Do Benfica a Timor, passando pela CIA. As 7 grandes guerras de Ana Gomes

Onde há polémica está Ana Gomes. Melhor, a ex-eurodeputada costuma estar antes de a polémica nascer. Mete-se com tudo e com todos e denuncia com estrondo. Voos da CIA, submarinos, Benfica e a família socialista, a que pertence, não escapam ao seu escrutínio.
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1 - O Benfica e a troca de galhardetes com César: não sou apparatchick

Transformou-se numa polémica com o PS, na pessoa de Carlos César, mas a génese foi a transferência milionária de João Félix do Benfica para o Atlético de Madrid por 126 milhões de euros, a mais cara em Portugal - Ana Gomes questionou se não se trataria de um negócio de lavandaria.

Incomodado com a posição da então eurodeputada, Luís Filipe Vieira, presidente do Benfica, escreveu a Carlos César (presidente do PS e ainda líder parlamentar) pedindo-lhe esclarecimentos. Vieira queria saber se a posição de Ana Gomes refletia a opinião do partido ou se, "ao invés, tais declarações não merecem senão rejeição e repúdio" do Partido Socialista.

E César respondeu, distanciando-se: "As opiniões da dr.ª Ana Gomes refletem apenas uma posição própria e pessoal que, tal como em muitos outros casos, não vincula o PS."

Ana Gomes não se ficou, só quem não a conhece poderia esperar o contrário, e voltou ao Twitter desta vez para responder a Carlos César: "Agradeço ao presidente Carlos César o afã de esclarecer o óbvio: não represento o PS e o que digo e escrevo só me vincula. Sendo socialista, e não apparatchick, não abdico de usar à minha cabeça... Já César usa o que pode face a Vieira: a César, o que é de César. E viva o Partido Socialista", escreveu a diplomata no dia 26.

Domingo, voltou à carga. Desta vez acusando Carlos César de fechar os olhos aos crimes financeiros do futebol.

César perdeu a paciência e esta segunda-feira, em declarações ao DN, disse que Ana Gomes tem "o hábito de insultar que não lhe faz a corte".

"O que foi necessário neste caso aclarar é que ela podia falar em nome do PS quando era assalariada do aparelho do partido, mas agora não", prosseguiu César.

O Benfica anunciou que iria processar a ex-eurodeputadas por entender que a sua declaração não configura um caso de mero exercício de liberdade de expressão", mas tem como propósito "denegrir o nome" do clube.

2 - Rui Pinto e o pedido de colaboração da justiça que não existiu

Não é a primeira vez que a ex-eurodeputada entra nos meandros futebolísticos. Ainda em meados deste mês, Ana Gomes disse que o hacker Rui Pinto, colaborador do Football Leaks, fez denúncias anónimas através de uma plataforma do Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP) que não foram investigadas pela Justiça.

Ana Gomes - que fez esta revelação após uma visita visita ao estabelecimento prisional da Polícia Judiciária, em Lisboa, onde o jovem português está em prisão preventiva desde março - garantiu que muitas dessas denúncias, realizadas entre 2017 e 2018, diziam respeito a eventuais casos de corrupção.

A diplomata - que nesse dia também se encontrou com a ministra da Justiça Francisca Van Dunem - criticou a falta de ação da justiça portuguesa, em comparação com o que já foi feito por outros nove países que abriram investigações depois de denúncias do hacker português.

"Rui Pinto disse-nos que entre os anos 2017 e 2018 tinha feito submissões através da plataforma de denúncias anónimas do DCIAP e verificou que nenhuma delas foi investigada. Muitas diziam respeito a eventuais casos de corrupção de elementos ligados a forças da autoridade", contou.

"Rui Pinto está a ser tratado como um vulgar criminoso, enquanto as autoridades judiciais [portuguesas] atuam a pedido de um fundo de investimento, a Doyen, que nem sequer paga impostos em Portugal. Não há nenhuma razão de proteção de interesse público que explique porque é que as autoridades portuguesas não pediram a colaboração de Rui Pinto. Isto, independentemente de os crimes pelos quais ele é alegadamente acusado sejam julgados", disse durante a conferência "O novo Regime da Proteção de Denunciantes (Whistleblowers)", promovida pela agência Lusa em Lisboa., em maio.

A polémica Rui Pinto foi, aliás, outra das vezes que o Benfica anunciou pôr uma processo a Ana Gomes depois de esta ter defendido o hacker e ter dito numa entrevista ao Record que o presidente do clube, Luís Filipe Vieira, tinha "um passado de delinquência".

