Estamos em 1983. E a RTP transmite Pato com Laranja, uma comédia italiana de Luciano Salce, que contém uma cena em que uma mulher surge meio despida. O filme não avança muito mais. "Os espectadores começaram a ligar para a RTP a reclamar e a emissão foi interrompida a meio", relembra o apresentador Júlio Isidro. A indignação do público levou o então presidente da RTP, João Palma Ferreira, a fazer um pedido de desculpas público e a apresentar a sua demissão do cargo..Hoje "aquelas cenas passariam num programa infantil", diz a rir Júlio Isidro. O tempo é outro, os valores vão-se alterando e portanto o choque é desencadeado por outras atitudes, como a luta pela igualdade de género ou a intolerância à violência doméstica. No passado domingo à noite, as estações televisivas SIC e TVI estrearam cada uma um programa com o mesmo objetivo: um homem escolher uma mulher para ter um relacionamento. Seja em Quem Quer Namorar com Um Agricultor? (SIC), ou em Quem Quer Casar com o Meu Filho? (TVI), ao contrário da fábula, aqui a carochinha é sempre um homem e são as mulheres quem luta pela sua atenção..A representação feminina (e também masculina) feita nestes programas - que juntos reuniram mais de 2,5 milhões de espectadores - suscitou muitas críticas sobre o papel que cada género ocupa nestes formatos televisivos. A Entidade Reguladora para a Comunicação Social já confirmou que recebeu várias queixas a propósito destas emissões.."Não me lembro de nada como estes programas, porque estes mexem diretamente com os valores das pessoas, ainda para mais numa altura em que tanto se fala de violência doméstica e de igualdade de género", afirma o apresentador, passando mentalmente em revista as últimas décadas da televisão nacional. Antes da Revolução, o problema não se colocava: "Não havia programas que chocassem as pessoas porque a censura não deixava.".As polémicas de ontem."Na verdade, as memórias que tenho são as dos meus próprios programas, que causaram pontualmente alguma comoção", responde o humorista Herman José ao mesmo pedido para mexer no baú das polémicas televisivas. O comediante protagonizou algumas das situações mais provocatórias das décadas de 1980 e 1990. As primeiras polémicas aconteceram com as Entrevistas Históricas no programa da RTP1 Humor de Perdição (1988), onde, episódio após episódio, satirizava figuras como Fernando Pessoa, D. Afonso Henriques ou D. Sebastião. As queixas sucederam-se e o impacto notou-se: a entrevista à Rainha Santa Isabel foi cortada durante a transmissão e as três últimas entrevistas nunca chegaram a ir para o ar..Anos mais tarde, em 1996, Herman volta a ser o centro das atenções, quando faz uma sátira sobre a A Última Ceia, em que representava a refeição de Jesus com os seus apóstolos como uma reportagem sensacionalista. A Igreja sentiu-se ofendida e o Provedor de Justiça abriu um inquérito ao sketch.."Hoje, estou em crer que [os sketch] passariam quase despercebidos entalados entre novelas de prime time. Teriam direito a 48 horas de discussão nas redes sociais, mais dois ou três comunicados. A informação é tanta, os canais tão variados, que toda a polémica tem a duração de fogo-fátuo", refere Herman José..Também na década de 1990, a emissão de O Império dos Sentidos (1976), às 21.55 de uma terça-feira na RTP2, causou polémica. O filme erótico do japonês Nagisa Oshima, que conta a história de uma antiga prostituta que inicia um relacionamento amoroso escaldante com o seu chefe, foi tema de conversa durante meses. A sua emissão provocou manifestações, pedidos de demissão, mas também confissões que ficaram para a história. Como a do arcebispo de Braga, D. Eurico Nogueira, que depois de ver a película disse ao Expresso: "Aprendi mais em meia hora a ver O Império dos Sentidos do que em 67 anos de vida.".As polémicas de hoje."Numa era mais recente, o primeiro programa que lança uma grande controvérsia é o Big Brother. Lembro-me de que levantou uma grande celeuma na altura, com figuras conhecidas como a doutora Maria Barroso a criticar [o programa]. Instalou uma grande discussão na sociedade portuguesa sobre os limites da privacidade, sobre porque pessoas aceitavam estar fechadas numa casa durante 24 horas com as suas vidas a serem mostradas", indica Nuno Santos, antigo diretor de informação da RTP e ex-diretor da SIC Notícias..O reality show holandês, emitido em 2001, foi apenas o início. Outro exemplo, mais recente, será a Super Nanny (SIC em 2018), em que uma ama aconselhava pais com filhos desobedientes. Não chegou a durar um mês depois das queixas apresentadas em tribunal contra uma alegada má conduta da protagonista..As polémicas televisivas são uma constante, umas duram mais do que outras, mas, segundo Nuno Santos, o que distingue o choque provocado por O Império dos Sentidos do provocado pelos novos reality show é a existência de "mais canais e de mais plataformas de streaming". "O acesso à informação é quase ilimitado e, ao mesmo tempo, isso é uma responsabilidade acrescida para os programadores e para os canais, porque isso também significa que a sociedade está mais desperta", diz.