de negociantes de vinho já é bem resistente! Nunca tive problemas.