Eis o que escreveu: "Extraordinariamente, a SAD [do Benfica], o clube [Benfica] e o seu dirigente máximo [Luís Filipe Vieira] não são acusados [no âmbito do processo e-toupeira]. Sabemos que o dirigente máximo do clube está referenciado em várias listas de grandes devedores do país por vários empréstimos não pagos. Há todo um passado de delinquência ligado a essa pessoa. Há inúmeros elementos que apontam para o facto de o Benfica poder ter especial interesse em que alguém que tem um acervo considerável de documentos de vários clubes não só possa ser posto sob controlo, mas inclusivamente o seu arquivo também o seja."

3 - Voos da CIA, o grande cavalo de batalha

Em 2007 Ana Gomes iniciou uma das suas batalhas mais conhecidas, que viria a ficar conhecida como os voos da CIA. Foi nesse ano que a então eurodeputada socialista entregou um extenso dossier na Procuradoria-Geral da República em que denunciava a utilização dos território português pelos voos secretos dos espiões americanos.

O processo - em que Ana Gomes tinha se constituiu como assistente - foi arquivado ao fim de dois anos e meio por não terem sido recolhidos indícios que pudessem levar a uma acusação.

Durão Barroso - primeiro-ministro entre março de 2002 e agosto de 2004 e depois presidente da Comissão Europeia - foi um dos seu alvos nesta questão: "Foi responsável por todo o processo de colaboração das autoridades portuguesas com os chamados voos de tortura da CIA", disse numa entrevista ao jornal i em 2016.

Nessa mesma entrevista, Ana Gomes ataca Barroso por ter sido anfitrião da cimeira que antecedeu a guerra do Iraque: "Durão Barroso é uma pessoa que teve responsabilidades políticas claras na invasão Iraque, como anfitrião da cimeira das Lajes. Sabia perfeitamente que estava atuar na base de informações que eram mentirosas. Sei bem o que foi dito em reuniões que mantive com ele enquanto responsável do PS pelas relações internacionais. Ele tinha a perfeita noção de que não só estava a violar o direito internacional, como a atuar na base de informações que eram mentirosas. Não teve escrúpulos em fazer o que fez politicamente."

Durão Barroso negou ter dado qualquer autorização ou ter conhecimento de voos ilegais da CIA enquanto esteve no Governo.

Ana Gomes fez também parte da comissão de inquérito do Parlamento Europeu que se debruçou, entre 2005 e 2007, sobre a utilização do território europeu e a cumplicidade de alguns Estados-membros no programa de rendições extraordinárias de suspeitos de terrorismo montado pela CIA depois dos atentados de 11 de Setembro

Sobre Portugal, Ana Gomes denunciou a presença na base das Lajes, nos Açores, de suspeitos de terrorismo detidos ilegalmente por agentes da CIA e militares norte-americanos. Os aviões passavam pelo espaço aéreo dos Açores quando se dirigiam a Guantánamo, em Cuba. Alguns voos, denunciou, fizeram também escalas de vários dias em aeroportos portugueses, como o do Porto e o de Ponta Delgada.

Quando denunciou o caso, Ana Gomes considerou que o processo seria imparável. E dava como exemplo o facto de "muitas vítimas de abusos, prisões, sequestros e torturas estão a ser libertadas por parte dos americanos de Guantánamo, porque chegaram à conclusão que a maior parte destas pessoas estão, de facto, ilibadas de suspeitas".

Mas a PGR diz que a única hipótese de o inquérito ser reaberto é se surgirem "factos novos",

4 - Submarinos e o pedido de investigação do património de Portas

Submarinos, outro cavalo de batalha de Ana Gomes. O processo foi arquivado em 2014, mas Ana Gomes viria a insistir na reabertura do caso com base nas revelações dos Panama Papers - que deu origem a uma comissão no Parlamento Europeu da qual foi vice-presidente.

A socialista, que foi assistente no processo em Portugal, defendeu que a PGR deveria reabrir "o caso de corrupção de alto nível" que envolveu Portugal e Alemanha, quando Paulo Portas era ministro da Defesa. Para Ana Gomes. era necessário apurar quem beneficiou com as luvas de 10 milhões de euros pagas pelos fornecedores alemães.

Há quatro anos, quando anunciou que requereu a abertura do processo, Ana Gomes defendeu "haver elementos" que justificavam uma investigação ao património de Paulo Portas. E disse que "Durão Barroso também deveria ser investigado".

