De Rabo de Peixe para o palco do Teatro Micaelense

O Walk & Talk junta os artistas e a população: dois jovens da vila piscatória foram fotografados por Pauliana Valente Pimentel e participaram no espetáculo criado por Vânia Rovisco. O festival terminou no sábado mas vários projetos continuam o seu percurso.
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Samuel e Benjamim subiram ao palco do Teatro Micaelense na noite de sexta-feira e dançaram maravilhosamente. Os corpos esguios, os troncos nus, os movimentos livres. Foi a primeira vez que os dois rapazes, que moram em Rabo de Peixe e têm menos de de 20 anos, dançaram num palco. Após o espetáculo Equanimidade - Ânimo Inalterável, que a coreógrafa Vânia Rovisco criou em residência durante duas semanas, no âmbito do Walk &Talk, juntando bailarinos profissionais que trouxe do continente e outros "bailarinos e dançantes" da ilha, Samuel e Benjamim dão um salto à festa na galeria de arte do festival. Mas não se podem demorar. Às 3 da manhã, Samuel tem de ir trabalhar: ele prepara redes para a pesca e está habituado a trabalhar em horários estranhos.

Foi a fotógrafa Pauliana Valente Pimentel que descobriu Samuel e Benjamim, filmou-os a dançar e depois falou deles a Vânia Rovisco. A fotógrafa (finalista do Prémio Novo Banco Photo 2016) está também em residência artística, numa parceria entre o W&T, o festival de música Tremor (que acontece na ilha em abril) e a galeria de arte Fonseca Macedo, em Ponta Delgada. Mas Pauliana só vai o apresentar o seu projeto no próximo ano.

Neste momento, está a fotografar jovens de São Miguel, procurando miúdos de diferentes classes sociais. "Mais uma vez, a juventude interessa-me porque é uma fase em que há muitas mudanças, em que eles acreditam e arriscam", explica. Tem conhecido jovens do clube hípico e pastores, filhos de grandes proprietários e pescadores. "Preciso de intimidade, de ir a casa deles e para isso é preciso ter autorização dos pais. Não me interessa fotografar uma pessoa só na rua, preciso sentir aquela pessoa. Acompanhar o dia o dia." Pauliana tem passado bastante tempo em Rabo de Peixe, uma povoação muito pobre e que vive um pouco marginalizada. Aí encontrou uma comunidade gay, que é aceite pela comunidade de pescadores. Jovens como Samuel e Benjamim, que trabalham na pesca e no tempo livre se juntam no cais, a dançar, com a música dos telemóveis.

A ilha como material de criação

A sétima edição do Walk & Talk terminou no sábado mas, como se vê, o festival prolonga-se por todo o ano e arrasta-se até às próximas edições. Alguns projetos espalham-se mesmo por outras geografias, como por exemplo o do coreógrafo brasileiro Gustavo Ciríaco, que criou durante três semanas o espetáculo Cortado por todos os lados, aberto por todos os cantos, projeto de ocupação do Teatro Micaelense, com intérpretes locais, mas que vai ter uma continuação, no próximo ano, no Teatro Nacional D. Maria II, em Lisboa. "A ideia é tratar o teatro como uma escultura escondida", explica o performer, que não só pretende usar a arquitetura do espaço como as memórias do teatro e dos intérpretes que participarem no espetáculo.

Os outros artistas que estiveram em residência no Walk & Talk deste ano mas que só vão apresentar os seus projetos na próxima edição são Maya Saravia, da Guatemala, e o português Gonçalo Preto. Maya, de 33 anos, chegou à ilha há duas semanas e entre as suas deambulações acabou por entrar na biblioteca: "Alguém tinha estado a ver jornais antigos e deixou um volume em cima de mesa. Comecei a folheá-lo e encontrei, numa primeira página do Correio dos Açores de 1954, uma notícia enorme sobre o golpe militar na Guatemala", conta.

A artista não só ficou fascinada pela coincidência como, ao ler a notícia, percebeu que dava apenas a versão dos acontecimentos divulgada pela propaganda americana. O seu trabalho tem-se desenvolvido a partir daí, sobre a natureza das notícias e as ditaduras políticas, juntando a história de Portugal e a história da Guatemala, e está a pensar criar um pequeno filme para apresentar em 2018.

Já Gonçalo Preto, de 26 anos, artista que costuma trabalhar com gravura, deixou-se seduzir pelo Museu Carlos Machado, o museu de história natural de Ponta Delgada, e, a partir dos herbários que aí existem, está a trabalhar sobre as espécies endémicas em vias de extinção. Neste momento está a recolher documentação e a fotografar os herbários mas planeia voltar mais vezes a São Miguel e continuar a trabalhar ao longo de todo o ano, pois quer fazer o seu próprio herbário, juntando exemplares recolhidos na natureza e ilustrações científicas de sua autoria.

O crocodilo e a baleia

O festival está cheio de coincidências e encontros. E esta é só mais uma: nas últimas semanas, Gonçalo tem-se deslocado em Ponta Delgada de bicicleta - que lhe foi oferecida por um outro artista visual, João Paulo Serafim, que também esteve a trabalhar em residência no Museu Carlos Machado, há dois anos, e que voltou nesta edição para apresentar o seu projeto final.

Na altura, o museu encontrava-se fechado e prestes a sofrer obras de remodelação. Quando João Paulo Serafim teve autorização para lá entrar, a primeira coisa que viu foi um crocodilo suspenso junto a umas escadas. Havia crocodilos nos Açores?, perguntou-se. A pergunta foi o ponto de partida para o seu trabalho. Durante duas semanas, João Paulo Serafim pôde explorar a coleção, em parte encaixotada, em parte tapada, em parte em compasso de espera, a apanhar pó. No museu fechado, silencioso, foi-se deparando com os exemplares de peixes e tubarões, vacas de duas cabeças, ratos, aranhas, abelhas. Ali trabalhou praticamente sozinho, num ambiente quase fantasmagórico. A coleção que dá origem ao museu foi iniciada em 1876 pelo por Carlos Maria Gomes Machado. Nas salas, repletas de vitrines, com animais embalsamados, podemos observar, por um lado, o pensamento naturalista da época e aquele desejo de conhecer o exótico e, por outro lado, a organização sistémica que tanto influenciou a museografia do século XX. João Paulo Serafim também se deteve nos expositores antiquados, nas legendas escritas à mão ou com máquina de escrever e que hoje já mal se conseguem ler. Fotografou, filmou, tirou notas, procurou pessoas na ilha de São Miguel que o pudessem ajudar a perceber melhor as histórias por trás daqueles objetos.

O museu reabriu em setembro do ano passado. Os ossos da baleia que João Paulo Serafim encontrou amontoados num canto estão agora devidamente encaixados deixando entrever a estrutura do animal. A sala dos peixes imita o fundo do mar, numa apresentação um pouco mais moderna. Mas no essencial, a coleção é exposta tal como sempre foi.

E, este ano, João Paulo Serafim voltou ao Museu Carlos Machado para mostrar o resultado do seu trabalho. A exposição "Naturalis Historiae. Quando é que se viu pela primeira vez um crocodilo dos Açores?" foi inaugurada no âmbito desta edição do festival Walk&Talk mas pode ser visitada no museu até ao final do verão.

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