Debate sobre racismo: discriminação, quotas e o abraço a Mamadou Ba

Audição no Parlamento debateu o racismo em Portugal. Deputada Isabel Moreira defende quotas étnico-raciais e critica atitude "lamentável" dos partidos no caso Jamaica
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Foram três horas de debate. Três horas contra "a ficção de que não há racismo em Portugal". "O racismo é transversal à sociedade portuguesa" e há responsabilidades políticas nisso, ouviu-se na tarde desta sexta-feira no grande auditório da Assembleia da República, onde decorreu uma audição pública às comunidades afrodescendente e brasileira. Foi a primeira de um conjunto de iniciativas no âmbito da preparação de um relatório sobre racismo, xenofobia e discriminação étnico-racial, que será apresentado até ao final da presente legislatura.

Participação política, justiça, educação, emprego, habitação e saúde - nas várias áreas que estiveram em cima da mesa, a intervenção dos vários representantes das duas comunidades desenhou o retrato de uma discriminação diária e transversal. Beatriz Dias, da Djass - Associação de Afrodescendentes, começou pelos bancos da escola, citando um estudo que se debruçou sobre a retenção de alunos de origem africana - 16% logo no primeiro ciclo, contra 5% entre os portugueses; 50% no secundário, contra 20% entre os portugueses. "Esta população estudantil começa a ser excluída no primeiro ciclo e continuam a ser excluídos quando chegam ao final do terceiro ciclo e são encaminhados para o ensino profissional. Estes jovens são percecionados como problemáticos, indisciplinados, com pouco sucesso, nos quais não vale a pena investir tanto", defendeu Beatriz Dias, ela própria professora. "Os jovens negros estão a ser excluídos do sistema de ensino, têm menos horizontes", sublinhou, apontando "uma negação coletiva" sobre o impacto do racismo e a "necessidade de acreditar numa ficção de que não há racismo" em Portugal.

Na habitação e na Saúde, o diagnóstico não foi diferente. Flávio Almada, em representação da Associação Cultural Moinho da Juventude, sublinhou que mais eloquente do que qualquer discurso é olhar para o bairro da Jamaica, no Seixal - a "periferia de Lisboa é a continuidade colonial na forma como o espaço se organiza". Houve uma "expulsão da população negra para a periferia da periferia", apontou, denunciando a "forma como as pessoas são despejadas, como se fossem lixo" ou mesmo a forma como são realojadas, em bairros de "arquitetura policial" com "uma entrada e uma saída" (em que a polícia "fecha" o bairro), sem equipamentos sociais e transportes públicos que não funcionam após as nove ou dez da noite.

Jakilson Pereira, da mesma associação, prosseguiu no mesmo registo, falando em "projetos de urbanização guetizados". "Quando saímos do sítio onde querem que a gente esteja, há preocupação e medo. Isso viu-se na Avenida da Liberdade. Um grupo de jovens a exercer a cidadania levanta assim tanto medo?". Antes, as intervenções já tinham aflorado a "criminalização da juventude negra", quando um dos intervenientes a acentuar que "quando os jovens negros vêm para o centro de Lisboa são vistos como criminosos".

Quotas: sim ou não?

Filipe Nascimento, representante da comunidade cabo-verdiana, falou da discriminação no trabalho para traçar um quadro de trabalhadores precários, em profissões pouco qualificadas e com baixas remunerações. "Será que é falta de qualificação, falta de potencial?", perguntou. E respondeu: "Não, temos que assumir que não". Foi o pretexto para lançar a questão da criação de quotas étnico-raciais. E se a resposta do próprio foi negativa, o burburinho na sala mostrou que a posição estava longe de ser consensual. A defesa desta medida acabaria por ouvir-se no período de intervenções na plateia, mas também nas intervenções finais dos representantes dos partidos, com a deputada socialista Isabel Moreira a defender que este deve ser o caminho: "Precisamos de quotas, sim".

Sobre este tema também José Manuel Pureza, do BE, defendeu que as quotas são "um sistema a considerar".

Nas intervenções dos partidos, Isabel Moreira criticou a forma "lamentável" como os partidos reagiram na recente polémica em torno da bairro da Jamaica, considerando que tiveram "medo de discutir o assunto" por causa dos efeitos no eleitorado. A deputada criticou, aliás, o que disse ser a falta de um discurso político consistente sobre o problema do racismo, abarcando na crítica todos os partidos. "Não acho que algum tenha efetivamente inscrito no seu programa, de forma visível" esta questão, disse a parlamentar socialista, defendendo que não há dúvidas que Portugal "é um país racista" - só que não o admite. " Ninguém tem dificuldade em dizer que somos um país machista, mas dizemos que é um país racista e aí, pára tudo",

O abraço a Mamadou Ba

Se Elza Pais, presidente da subcomissão da Igualdade, tinha iniciado a audição a defender que Portugal "tem das leis mais inovadoras do mundo" em matéria de integração e não discriminação - ainda que das leis à realidade vá uma "distância enorme" -, as intervenções dos representantes das duas comunidades desenharam um quadro menos auspicioso em matéria de racismo. José Manuel Pureza, deputado do Bloco de Esquerda, completou o quadro, ao tomar a palavra para ler uma mensagem enviada a Mamadou Ba - o assessor do BE que ficou no centro da polémica sobre a atuação da polícia no bairro da Jamaica, por ter escrito "bosta da bófia" e que tem recebido ameaças desde então - precisamente enquanto decorria a conferência, ao qual o próprio assistia. Uma mensagem insultuosa, com frases como "andas a comer à custa dos portugueses", que Pureza citou para defender que é "risível colocar a questão de saber se há racismo em Portugal".

Quem também fez questão de dar um abraço de solidariedade ao assessor do BE foi a deputada comunista Rita Rato, que defendeu que Portugal é um "país onde persistem traços de racismo institucional e não institucional que são agravados pela desigualdade" que atravessa a sociedade portuguesa.

A audição que decorreu esta sexta-feira na Assembleia da República insere-se no âmbito da preparação de um relatório sobre racismo, xenofobia e discriminação étnico-racial, que será apresentado até ao final da presente legislatura. Uma iniciativa da subcomissão para a igualdade e não discriminação, (que funciona na esfera da comissão parlamentar de Assuntos Constitucionais), que foi decidida após a agressão Nicol Quinayas, a jovem colombiana que foi agredida por um segurança dos transportes do Porto em junho do ano passado.

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