Mais: para Ana Gomes, Portas teve um papel "relevante, senão mesmo determinante na forma como foram negociados os contratos de compra dos submarinos e as contrapartidas.

inconsistente com o rumo da investigação que um dos principais intervenientes no negócio e principal decisor político não tenha sido nunca considerado formalmente suspeito dos crimes de corrupção passiva e/ou de prevaricação e que essa hipótese nunca tenha sido realmente assumida e investigada", indica um documento apresentado por Ana Gomes.

O processo foi definitivamente arquivado quando em novembro de 2015 o Tribunal da Relação de Lisboa considerou que alguns factos já tinham prescrito e não havia outros novos que pudessem dar origem a uma acusação.

5 - O novo chefe das secretas que a deixou em choque

Quando em 2017 se soube que José Júlio Pereira Gomes seria o novo chefe das secretas, ouviu-se a voz escandalizada de Ana Gomes. A afirmar, em declarações ao DN, que ficou "muito surpreendida e apreensiva". Embora fazendo questão de dizer que não estava em causa o percurso profissional, afirmava que faltava a Pereira Gomes "perfil psicológico".

"Tenho dúvidas de que o embaixador Pereira Gomes tenha capacidade para aguentar situações de grande pressão. Não inspira confiança e autoridade junto dos seus subordinados nos serviços de informações." Ana Gomes e Pereira Gomes conheciam-se desde os tempos da luta pelo referendo que daria a independência de Timor-Leste: ela era embaixadora de Portugal em Jacarta, ele chefiava no território uma missão portuguesa de observação.

A "apreensão" que então revelou prendia-se com factos ocorridos em 1999 e que foram foram notícia em Portugal, enviados de Timor pelos jornalistas portugueses que aí ficaram depois de iniciada a onda de violência com que os anti-independência responderam à vitória do "sim" à consulta popular de 30 de agosto.

Segundo Ana Gomes, a missão portuguesa abandonou o território em 9 de setembro por insistência de Pereira Gomes, contrariando diretivas diretas do governo português, bem como pedidos da própria Ana Gomes. A saída aconteceu na véspera de chegar ao território uma importante missão de observação do Conselho de Segurança da ONU.

Ana Gomes denunciou ainda que Pereira Gomes se mostrou indiferente ao destino dos timorenses que trabalhavam para os observadores portugueses.

Numa declaração então enviada por e-mail ao DN, Pereira Gomes afirmava: "Hoje, volvidos 18 anos, não tenho nada a acrescentar ou a corrigir ao que deixei então registado [num livro de memórias sobre a sua experiência timorense]". "A evacuação de Timor-Leste dos últimos observadores, onde me incluía, resultou de ordem expressa do Governo Português; todos os timorenses - e seus familiares - que tinham trabalhado com a nossa Missão de Observação e connosco se tinham refugiado nas instalações da UNAMET, foram evacuados connosco e em virtude da nossa intervenção."

Em menos de um mês, o embaixador comunicava ao primeiro-ministro, António Costa, a sua indisponibilidade para aceitar o cargo de secretário-geral do Sistema de Informações da República Portuguesa (SIRP). Alegando que importava salvaguardar a dignidade do cargo de polémicas.

6 - Estaleiros de Viana do Castelo e a guerra com a Douro Azul

A subconcessão dos Estaleiros Navais de Viana do Castelo ao grupo naval Ria/Martifer Energy foi outro dos assuntos que Ana Gomes levou à Procuradoria-Geral da República. Ao mesmo tempo, entregou uma participação junto da Comissão Europeia.

"Na atribuição da subconcessão, por parte do Estado Português, dos terrenos e infraestruturas da empresa pública Estaleiros Navais de Viana do Castelo (ENVC) ao agrupamento empresarial Navalria/Martifer Energy, anunciada pela administração dos ENVC em 18 de outubro de 2013, terá havido violação de normas que, nos termos do Código Penal, punem a corrupção, o tráfico de influência, o abuso de poder, o favorecimento de interesses privados", lia-se na fundamentação da queixa apresentada em 2013.

Ao todo, a queixa-crime incidia sobre 58 pontos, todos considerados por Ana Gomes como prova de que houve violação de normas previstas e punidas no Código Penal. Desde o desinvestimento estatal nos ENVC e nas contrapartidas para os ENVC daí decorrentes, ao período que vai da anunciada privatização ao processo de subconcessão, passando pela investigação em curso na Comissão Europeia por ajudas de Estado "entre 2006 e 2012", às cláusulas do Caderno de Encargos, bem como do Programa de Procedimento do Concurso Público

Em 2015, a eurodeputada Ana Gomes voltava aos estaleiros e enviava cartas à Comissão Europeia, à PGR e Tribunal de Contas, onde se queixava de ajudas de Estado na encomenda, por ajuste direto no valor de 77 milhões de euros, de dois navios-patrulha oceânicos à West Sea, empresa do grupo Martifer, que ficou com a subconcessão dos Estaleiros Navais de Viana do Castelo (ENVC).

Em 2017, ainda sobre os Estaleiros Navais de Viana do Castelo, Ana Gomes aponta a Mário Ferreira, dono da Douro Azul. O que levou o empresário a pedir a Estrasburgo o levantamento da imunidade parlamentar de Ana Gomes, acusando a eurodeputada de caluniar as suas empresas por ter classificado o processo de compra e venda do navio Atlântida de ser "um negócio que tresandava a corrupção"

7 - O PS que se deixou manipular por Sócrates

Face aos incómodos que estava a causar ao PS por causa da "Operação Marquês", José Sócrates escreveu em maio do ano passado uma carta ao partido a pedir a desfiliação do PS. Para acabar "com o embaraço mútuo", argumentava o ex-primeiro ministro, agora acusado de 31 crimes: três de corrupção passiva, 16 de branqueamento de capitais, nove de falsificação de documento e três de fraude fiscal qualificada

Também sobre esta matéria, Ana Gomes disse aquilo que pensava: "Obviamente que essa carta de Sócrates serve a estratégia de vitimização que ele tem escolhido para fazer face às acusações graves que contra ele pendem, portanto, não é nada de estranho."

"Só espero é que esta atitude de Sócrates facilite e estimule o PS a fazer o exercício de introspeção que é imperativo e que não pode mais ser adiado face ao que se sabe já e ao que ainda não se sabe sobre a teia de corrupção que tinha em Sócrates um ponto central", disse

E deixou um recado ao PS, para que faça tudo para que não aconteçam mais este tipo de comportamentos, bem como para adotar "mecanismos externos e internos para combater a corrupção".

Dois anos antes, Ana Gomes tinha acusado a direção do PS de deixar Sócrates manipular e "sequestrar" o partido. Falava do facto de Sócrates aparecer em iniciativas socialistas, nomeadamente num almoço em que foi homenageado no Parque das Nações e numa iniciativa promovida pela Federação da Área Urbana de Lisboa (FAUL).

"Como é possível não haver consciência moral para demarcar o PS disto?", questionou

Ainda nas denúncias ao branqueamento de capitais:
a Zona Franca da Madeira

Ana Gomes tem sido muito crítica do funcionamento da Zona Franca da Madeira, considerando, em documentos oficiais, que o sistema de taxação serve para branqueamento de capitais.

Esta questão já levou a socialista a escrever uma carta aos ainda comissários europeus Pierre Moscovici (Assuntos Económicos e Financeiros), Margrethe Vestager (Concorrência) e Vera Jourová (Justiça, Consumidores e Igualdade de Género), com conhecimento do primeiro-ministro, António Costa, do ministro da Finanças, Mário Centeno, e do secretário de Estado para os Assuntos Fiscais, António Mendonça Mendes.

Na carta, Ana Gomes refere que "uma petrolífera italiana, sem qualquer atividade na Madeira, é a entidade que mais benefícios fiscais obteve".

O que também já levou o presidente da Sociedade de Desenvolvimento da Madeira, Paulo Prada, a responder que a empresa está na Madeira desde 1994 e no Centro Internacional de Negócios da Madeira (CINM) há 25 anos, tem instalações na Zona Franca Industrial, onde já investiu três milhões de euros, emprega cento e poucos trabalhadores - 98% dos quais são portugueses, altamente bem remunerados - que fazem toda a gestão das frotas, do pessoal e da manutenção dos petroleiros e das plataformas petrolíferas, tem um navio registado no Registo Internacional de Navios", conforme disse à Lusa.

Há outra questão que a eurodeputada colocou na carta e que se prende com o facto de Autoridade Tributária nacional "abdicar do exercício de competências essenciais de controlo fiscal na Região Autónoma da Madeira e na Zona Franca em especial.

"Outra mentira", diz Prada, afirmando que as grandes empresas, incluindo esta petrolífera, são fiscalizadas pela Unidade de Grandes Contribuintes, com sede em Lisboa.

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